terça-feira, 31 de agosto de 2010
JÁ ESTAVA TUDO ARMADO
Isso é política! Há alguns meses conversava com meu amigo Adu Verbis sobre esse assunto e concordávamos que o estádio escolhido para a próxima copa do Mundo seria o vindouro do Corinthians. A decisão de excluir o estádio do Morumbi da copa do mundo de 2014 já estava proclamada há muito tempo. Não foi à toa que Andrés Sanches, presidente do Corinthians, foi escolhido pra ser chefe da delegação da seleção brasileira na copa da África do sul, realizada este ano. O plano de construir o novo estádio do Corinthians já estava tramado há muito tempo. Com a presença de Ronaldo, ex-atacante da seleção brasileira, no Corinthians, a viabilização financeira do projeto ficou bem mais fácil, sem dúvida, mas não podemos, conhecendo Ricardo Teixeira e Andrés Sanches, excluir a possibilidade da utilização de recursos públicos na obra do novo estádio do Timão. Ricardo Teixeira, um dos homens mais poderosos do país, não avalisou( ao lado de seu aliado Joseph Blatter, presidente da FIFA ) o projeto do Morumbi, que era muito mais barato e viável. Porém, como o senhor Ricardo Teixeira não simpatiza com os dirigentes do São Paulo e tem interesses excusos em comum com Andrés Sanches, o pau da barraca vai ser armado. Ricardão comanda a CBF há mais de 20 anos, fazendo conchavos e comprando votos dos presidentes das federações estaduais para se perpetuar no poder. Só nos resta dizer, como Juca Kfouri diz em seu programa CBN Esporte Clube, da Rádio CBN: “VAMOS TOMAR CHÁ DE CADEIRA ESPERANDO PELA QUEDA DO RICARDO TEIXEIRA!”
domingo, 29 de agosto de 2010
DISCUSSÃO SOBRE AS "PANELINHAS", OU "PEIXADA", COM JORGE LOBO E ADU VERBIS
Jorge Lobo: Qual a sua opinião?Elas existem? Estou falando de “panela” no sentido de projetos inscritos em concursos de roteiros. Sendo ou não concurso de roteiros especificamente( como o concurso de desenvolvimento de roteiros, do MINC ), o fato é que o roteiro sempre é ou deveria ser a mola-mestra de avaliação por parte das comissões de seleção, mesmo nos editais de produção. No estado atual das coisas, chegou-se ao cúmulo de criar um concurso de desenvolvimento de roteiros( por parte do MINC ) em que o currículo é pedido!É fato que favorecimentos ilícitos não são feitos por todos os integrantes de uma comissão, mas pra mim parece evidente que uma parte dos membros das comissões preferem premiar o currículo ou seus amigos em detrimento da avaliação da qualidade do roteiro. Fui testemunha, há algum tempo atrás, de um caso de favorecimento ilícito: um professor da escola de cinema em que eu estudava foi chamado para uma comissão de um concurso de roteiro do governo e premiou uma aluna de lá. A aluna revelou a mim que fez o roteiro às pressas, mesmo assim ela foi premiada. É ou não um caso irrefutável de favorecimento ilícito?Na minha opinião, o professor queria ficar bem com a diretoria da escola, talvez recebendo até uma quantia em dinheiro pelo seu ato.É preciso escrever sobre isso, já que quase ninguém escreve, por isso estou escrevendo. Eu acho que as “panelas” são comparáveis ao jogo Argentina X Peru, da copa de 1978, onde se armou um esquema em que apenas alguns dos jogadores do Peru participaram, não todos. É evidente que existem pessoas íntegras nas comissões mas é evidente também que a “panela” existe, uma panela informal, onde alguns membros adeptos dessa “panela” se deixam levar pelos afetos( premiando amigos ou não premiando pessoas por quem eles tem uma antipatia pessoal ) deixando em segundo plano a avaliação objetiva de um roteiro, isto é, as qualidades criativas do roteiro. Como o afeto rege uma boa parte das escolhas, muita gente opta por sempre procurar estar de bem com todo mundo, evitando assim maiores complicações.
Corrigindo uma passagem: um concurso de desnvolvimento de roteiros( por parte do MINC ), com uso de pseudônimos, em que o currículo é pedido!
RESPOSTA DE ADU VERBIS: nenhum profissional de cinema no Brasil faria uma avaliação de um roteiro isento da concepção do favoritismo que reina nos concursos e editais para roteiro, e outras tantas licitações feita de forma escusas nesse país. E porquê nenhum profissional de cinema não faria uma avaliação de um roteiro sem favorecer beltrano e sicrano, simples, porque quem faz a avaliação dos roteiros nos editais e concursos, também faz cinema, e sabe que se não favorecer tal diretor, tal produtora, pode ficar de fora dos poucos recursos que há pra se fazer um filme no Brasil. A tese de que há sempre uma conspiração contra ou a favor, não é coisa de paranóico, de fato existe uma conspiração.
O fato de alguns editais solicitar o currículo dos concorrentes é uma suspeita. Naturalmente que toda comissão tem seus argumentos de defesa, e todo edital está assegurado pelos termos da lei. A intenção de favorecer fulano que tem um currículo assado em detrimento de sicrano com um currículo de pouca expressão é notória. O concorrente manda seu roteiro com um pseudônimo, mas no seu currículo consta o seu nome e seus trabalhos realizados. Através de um currículo fico sabendo quem está ou não em um edital. Não vou deixar de votar num roteiro que é do meu amigo, ou de quem posso obter favores para votar num roteiro de Jorge Lobo que não o conheço, e tenho a certeza que não vou ganhar nada votando no roteiro de Jorge Lobo; quem faz uma avaliação de um roteiro cinematográfico não pensa no cinema em si, mas em si mesmo.
Se houvesse uma cultura cinematográfica que valorizasse o roteiro ao invés da conceituada panelinha, talvez o roteiro com uma qualidade técnica e temática, seria escolhido. Se não houver editais não haverá liberação de verbas; mas Infelizmente esses editais é só uma forma de mascarar o obvio. Desta forma ninguém tem como reclamar que o roteiro de fulano foi escolhido porque é fulano; por trás dos editais se esconde à cultura do favorecimento, e ao mesmo tempo o favoritismo está protegido por lei.
O cinema é uma arte de muitos cifrões feita por uma classe que mendiga de porta em porta. A classe de roteiristas, diretores e produtores e os mendigos que habitam as ruas no Brasil, têm o mesmo principio ético: só bebe da cachaça quem fortaleceu, quem é parceiro. Eu não vou fechar com quem não é da minha panela, se não corro o risco de ficar sem a minha cachaça e feijoada. Já disseram que o Brasil não é pra amador, e é pura verdade. Tudo isso dito pela retórica vazia, sonolenta e corporativista de Arnaldo Jabor, teria um valor de verdade, mas como é dito por uma roteirista frustrado e invejoso, que reclama porque não fora escolhido num concurso para roteiro, não tem a menor graça.
JL: sua resposta foi bastante esclarecedora. Acrescentaria que ninguém que faz a política da "panela" vai declarar que a faz, confessar que favoreceu beltrano ou sicrano, nem mesmo para os seus colegas de comissão, é um acordo tácito e o discurso será: "quem ganhou foram os melhores!Quem diz que existe panela é porque está frustrado porque perdeu!"
O acordo tácito passa também pela persuasão( sem citar que fulano tal é apadrinhado ), pela argumentação de que tal projeto merece ser escolhido, convencendo os outros membros da comissão de que o projeto apadrinhado merece uma chance. Ou será que estou enganado e a sujeira é feita às claras?Só participando de uma comissão pra saber, só que infelizmente ou felizmente eu provavelmente nunca terei essa chance, mas se tivesse votaria nos roteiros que eu considerasse melhores e ponto, nada de participar de "panelas" sujas, é claro que se eu fizesse isso nunca mais seria chamado pra uma comissão, mas pelo menos teria a minha consciência limpa..O fato é que as "panelas" existem e então fica a pergunta: como fazer cinema no Brasil sem ser apadrinhado?Só pra quem é rico.Uma coisa é clara: jamais um membro de comissão vai declarar para seus alunos ou para a imprensa que favoreceu um amigo ou corrente de quem vai obter favores, o discurso público será o que eu já escrevi: "quem ganhou foram os melhores!Quem diz que existe panela é porque está frustrado porque perdeu!"
sábado, 28 de agosto de 2010
SÉRIE PENSAMENTOS IMPORTANTES( 8 )
PROVÉRBIOS CHINESES
A verdade é o mais eficiente instrumento de transformação social, por isso os homens a temem.
Nunca é tão fácil perder-se como quando se julga conhecer o caminho.
Entre cem projetos de um rico encontram-se noventa e nove para o tornar mais rico.
Quando passares pela terra dos tortos, fecha um olho.
O fácil é o certo.
A verdade é o mais eficiente instrumento de transformação social, por isso os homens a temem.
Nunca é tão fácil perder-se como quando se julga conhecer o caminho.
Entre cem projetos de um rico encontram-se noventa e nove para o tornar mais rico.
Quando passares pela terra dos tortos, fecha um olho.
O fácil é o certo.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
SUSPENSE/SURPRESA NO CINEMA E NA LITERATURA
"Estamos conversando, talvez haja uma bomba debaixo desta mesa e a conversa é banal ... De repente, BUM, uma explosão. O público fica surpreso, mas antes lhe foi mostrada uma cena absolutamente sem interesse. Agora, examinemos o suspense. A bomba está debaixo da mesa e o público sabe... O público sabe que a bomba irá explodir a uma hora. Há um relógio no cenário que mostra que são quinze para uma. A mesma conversa desinteressante torna-se de repente interessantíssima por que o público participa da cena. No primeiro caso oferecemos quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo nós lhe proporcionamos quinze minutos de suspense. A conclusão disto é que é preciso informar o público (torná-lo cúmplice) sempre que possível, a menos que a surpresa seja um twist, isto é, quando o inesperado da conclusão constitui a graça da anedota." – Alfred Hitchcock em "Hitchcock/ Truffaut – Entrevistas"
Ainda sobre o suspense, é proveitoso citarmos Bourneuf & Ouellet:
SUSPENSE - A INSERÇÃO DE UMA PASSAGEM DESCRITIVA NUM MOMENTO CRÍTICO TEM POR OBJETIVO AGUÇAR NOSSA CURIOSIDADE FACTUAL, É UM PROCEDIMENTO PARA RETARDAR O CLÍMAX, ACRESCENTANDO DETALHES QUE O DEIXARÃO COM UM INTERESSE AINDA MAIOR.
E ainda, Boileau e Narcejac em “O Romance Policial”:
“Ameaça. Expectativa. Perseguição... Tais são as três componentes do suspense. No suspense, o que é que é “suspenso”? O tempo. É a ameaça que transforma o tempo em duração dolorosamente vivida. A expectativa é essa duração retardada ao extremo e, por isso mesmo, torturante; a perseguição é essa duração acelerada, que leva à espécie de espasmo em que a vida se rompe e se desfaz. Essa relação entre o tempo e a emoção tem algo de muito novo, que, certamente, não era estranho ao romance-problema descoberto por Poe, mas Poe lhe concedia apenas um valor estético.” – Boileau-Narcejac, “O Romance Policial”.
Ainda sobre o suspense, é proveitoso citarmos Bourneuf & Ouellet:
SUSPENSE - A INSERÇÃO DE UMA PASSAGEM DESCRITIVA NUM MOMENTO CRÍTICO TEM POR OBJETIVO AGUÇAR NOSSA CURIOSIDADE FACTUAL, É UM PROCEDIMENTO PARA RETARDAR O CLÍMAX, ACRESCENTANDO DETALHES QUE O DEIXARÃO COM UM INTERESSE AINDA MAIOR.
E ainda, Boileau e Narcejac em “O Romance Policial”:
“Ameaça. Expectativa. Perseguição... Tais são as três componentes do suspense. No suspense, o que é que é “suspenso”? O tempo. É a ameaça que transforma o tempo em duração dolorosamente vivida. A expectativa é essa duração retardada ao extremo e, por isso mesmo, torturante; a perseguição é essa duração acelerada, que leva à espécie de espasmo em que a vida se rompe e se desfaz. Essa relação entre o tempo e a emoção tem algo de muito novo, que, certamente, não era estranho ao romance-problema descoberto por Poe, mas Poe lhe concedia apenas um valor estético.” – Boileau-Narcejac, “O Romance Policial”.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
SÉRIE PENSAMENTOS IMPORTANTES( 6 )
A EXCEÇÃO E A REGRA
Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso
Mas não se esqueçam
de que o abuso é sempre a regra.
Bertolt Brecht
Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso
Mas não se esqueçam
de que o abuso é sempre a regra.
Bertolt Brecht
A FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO
A FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO
Trad. Diego Rafael
Em uma nota que neste momento tenho à vista, Charles Dickens diz o seguinte, referindo-se a uma análise que fiz do mecanismo de Barnaby Rudge: "Sabe que Godwin escreveu seu Caleb Williams de trás para frente? Começou emaranhando a matéria do segundo livro e logo, para compor o primeiro, pensou nos meios de justificar o que havia feito".
Parece-me difícil de acreditar que esse fora precisamente o método de composição de Godwin e, de fato, o que o mesmo confessa não está de acordo, de modo algum, com a idéia do Sr. Dickens. Mas o autor de Caleb Williams era um artista demasiado entendido para deixar de compreender as vantagens que pode obter com algum procedimento semelhante. Eis algo evidente: um plano qualquer que seja digno desse nome só pode ser traçado visando o desenlace antes que a pena ataque o papel. Só quando se tem continuamente presente a idéia do desenlace é que podemos conferir a um plano a sua indispensável aparência lógica e de causalidade, procurando fazer com que todas as incidências e, especialmente, o tom geral tendam a desenvolver a intenção estabelecida.
Creio que existe um erro radical no método empregado para se construir um conto. Algumas vezes, a história nos proporciona uma tese; outras vezes, o escritor é inspirado por um acontecimento contemporâneo; ou, no melhor dos casos, senta-se para combinar os feitos surpreendentes que hão de formar a base de sua narrativa, procurando introduzir as descrições, o diálogo ou o seu comentário pessoal onde quer que um resquício no tecido da ação lhe force a fazê-lo. Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Tendo sempre em vista a originalidade (porque é falso consigo mesmo quem se atreve a desprezar um meio de interesse tão evidente e fácil), digo-me, antes de tudo: "Dentre os inumeráveis efeitos ou impressões que é capaz de receber o coração, a inteligência ou, falando em termos mais gerais, a alma, qual será o único que eu deva eleger no presente caso?" Tendo já elegido um tema novelesco e, depois, um vigoroso efeito, indago se vale mais evidenciar os incidentes ou o tom - ou os incidentes vulgares e um tom particular ou a singularidade tanto dos incidentes, quanto do tom -; logo procuro, em torno de mim, ou melhor, em mim mesmo, as combinações de acontecimentos ou de tons que podem ser mais adequados para criar o efeito em questão.
Tenho pensado quão interessante seria um artigo escrito por um autor que quisesse e que pudesse descrever, passo a passo, a marcha progressiva seguida em qualquer uma de suas obras até chegar ao término definitivo de sua realização. Seria, para mim, impossível explicar por que ainda não foi oferecido ao público um trabalho semelhante; mas talvez a vaidade dos autores seja a causa mais poderosa para justificarmos essa lacuna literária. Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem deixar que acreditemos que escrevem graças a uma espécie de sutil frenesi ou de intuição extática; teriam verdadeiros calafrios se tivessem que permitir ao público dar uma olhadela por trás da cortina, para contemplar os trabalhosos e vacilantes embriões de pensamentos, a verdadeira decisão adotada no último momento, os relances de idéias que durante muito tempo resistem a mostrar-se, o pensamento plenamente maduro mas rejeitado por ser inaproveitável, a eleição prudente e os arrependimentos, as dolorosas emendas e interpolações; em suma, os rolamentos e as rodas, os artifícios para a troca de decoração, as escadas e os alçapões, as penas de galo, as cores, os disfarces e todos os enfeites que em noventa e nove por cento dos casos são o peculiar do histrião literário.
No entanto, sei que não é freqüente um autor estar disposto a reconstruir o caminho por onde chegou a seu desenlace. Geralmente, as idéias surgem mescladas; logo são seguidas e finalmente esquecidas da mesma maneira.
Quanto a mim, não compartilho com a repugnância do que acabo de falar, nem encontro a menor dificuldade em recordar a marcha progressiva de todas as minhas composições. Posto que o interesse dessa análise ou reconstrução, que tenho considerado como um desideratum, é inteiramente independente de qualquer interesse real ou imaginário na coisa analisada, não poderei ser censurado se revelo aqui o modus operandi utilizado para construir uma de minha obras. Escolhi "O Corvo" por ser esta a mais conhecida de todas. Meu propósito consiste em demonstrar que nenhum ponto da composição pode ser atribuído à intuição ou à sorte; e que aquela avançou até seu término, passo a passo, com a mesma exatidão e lógica rigorosa de um problema matemático.
Posto que não responde diretamente à questão poética, esqueçamos a circunstância ou a necessidade de que nasceu a intenção de compor um poema que satisfizesse ao mesmo tempo o gosto popular e o gosto crítico.
Minha análise começa, pois, a partir dessa intenção.
A consideração inicial foi esta: a dimensão. Se uma obra literária é muito extensa para ser lida de uma só assentada, devemos resignar-nos a eliminar o efeito, soberanamente decisivo, da unidade de impressão; porque quando são necessárias duas assentadas, interpõem-se entre elas os assuntos do mundo, e o que chamamos de conjunto ou totalidade cai por terra. Mas, tendo em vista que, coeteris paribus, nenhum poeta pode renunciar a tudo o que contribui para que alcance seu propósito, é importante examinar se há na extensão alguma vantagem, qualquer que seja, que compense a perda da unidade. Respondo logo negativamente. O que chamamos de poema extenso nada mais é do que uma sucessão de poemas curtos, de efeitos poéticos breves. De nada nos serve demonstrar que um poema só o é quando eleva a alma e lhe traz uma excitação intensa: por uma necessidade psíquica, todas as excitações intensas são de curta duração. Por isso, pelo menos a metade do Paraíso Perdido não é mais que pura prosa: há nele uma série de excitações poéticas salpicadas inevitavelmente de depressões. A obra, por causa de sua extensão excessiva, carece daquele elemento artístico tão decisivamente importante: a totalidade ou a unidade de efeito.
No que se refere às dimensões, há, evidentemente, um limite positivo para todas as obras literárias: o limite de uma só sessão. É certo que em alguns gêneros da prosa, como em Robinson Crusoe, não se exige a unidade, porque aquele limite pode ser traspassado. Sem embargo, nunca será conveniente traspassá-lo em um poema. No mesmo limite, a extensão de um poema deve ser muito bem pensada, para manter uma relação matemática com o mérito do mesmo, isto é, com a elevação ou a excitação que comporta; em outras palavras, com a quantidade de autêntico efeito poético com que possa impressionar as almas. Esta regra só tem uma condição restrita, a saber: que uma relativa duração é absolutamente indispensável para causar um efeito, qualquer que seja.
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação que eu não situava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, concebi antes de tudo uma idéia sobre a extensão idônea para o poema projetado: uns cem versos aproximadamente. Na realidade, cento e oito.
Meu pensamento se fixou seguidamente na elevação de uma impressão ou de um efeito que pudesse causar. Aqui creio que convém observar que, através desse trabalho de construção, tive sempre presente a vontade de criar uma obra universalmente apreciável. Iria longe demais se eu demonstrasse, no presente tratado, o que tenho insistido muitas vezes: que o belo é o único âmbito legítimo da poesia. Contudo, direi umas palavras para apresentar meu verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos se apressaram a dissimular. O prazer mais intenso, mais elevado e mais puro não se encontra - segundo creio - mais que na contemplação do belo.Quando os homens falam de beleza, não entendem precisamente uma qualidade, como se supõe, mas uma impressão: em suma, têm presente a violenta e pura elevação da alma - não do intelecto ou do coração -, como já falei, e que resulta da contemplação do belo. Ora, considero a beleza como o âmbito da poesia porque é uma regra evidente da arte que os efeitos deveriam brotar necessariamente de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados com os meios mais apropriados para tal - já que nenhum homem chegou a ser tão estúpido para negar que a elevação singular de que estou tratando se encontra mais facilmente ao alcance da poesia. No entanto, o objetivo verdade, ou satisfação do intelecto, e o objetivo paixão, ou excitação do coração, são muito mais fáceis de se alcançar por meio da prosa - embora, em certa medida, estejam também ao alcance da poesia. Em resumo, a verdade requer uma precisão, e a paixão, uma familiaridade (os homens verdadeiramente apaixonados me compreenderão), radicalmente contrárias àquela beleza, que não é senão a excitação - reafirmo - ou o embriagador arrebatamento da alma.De tudo o que foi dito até agora, não se pode deduzir, de modo algum, que nem a paixão nem a verdade possam ser introduzidas em um poema, senão com benefícios para este, já que podem servir para aclarar ou para potencializar o efeito global, como as dissonâncias na música, pelo contraste. Mas o autêntico artista há de se esforçar sempre, antes de tudo, em reduzi-las a um papel propício ao objetivo pretendido, e depois torneá-las, tanto quanto possível, com o aroma da beleza, que é a atmosfera e a essência do poema.
Por conseqüência, considerando o belo como o meu terreno próprio, perguntei-me: "Qual é o tom para a sua manifestação mais alta?". Este seria o tema de minha seguinte meditação, e toda a experiência humana nos leva a crer que esse tom é o da tristeza. Qualquer que seja seu parentesco, a beleza, em seu desenvolvimento supremo, induz às lágrimas, inevitavelmente, as almas sensíveis. Assim, a melancolia é o mais idôneo dos tons poéticos.
Uma vez determinados a dimensão, o terreno e o tom do meu trabalho, dediquei-me a buscar alguma curiosidade artística de alto grau que pudesse atuar como chave na construção do poema, de algum eixo sobre o qual toda a máquina pudesse girar. Refletindo sobre todos os efeitos conhecidos pela arte ou, mais propriamente, sobre todos os meios de efeito - no sentido cênico -, não poderia deixar de compreender que nenhum havia sido empregado com tanta freqüência quanto o do estribilho*. A universalidade deste bastava para me convencer acerca de seu intrínseco valor, evitando a necessidade de submetê-lo a uma análise. De qualquer modo, eu não o considerava, senão enquanto suscetível de aperfeiçoamento, e tão logo pude perceber que ainda se encontrava em um estado primitivo. Tal como habitualmente é empregado, o estribilho não só é limitado às composições líricas, como a força da impressão que deve causar depende do vigor da monotonia no som e na idéia. Só se pode extrair o prazer mediante a sensação de identidade ou de repetição. Resolvi, desse modo, variar o efeito, com a finalidade de acrescentá-lo, permanecendo fiel à monotonia do som, mas alterando continuamente o da idéia: em outras palavras, procurei causar uma série contínua de efeitos novos com uma série de variadas aplicações do estribilho, deixando que este fosse quase sempre parecido.
Havendo já fixado esses pontos, preocupei-me com a natureza do meu estribilho: posto que sua aplicação tinha de ser variada com freqüência, era evidente que o estribilho em questão teria que ser breve, pois encontraria dificuldades insuperáveis para variar freqüentemente as aplicações de uma frase um pouco extensa. Por outro lado, a facilidade de variação estaria em proporção à brevidade da frase. Isto me conduziu a adotar como estribilho ideal uma única palavra.
Refleti, em seguida, sobre o caráter daquela palavra.Tendo decidido que haveria um estribilho, a divisão do poema em estâncias surgia como um corolário necessário, pois o estribilho constitui a conclusão de cada estrofe. Não havia dúvida para mim que semelhante conclusão ou término, para possuir força, deveria ser necessariamente sonora e suscetível de uma ênfase prolongada.Aquelas considerações me conduziram inevitavelmente ao o prolongado, que é a vogal mais sonora, associada ao r, porque esta é a consoante mais vigorosa.
Já bem determinado o som do estribilho, era preciso, depois, eleger uma palavra que o contivesse e, ao mesmo tempo, estivesse harmoniosamente de acordo com a melancolia que eu havia adotado como tom geral do poema. Seria impossível não se deparar com a palavra nevermore (nunca mais). Na verdade, esta foi a primeira que me veio à mente.
O desideratum seguinte foi este: qual seria o pretexto útil para empregar continuamente a palavra nevermore? Ao ver a dificuldade que se me apresentava para encontrar uma razão válida dessa repetição contínua, não deixei de observar que essa dificuldade surgia tão só de que tal palavra, repetida tão obstinada e monotonamente, seria proferida por um ser humano. Em resumo: a dificuldade consistia em conciliar a monotonia aludida com o exercício da razão na criatura chamada para repetir a palavra. Surgiu então a possibilidade de uma criatura não racional e, sem embargo, dotada de palavra: como é lógico, pensei, de início, em um papagaio; no entanto, este foi imediatamente substituído por um corvo, que também é dotado de palavra e, ademais, está infinitamente mais de acordo com o tom desejado.
Assim, pois, havia chegado à concepção de um corvo. O corvo, ave de mau agouro, repetindo obstinadamente a palavra nevermore ao final de cada estância em um poema de tom melancólico e extensão de cerca de cem versos, aproximadamente. Então, sem perder de vista o superlativo ou a perfeição em todos os pontos, perguntei-me: "Dentre todos os temas melancólicos, qual é o maior, segundo o entende universalmente a humanidade?" Resposta inevitável: "A morte". "E quando esse assunto, o mais triste de todos, é também o mais poético?". Segundo o já explicado com bastante amplitude, a resposta me veio facilmente: "Quando ele se alia intimamente com a beleza". Logo a morte de uma bela mulher é, sem dúvida alguma, o tema mais poético do mundo, e parece-me óbvio que a boca mais apta para desenvolver o tema é a do amante privado de seu tesouro.
Teria que combinar, em seguida, aquelas duas idéias: um amante que chora a sua amada morta e um corvo que repete continuamente a palavra nevermore. Não só teria que combiná-las, como teria que variar a aplicação da palavra repetida; mas o único meio possível para semelhante combinação consistia em imaginar um corvo que aplicasse a palavra para responder as perguntas do amante. Então pude tirar vantagem da facilidade que se me oferecia para o efeito do qual meu poema estava dependendo, isto é, o efeito da variação da aplicação. Compreendi que poderia formular a primeira pergunta feita pelo amante, a qual o corvo responderia nevermore; que desta primeira pergunta poderia fazer uma espécie de lugar-comum; da segunda, algo menos comum; da terceira, algo menos comum ainda, e assim sucessivamente, até que por último o amante, arrancado de sua indolência pela índole melancólica da palavra, pela sua freqüente repetição e pela fama sinistra do pássaro, fosse lançado a uma agitação supersticiosa e, loucamente, formulasse perguntas diversas, mas apaixonadamente interessantes ao seu coração; perguntas que dessem a medida exata da superstição e do singular desespero que encontra o prazer em sua própria tortura, não por crer o amante na índole profética ou diabólica da ave (que, segundo lhe demonstra a razão, não faz mais que repetir algo aprendido mecanicamente), mas por experimentar um prazer inusitado ao formulá-las daquele modo, recebendo do nevermore sempre esperado uma ferida deliciosa e insuportável. Vendo semelhante facilidade que se me oferecia ou, melhor dizendo, que se me impunha no transcurso do meu trabalho, decidi primeiro formular a pergunta final, a pergunta definitiva, para a qual o nevermore seria a última resposta, a mais desesperada, plena de dor e sofrimento.
Aqui posso afirmar que meu poema começara pelo fim, como deveriam começar todas as obras de arte. Então, precisamente nesse ponto de minhas meditações, tomei da pena pela primeira vez e compus a seguinte estância:
"Profeta!", falei, "ser maligno, sempre profeta, ave ou demônio,
Pelo céu que nos rodeia, pelo Deus que nós dois adoramos,
Fala a esta pobre alma angustiada se no Éden distante
Poderá abraçar a jovem a quem os anjos chamam Lenora,
Abraçar a bela e rara jovem a quem os anjos chamam Lenora".
O Corvo disse: "Nunca mais".
Só então escrevi essa estância; primeiro, para fixar o ponto supremo e poder, o mais claramente possível, variar, segundo sua gravidade e importância, as perguntas anteriores do amante; e, em segundo lugar, para decidir definitivamente o ritmo, o metro, a extensão e a disposição geral da estrofe, assim como para graduar as que deveriam antecedê-la, de modo que nenhuma a ultrapassasse em seu efeito rítmico. Se, no trabalho de composição que deveria seguir, eu houvesse sido tão imprudente a ponto de escrever estâncias mais vigorosas, eu as debilitaria, conscientemente e sem vacilação alguma, de modo que não interferissem no efeito do crescendo.
Aqui eu bem posso falar algo sobre a versificação. Meu primeiro objetivo era - como sempre - a originalidade. Uma das coisas mais absurdas do mundo é, para mim, ver como a originalidade da versificação tem sido tratada com descaso. Mesmo reconhecendo que no ritmo puro exista pouca possibilidade de variação, é evidente que as variedades em matéria de metro e estância são infinitas; sem embargo, durante séculos, nenhum homem fez alguma coisa de original a respeito da versificação, nem sequer algo parecido. O certo é que a originalidade - excetuando os espíritos de uma força insólita - não é, de maneira alguma, como muitos acreditam, questão de instinto ou de intuição. De um modo geral, só através de muito trabalho pode-se encontrá-la, e embora seja um mérito positivo da mais alta categoria, o espírito de invenção participa menos que o de negação para chegarmos até ela.
Não é preciso afirmar que não pretendi ser original nem no ritmo nem no metro de O Corvo. O primeiro é trocaico; o segundo, um octâmetro acatalético, alternando-se com um heptâmetro catalético que, repetindo-se, vai se converter em estribilho no quinto verso, finalizando com um tetâmetro catalético. Para expressar-me sem pedantismo, os pés empregados, que são troqueus, consistem em uma sílaba longa seguida de uma breve; o primeiro verso da estância é composto de oito pés; o segundo, de sete e meio; o terceiro, de oito; o quarto, de sete e meio; o quinto, também de sete e meio; o sexto, de três e meio. Ora, isolando cada um desses versos, veremos que já foram empregados antes, de maneira que a originalidade de O Corvo consiste na combinação dos mesmos em uma única estância. Até o presente momento, nada foi criado que se lho assemelhe. O efeito dessa combinação original se fortalece mediante alguns outros efeitos inusitados e absolutamente novos, obtidos por uma aplicação mais ampla da rima e da aliteração.
O ponto seguinte a ser considerado era o modo de estabelecer a comunicação entre o amante e o corvo. O primeiro ponto da questão consistia, naturalmente, no lugar. Poderia parecer que devesse brotar espontaneamente a idéia de uma selva ou de um campo, mas tenho sempre afirmado que para se criar o efeito de um incidente insulado, é absolutamente necessário um espaço estreito, pois este ganha a força de uma pintura. Ademais, oferece a vantagem moral de concentrar a atenção em um pequeno âmbito; não é preciso afirmar que esta vantagem não deve ser confundida com a que se obtenha da mera unidade de lugar.
Decidi, em seguida, situar o amante em seu quarto, em um quarto que havia santificado com as recordações da que vivera ali. O quarto é descrito como ricamente mobiliado, a fim de satisfazer as idéias de que já expus acerca da beleza, como a única tese verdadeira da poesia.
Havendo determinado assim o lugar, era preciso introduzir então a ave: a idéia de que esta penetrasse pela janela me parecia inevitável. Que o amante supusesse, no primeiro momento, que o aflar do pássaro contra o postigo fosse uma chamada à sua porta era uma idéia brotada de meu desejo de aumentar a curiosidade do leitor, obrigando-o a aguardar, mas também do desejo de colocar o efeito incidental da porta aberta de par a par pelo amante, que nada mais encontraria que a escuridão, e que pudesse aceitar a ilusão de que o espírito de sua amada estivesse a lhe chamar.
Fiz com que a noite parecesse tempestuosa, primeiro para explicar o motivo do corvo buscar a hospitalidade; segundo para criar o contraste com a serenidade material reinante no interior do quarto.
Fiz também com que a ave pousasse sobre o busto de Palas para estabelecer um contraste entre suas plumas e o mármore. Compreende-se que a idéia do busto foi suscitada unicamente pela ave; que fosse precisamente um busto de Palas para, em primeiro lugar, demonstrar a íntima relação com a erudição do amante e, em segundo lugar, por causa da própria sonoridade do nome Palas.
Até a metade do poema, explorei igualmente a força do contraste com o objetivo de aprofundar aquela que seria a impressão final. Por isso, conferi à entrada do corvo um matiz fantástico, aproximando-se já do cômico, pelo menos até onde meu assunto o permitia. O corvo penetra "a esvoaçar tumultuosamente":
"Não fez nenhuma reverência; não parou, não duvidou,
Mas, como um lord ou uma lady, pousou sobre a minha porta"
Nas duas estâncias seguintes, o propósito se manifesta ainda mais:
Então a ave de ébano induziu minha triste ilusão a sorrir,
Por sua grave postura e pela severidade de seu aspecto;
"Apesar de tua crista ser lisa e rasa," falei, "não és covarde,
Torvo, espectral e antigo Corvo que, errando, vens da noite;
Fala-me qual é o teu nome senhorial na Noite Plutoniana!"
O Corvo disse: "Nunca mais".
Maravilhei-me ao escutar aquela ave desajeitada falar tão bem,
Apesar de sua resposta pouco esclarecedora e relevante;
Porque sabemos que nenhum ser humano ou vivente
Jamais se encantou ao ver um pássaro sobre a sua porta -
Uma ave ou uma besta no busto esculpido sobre a sua porta -
E que se chame "Nunca mais".
Preparado assim o efeito do desenlace, apressei-me em abandonar o tom fingido e adotar o sério, o mais profundo: esta mudança de tom se inicia no primeiro verso da estância que segue a que acabo de citar:
Mas o Corvo, pousado no plácido busto, apenas aquelas, etc.
A partir desse momento, o amante não mais zomba, já não vê nada de fictício no comportamento da ave. Fala dela como uma "espantosa, sinistra, ominosa ave de outrora", e sentia que seus "feros olhos queimavam" o seu "coração". Essa transição do pensamento e essa imaginação do amante têm como finalidade predispor o leitor a outras análogas, conduzindo o espírito até uma posição propícia para o desenlace, que virá tão rápida e diretamente quanto possível.
Com o desenlace propriamente dito, expressado no nevermore do corvo em resposta à última pergunta do amante - encontrará a sua amada no outro mundo? -, pode considerar-se concluído o poema em sua fase mais clara e natural, a de simples narração. Até o presente, tudo tem-se mantido nos limites do explicável e do real. Um corvo que aprendera mecanicamente a palavra nevermore, e que, tendo fugido de seu dono, pede abrigo, à meia-noite, em uma janela onde ainda brilha uma luz, fustigado pela fúria da tempestade; a janela de um estudante ocupado em ler um livro e a sonhar com a sua amada morta. Uma vez aberta a janela, aflando, a ave pousa o mais distante possível do estudante que, divertido pelo incidente, pergunta-lhe, brincando, o seu nome, sem esperar resposta. Mas o corvo, ao ser interrogado, responde com a sua palavra habitual - nevermore -, palavra que imediatamente suscita um eco melancólico no coração do estudante; e este, expressando em voz alta os pensamentos que aquela circunstância lhe sugere, se emociona diante da repetição do nevermore.O estudante se entrega às suposições que o caso lhe inspira, mas o ardor do coração humano não tarda em martirizar-se e, também, por uma espécie de superstição, a formular perguntas à ave, cuja resposta, o intolerável nevermore, lhe proporciona, ao amante, o mais horrível sofrimento. A narração, naquilo que designei como sua primeira fase ou fase natural, tem a sua conclusão precisamente nessa tendência do coração à tortura, levada ao extremo. Até aqui, nada foi mostrado que ultrapasse os limites da realidade.
Mas, nos temas manejados desse modo, por mais habilidade e mais vivas riquezas de incidentes que possua o artista, sempre mostrará um pouco da rudeza ou da nudez que repelem a leitura de uma pessoa sensível. Dois elementos são exigidos eternamente: por um lado, certa suma de complexidade ou, em outras palavras, de combinação; por outro, certa quantidade de espírito sugestivo, algo assim como uma veia subterrânea de pensamento, invisível e indefinida. Esta última quantidade é a que confere à obra de arte o ar opulento que cometemos a estupidez de confundir com o ideal. O que transforma em prosa (e prosa das mais chatas) a pretendida poesia dos que se denominam transcendentalistas, é justamente o excesso na expressão do sentido que só deve ser insinuado, é a mania de converter a corrente subterrânea de uma obra em outra corrente, visível na superfície.
Convencido disso, juntei as duas estâncias que concluem o poema, porque sua qualidade sugestiva haveria de penetrar em toda a narração antecedente. A corrente subterrânea do pensamento se mostra, pela primeira vez, nestes versos:
"Afasta teu bico do meu coração, afasta tua forma de minha porta!"
O Corvo disse: "Nunca mais".
Quero ressaltar que a expressão "do meu coração" encerra a primeira expressão metafórica do poema. Estas palavras, com a resposta correspondente, leva o espírito a buscar um sentido moral em toda a narração que se desenvolvera anteriormente. Então o leitor começa a considerar o corvo como um ser emblemático. Mas só no último verso da última estância pode ver com nitidez a intenção de fazer do corvo o símbolo da recordação fúnebre e eterna:
E o Corvo, ainda imutável, segue pousado, segue pousado
Sobre o pálido busto de Palas, bem sobre a minha porta;
Seus olhos se assemelham aos de um demônio que medita,
E a luz da lâmpada, que o cobre, lança a sua sombra no chão;
E minha alma, daquela sombra que jaz flutuando no chão
Não se levantará... nunca mais!
EDGAR ALLAN POE - 1845
Obs. A tradução das estâncias e/ou dos excertos de certas estâncias do The Raven que aparecem neste ensaio, foram feitas literalmente (Nota do trad.).
*estribilho . [Do esp. estribillo.] S. m. 1. Arte Poét. Verso(s) repetido(s) no fim de cada estrofe de uma composição; refrão, refrém, ritornelo. 2. Fig. Palavra ou expressão que alguém repete muito na conversa ou na escrita; bordão.
Trad. Diego Rafael
Em uma nota que neste momento tenho à vista, Charles Dickens diz o seguinte, referindo-se a uma análise que fiz do mecanismo de Barnaby Rudge: "Sabe que Godwin escreveu seu Caleb Williams de trás para frente? Começou emaranhando a matéria do segundo livro e logo, para compor o primeiro, pensou nos meios de justificar o que havia feito".
Parece-me difícil de acreditar que esse fora precisamente o método de composição de Godwin e, de fato, o que o mesmo confessa não está de acordo, de modo algum, com a idéia do Sr. Dickens. Mas o autor de Caleb Williams era um artista demasiado entendido para deixar de compreender as vantagens que pode obter com algum procedimento semelhante. Eis algo evidente: um plano qualquer que seja digno desse nome só pode ser traçado visando o desenlace antes que a pena ataque o papel. Só quando se tem continuamente presente a idéia do desenlace é que podemos conferir a um plano a sua indispensável aparência lógica e de causalidade, procurando fazer com que todas as incidências e, especialmente, o tom geral tendam a desenvolver a intenção estabelecida.
Creio que existe um erro radical no método empregado para se construir um conto. Algumas vezes, a história nos proporciona uma tese; outras vezes, o escritor é inspirado por um acontecimento contemporâneo; ou, no melhor dos casos, senta-se para combinar os feitos surpreendentes que hão de formar a base de sua narrativa, procurando introduzir as descrições, o diálogo ou o seu comentário pessoal onde quer que um resquício no tecido da ação lhe force a fazê-lo. Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Tendo sempre em vista a originalidade (porque é falso consigo mesmo quem se atreve a desprezar um meio de interesse tão evidente e fácil), digo-me, antes de tudo: "Dentre os inumeráveis efeitos ou impressões que é capaz de receber o coração, a inteligência ou, falando em termos mais gerais, a alma, qual será o único que eu deva eleger no presente caso?" Tendo já elegido um tema novelesco e, depois, um vigoroso efeito, indago se vale mais evidenciar os incidentes ou o tom - ou os incidentes vulgares e um tom particular ou a singularidade tanto dos incidentes, quanto do tom -; logo procuro, em torno de mim, ou melhor, em mim mesmo, as combinações de acontecimentos ou de tons que podem ser mais adequados para criar o efeito em questão.
Tenho pensado quão interessante seria um artigo escrito por um autor que quisesse e que pudesse descrever, passo a passo, a marcha progressiva seguida em qualquer uma de suas obras até chegar ao término definitivo de sua realização. Seria, para mim, impossível explicar por que ainda não foi oferecido ao público um trabalho semelhante; mas talvez a vaidade dos autores seja a causa mais poderosa para justificarmos essa lacuna literária. Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem deixar que acreditemos que escrevem graças a uma espécie de sutil frenesi ou de intuição extática; teriam verdadeiros calafrios se tivessem que permitir ao público dar uma olhadela por trás da cortina, para contemplar os trabalhosos e vacilantes embriões de pensamentos, a verdadeira decisão adotada no último momento, os relances de idéias que durante muito tempo resistem a mostrar-se, o pensamento plenamente maduro mas rejeitado por ser inaproveitável, a eleição prudente e os arrependimentos, as dolorosas emendas e interpolações; em suma, os rolamentos e as rodas, os artifícios para a troca de decoração, as escadas e os alçapões, as penas de galo, as cores, os disfarces e todos os enfeites que em noventa e nove por cento dos casos são o peculiar do histrião literário.
No entanto, sei que não é freqüente um autor estar disposto a reconstruir o caminho por onde chegou a seu desenlace. Geralmente, as idéias surgem mescladas; logo são seguidas e finalmente esquecidas da mesma maneira.
Quanto a mim, não compartilho com a repugnância do que acabo de falar, nem encontro a menor dificuldade em recordar a marcha progressiva de todas as minhas composições. Posto que o interesse dessa análise ou reconstrução, que tenho considerado como um desideratum, é inteiramente independente de qualquer interesse real ou imaginário na coisa analisada, não poderei ser censurado se revelo aqui o modus operandi utilizado para construir uma de minha obras. Escolhi "O Corvo" por ser esta a mais conhecida de todas. Meu propósito consiste em demonstrar que nenhum ponto da composição pode ser atribuído à intuição ou à sorte; e que aquela avançou até seu término, passo a passo, com a mesma exatidão e lógica rigorosa de um problema matemático.
Posto que não responde diretamente à questão poética, esqueçamos a circunstância ou a necessidade de que nasceu a intenção de compor um poema que satisfizesse ao mesmo tempo o gosto popular e o gosto crítico.
Minha análise começa, pois, a partir dessa intenção.
A consideração inicial foi esta: a dimensão. Se uma obra literária é muito extensa para ser lida de uma só assentada, devemos resignar-nos a eliminar o efeito, soberanamente decisivo, da unidade de impressão; porque quando são necessárias duas assentadas, interpõem-se entre elas os assuntos do mundo, e o que chamamos de conjunto ou totalidade cai por terra. Mas, tendo em vista que, coeteris paribus, nenhum poeta pode renunciar a tudo o que contribui para que alcance seu propósito, é importante examinar se há na extensão alguma vantagem, qualquer que seja, que compense a perda da unidade. Respondo logo negativamente. O que chamamos de poema extenso nada mais é do que uma sucessão de poemas curtos, de efeitos poéticos breves. De nada nos serve demonstrar que um poema só o é quando eleva a alma e lhe traz uma excitação intensa: por uma necessidade psíquica, todas as excitações intensas são de curta duração. Por isso, pelo menos a metade do Paraíso Perdido não é mais que pura prosa: há nele uma série de excitações poéticas salpicadas inevitavelmente de depressões. A obra, por causa de sua extensão excessiva, carece daquele elemento artístico tão decisivamente importante: a totalidade ou a unidade de efeito.
No que se refere às dimensões, há, evidentemente, um limite positivo para todas as obras literárias: o limite de uma só sessão. É certo que em alguns gêneros da prosa, como em Robinson Crusoe, não se exige a unidade, porque aquele limite pode ser traspassado. Sem embargo, nunca será conveniente traspassá-lo em um poema. No mesmo limite, a extensão de um poema deve ser muito bem pensada, para manter uma relação matemática com o mérito do mesmo, isto é, com a elevação ou a excitação que comporta; em outras palavras, com a quantidade de autêntico efeito poético com que possa impressionar as almas. Esta regra só tem uma condição restrita, a saber: que uma relativa duração é absolutamente indispensável para causar um efeito, qualquer que seja.
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação que eu não situava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, concebi antes de tudo uma idéia sobre a extensão idônea para o poema projetado: uns cem versos aproximadamente. Na realidade, cento e oito.
Meu pensamento se fixou seguidamente na elevação de uma impressão ou de um efeito que pudesse causar. Aqui creio que convém observar que, através desse trabalho de construção, tive sempre presente a vontade de criar uma obra universalmente apreciável. Iria longe demais se eu demonstrasse, no presente tratado, o que tenho insistido muitas vezes: que o belo é o único âmbito legítimo da poesia. Contudo, direi umas palavras para apresentar meu verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos se apressaram a dissimular. O prazer mais intenso, mais elevado e mais puro não se encontra - segundo creio - mais que na contemplação do belo.Quando os homens falam de beleza, não entendem precisamente uma qualidade, como se supõe, mas uma impressão: em suma, têm presente a violenta e pura elevação da alma - não do intelecto ou do coração -, como já falei, e que resulta da contemplação do belo. Ora, considero a beleza como o âmbito da poesia porque é uma regra evidente da arte que os efeitos deveriam brotar necessariamente de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados com os meios mais apropriados para tal - já que nenhum homem chegou a ser tão estúpido para negar que a elevação singular de que estou tratando se encontra mais facilmente ao alcance da poesia. No entanto, o objetivo verdade, ou satisfação do intelecto, e o objetivo paixão, ou excitação do coração, são muito mais fáceis de se alcançar por meio da prosa - embora, em certa medida, estejam também ao alcance da poesia. Em resumo, a verdade requer uma precisão, e a paixão, uma familiaridade (os homens verdadeiramente apaixonados me compreenderão), radicalmente contrárias àquela beleza, que não é senão a excitação - reafirmo - ou o embriagador arrebatamento da alma.De tudo o que foi dito até agora, não se pode deduzir, de modo algum, que nem a paixão nem a verdade possam ser introduzidas em um poema, senão com benefícios para este, já que podem servir para aclarar ou para potencializar o efeito global, como as dissonâncias na música, pelo contraste. Mas o autêntico artista há de se esforçar sempre, antes de tudo, em reduzi-las a um papel propício ao objetivo pretendido, e depois torneá-las, tanto quanto possível, com o aroma da beleza, que é a atmosfera e a essência do poema.
Por conseqüência, considerando o belo como o meu terreno próprio, perguntei-me: "Qual é o tom para a sua manifestação mais alta?". Este seria o tema de minha seguinte meditação, e toda a experiência humana nos leva a crer que esse tom é o da tristeza. Qualquer que seja seu parentesco, a beleza, em seu desenvolvimento supremo, induz às lágrimas, inevitavelmente, as almas sensíveis. Assim, a melancolia é o mais idôneo dos tons poéticos.
Uma vez determinados a dimensão, o terreno e o tom do meu trabalho, dediquei-me a buscar alguma curiosidade artística de alto grau que pudesse atuar como chave na construção do poema, de algum eixo sobre o qual toda a máquina pudesse girar. Refletindo sobre todos os efeitos conhecidos pela arte ou, mais propriamente, sobre todos os meios de efeito - no sentido cênico -, não poderia deixar de compreender que nenhum havia sido empregado com tanta freqüência quanto o do estribilho*. A universalidade deste bastava para me convencer acerca de seu intrínseco valor, evitando a necessidade de submetê-lo a uma análise. De qualquer modo, eu não o considerava, senão enquanto suscetível de aperfeiçoamento, e tão logo pude perceber que ainda se encontrava em um estado primitivo. Tal como habitualmente é empregado, o estribilho não só é limitado às composições líricas, como a força da impressão que deve causar depende do vigor da monotonia no som e na idéia. Só se pode extrair o prazer mediante a sensação de identidade ou de repetição. Resolvi, desse modo, variar o efeito, com a finalidade de acrescentá-lo, permanecendo fiel à monotonia do som, mas alterando continuamente o da idéia: em outras palavras, procurei causar uma série contínua de efeitos novos com uma série de variadas aplicações do estribilho, deixando que este fosse quase sempre parecido.
Havendo já fixado esses pontos, preocupei-me com a natureza do meu estribilho: posto que sua aplicação tinha de ser variada com freqüência, era evidente que o estribilho em questão teria que ser breve, pois encontraria dificuldades insuperáveis para variar freqüentemente as aplicações de uma frase um pouco extensa. Por outro lado, a facilidade de variação estaria em proporção à brevidade da frase. Isto me conduziu a adotar como estribilho ideal uma única palavra.
Refleti, em seguida, sobre o caráter daquela palavra.Tendo decidido que haveria um estribilho, a divisão do poema em estâncias surgia como um corolário necessário, pois o estribilho constitui a conclusão de cada estrofe. Não havia dúvida para mim que semelhante conclusão ou término, para possuir força, deveria ser necessariamente sonora e suscetível de uma ênfase prolongada.Aquelas considerações me conduziram inevitavelmente ao o prolongado, que é a vogal mais sonora, associada ao r, porque esta é a consoante mais vigorosa.
Já bem determinado o som do estribilho, era preciso, depois, eleger uma palavra que o contivesse e, ao mesmo tempo, estivesse harmoniosamente de acordo com a melancolia que eu havia adotado como tom geral do poema. Seria impossível não se deparar com a palavra nevermore (nunca mais). Na verdade, esta foi a primeira que me veio à mente.
O desideratum seguinte foi este: qual seria o pretexto útil para empregar continuamente a palavra nevermore? Ao ver a dificuldade que se me apresentava para encontrar uma razão válida dessa repetição contínua, não deixei de observar que essa dificuldade surgia tão só de que tal palavra, repetida tão obstinada e monotonamente, seria proferida por um ser humano. Em resumo: a dificuldade consistia em conciliar a monotonia aludida com o exercício da razão na criatura chamada para repetir a palavra. Surgiu então a possibilidade de uma criatura não racional e, sem embargo, dotada de palavra: como é lógico, pensei, de início, em um papagaio; no entanto, este foi imediatamente substituído por um corvo, que também é dotado de palavra e, ademais, está infinitamente mais de acordo com o tom desejado.
Assim, pois, havia chegado à concepção de um corvo. O corvo, ave de mau agouro, repetindo obstinadamente a palavra nevermore ao final de cada estância em um poema de tom melancólico e extensão de cerca de cem versos, aproximadamente. Então, sem perder de vista o superlativo ou a perfeição em todos os pontos, perguntei-me: "Dentre todos os temas melancólicos, qual é o maior, segundo o entende universalmente a humanidade?" Resposta inevitável: "A morte". "E quando esse assunto, o mais triste de todos, é também o mais poético?". Segundo o já explicado com bastante amplitude, a resposta me veio facilmente: "Quando ele se alia intimamente com a beleza". Logo a morte de uma bela mulher é, sem dúvida alguma, o tema mais poético do mundo, e parece-me óbvio que a boca mais apta para desenvolver o tema é a do amante privado de seu tesouro.
Teria que combinar, em seguida, aquelas duas idéias: um amante que chora a sua amada morta e um corvo que repete continuamente a palavra nevermore. Não só teria que combiná-las, como teria que variar a aplicação da palavra repetida; mas o único meio possível para semelhante combinação consistia em imaginar um corvo que aplicasse a palavra para responder as perguntas do amante. Então pude tirar vantagem da facilidade que se me oferecia para o efeito do qual meu poema estava dependendo, isto é, o efeito da variação da aplicação. Compreendi que poderia formular a primeira pergunta feita pelo amante, a qual o corvo responderia nevermore; que desta primeira pergunta poderia fazer uma espécie de lugar-comum; da segunda, algo menos comum; da terceira, algo menos comum ainda, e assim sucessivamente, até que por último o amante, arrancado de sua indolência pela índole melancólica da palavra, pela sua freqüente repetição e pela fama sinistra do pássaro, fosse lançado a uma agitação supersticiosa e, loucamente, formulasse perguntas diversas, mas apaixonadamente interessantes ao seu coração; perguntas que dessem a medida exata da superstição e do singular desespero que encontra o prazer em sua própria tortura, não por crer o amante na índole profética ou diabólica da ave (que, segundo lhe demonstra a razão, não faz mais que repetir algo aprendido mecanicamente), mas por experimentar um prazer inusitado ao formulá-las daquele modo, recebendo do nevermore sempre esperado uma ferida deliciosa e insuportável. Vendo semelhante facilidade que se me oferecia ou, melhor dizendo, que se me impunha no transcurso do meu trabalho, decidi primeiro formular a pergunta final, a pergunta definitiva, para a qual o nevermore seria a última resposta, a mais desesperada, plena de dor e sofrimento.
Aqui posso afirmar que meu poema começara pelo fim, como deveriam começar todas as obras de arte. Então, precisamente nesse ponto de minhas meditações, tomei da pena pela primeira vez e compus a seguinte estância:
"Profeta!", falei, "ser maligno, sempre profeta, ave ou demônio,
Pelo céu que nos rodeia, pelo Deus que nós dois adoramos,
Fala a esta pobre alma angustiada se no Éden distante
Poderá abraçar a jovem a quem os anjos chamam Lenora,
Abraçar a bela e rara jovem a quem os anjos chamam Lenora".
O Corvo disse: "Nunca mais".
Só então escrevi essa estância; primeiro, para fixar o ponto supremo e poder, o mais claramente possível, variar, segundo sua gravidade e importância, as perguntas anteriores do amante; e, em segundo lugar, para decidir definitivamente o ritmo, o metro, a extensão e a disposição geral da estrofe, assim como para graduar as que deveriam antecedê-la, de modo que nenhuma a ultrapassasse em seu efeito rítmico. Se, no trabalho de composição que deveria seguir, eu houvesse sido tão imprudente a ponto de escrever estâncias mais vigorosas, eu as debilitaria, conscientemente e sem vacilação alguma, de modo que não interferissem no efeito do crescendo.
Aqui eu bem posso falar algo sobre a versificação. Meu primeiro objetivo era - como sempre - a originalidade. Uma das coisas mais absurdas do mundo é, para mim, ver como a originalidade da versificação tem sido tratada com descaso. Mesmo reconhecendo que no ritmo puro exista pouca possibilidade de variação, é evidente que as variedades em matéria de metro e estância são infinitas; sem embargo, durante séculos, nenhum homem fez alguma coisa de original a respeito da versificação, nem sequer algo parecido. O certo é que a originalidade - excetuando os espíritos de uma força insólita - não é, de maneira alguma, como muitos acreditam, questão de instinto ou de intuição. De um modo geral, só através de muito trabalho pode-se encontrá-la, e embora seja um mérito positivo da mais alta categoria, o espírito de invenção participa menos que o de negação para chegarmos até ela.
Não é preciso afirmar que não pretendi ser original nem no ritmo nem no metro de O Corvo. O primeiro é trocaico; o segundo, um octâmetro acatalético, alternando-se com um heptâmetro catalético que, repetindo-se, vai se converter em estribilho no quinto verso, finalizando com um tetâmetro catalético. Para expressar-me sem pedantismo, os pés empregados, que são troqueus, consistem em uma sílaba longa seguida de uma breve; o primeiro verso da estância é composto de oito pés; o segundo, de sete e meio; o terceiro, de oito; o quarto, de sete e meio; o quinto, também de sete e meio; o sexto, de três e meio. Ora, isolando cada um desses versos, veremos que já foram empregados antes, de maneira que a originalidade de O Corvo consiste na combinação dos mesmos em uma única estância. Até o presente momento, nada foi criado que se lho assemelhe. O efeito dessa combinação original se fortalece mediante alguns outros efeitos inusitados e absolutamente novos, obtidos por uma aplicação mais ampla da rima e da aliteração.
O ponto seguinte a ser considerado era o modo de estabelecer a comunicação entre o amante e o corvo. O primeiro ponto da questão consistia, naturalmente, no lugar. Poderia parecer que devesse brotar espontaneamente a idéia de uma selva ou de um campo, mas tenho sempre afirmado que para se criar o efeito de um incidente insulado, é absolutamente necessário um espaço estreito, pois este ganha a força de uma pintura. Ademais, oferece a vantagem moral de concentrar a atenção em um pequeno âmbito; não é preciso afirmar que esta vantagem não deve ser confundida com a que se obtenha da mera unidade de lugar.
Decidi, em seguida, situar o amante em seu quarto, em um quarto que havia santificado com as recordações da que vivera ali. O quarto é descrito como ricamente mobiliado, a fim de satisfazer as idéias de que já expus acerca da beleza, como a única tese verdadeira da poesia.
Havendo determinado assim o lugar, era preciso introduzir então a ave: a idéia de que esta penetrasse pela janela me parecia inevitável. Que o amante supusesse, no primeiro momento, que o aflar do pássaro contra o postigo fosse uma chamada à sua porta era uma idéia brotada de meu desejo de aumentar a curiosidade do leitor, obrigando-o a aguardar, mas também do desejo de colocar o efeito incidental da porta aberta de par a par pelo amante, que nada mais encontraria que a escuridão, e que pudesse aceitar a ilusão de que o espírito de sua amada estivesse a lhe chamar.
Fiz com que a noite parecesse tempestuosa, primeiro para explicar o motivo do corvo buscar a hospitalidade; segundo para criar o contraste com a serenidade material reinante no interior do quarto.
Fiz também com que a ave pousasse sobre o busto de Palas para estabelecer um contraste entre suas plumas e o mármore. Compreende-se que a idéia do busto foi suscitada unicamente pela ave; que fosse precisamente um busto de Palas para, em primeiro lugar, demonstrar a íntima relação com a erudição do amante e, em segundo lugar, por causa da própria sonoridade do nome Palas.
Até a metade do poema, explorei igualmente a força do contraste com o objetivo de aprofundar aquela que seria a impressão final. Por isso, conferi à entrada do corvo um matiz fantástico, aproximando-se já do cômico, pelo menos até onde meu assunto o permitia. O corvo penetra "a esvoaçar tumultuosamente":
"Não fez nenhuma reverência; não parou, não duvidou,
Mas, como um lord ou uma lady, pousou sobre a minha porta"
Nas duas estâncias seguintes, o propósito se manifesta ainda mais:
Então a ave de ébano induziu minha triste ilusão a sorrir,
Por sua grave postura e pela severidade de seu aspecto;
"Apesar de tua crista ser lisa e rasa," falei, "não és covarde,
Torvo, espectral e antigo Corvo que, errando, vens da noite;
Fala-me qual é o teu nome senhorial na Noite Plutoniana!"
O Corvo disse: "Nunca mais".
Maravilhei-me ao escutar aquela ave desajeitada falar tão bem,
Apesar de sua resposta pouco esclarecedora e relevante;
Porque sabemos que nenhum ser humano ou vivente
Jamais se encantou ao ver um pássaro sobre a sua porta -
Uma ave ou uma besta no busto esculpido sobre a sua porta -
E que se chame "Nunca mais".
Preparado assim o efeito do desenlace, apressei-me em abandonar o tom fingido e adotar o sério, o mais profundo: esta mudança de tom se inicia no primeiro verso da estância que segue a que acabo de citar:
Mas o Corvo, pousado no plácido busto, apenas aquelas, etc.
A partir desse momento, o amante não mais zomba, já não vê nada de fictício no comportamento da ave. Fala dela como uma "espantosa, sinistra, ominosa ave de outrora", e sentia que seus "feros olhos queimavam" o seu "coração". Essa transição do pensamento e essa imaginação do amante têm como finalidade predispor o leitor a outras análogas, conduzindo o espírito até uma posição propícia para o desenlace, que virá tão rápida e diretamente quanto possível.
Com o desenlace propriamente dito, expressado no nevermore do corvo em resposta à última pergunta do amante - encontrará a sua amada no outro mundo? -, pode considerar-se concluído o poema em sua fase mais clara e natural, a de simples narração. Até o presente, tudo tem-se mantido nos limites do explicável e do real. Um corvo que aprendera mecanicamente a palavra nevermore, e que, tendo fugido de seu dono, pede abrigo, à meia-noite, em uma janela onde ainda brilha uma luz, fustigado pela fúria da tempestade; a janela de um estudante ocupado em ler um livro e a sonhar com a sua amada morta. Uma vez aberta a janela, aflando, a ave pousa o mais distante possível do estudante que, divertido pelo incidente, pergunta-lhe, brincando, o seu nome, sem esperar resposta. Mas o corvo, ao ser interrogado, responde com a sua palavra habitual - nevermore -, palavra que imediatamente suscita um eco melancólico no coração do estudante; e este, expressando em voz alta os pensamentos que aquela circunstância lhe sugere, se emociona diante da repetição do nevermore.O estudante se entrega às suposições que o caso lhe inspira, mas o ardor do coração humano não tarda em martirizar-se e, também, por uma espécie de superstição, a formular perguntas à ave, cuja resposta, o intolerável nevermore, lhe proporciona, ao amante, o mais horrível sofrimento. A narração, naquilo que designei como sua primeira fase ou fase natural, tem a sua conclusão precisamente nessa tendência do coração à tortura, levada ao extremo. Até aqui, nada foi mostrado que ultrapasse os limites da realidade.
Mas, nos temas manejados desse modo, por mais habilidade e mais vivas riquezas de incidentes que possua o artista, sempre mostrará um pouco da rudeza ou da nudez que repelem a leitura de uma pessoa sensível. Dois elementos são exigidos eternamente: por um lado, certa suma de complexidade ou, em outras palavras, de combinação; por outro, certa quantidade de espírito sugestivo, algo assim como uma veia subterrânea de pensamento, invisível e indefinida. Esta última quantidade é a que confere à obra de arte o ar opulento que cometemos a estupidez de confundir com o ideal. O que transforma em prosa (e prosa das mais chatas) a pretendida poesia dos que se denominam transcendentalistas, é justamente o excesso na expressão do sentido que só deve ser insinuado, é a mania de converter a corrente subterrânea de uma obra em outra corrente, visível na superfície.
Convencido disso, juntei as duas estâncias que concluem o poema, porque sua qualidade sugestiva haveria de penetrar em toda a narração antecedente. A corrente subterrânea do pensamento se mostra, pela primeira vez, nestes versos:
"Afasta teu bico do meu coração, afasta tua forma de minha porta!"
O Corvo disse: "Nunca mais".
Quero ressaltar que a expressão "do meu coração" encerra a primeira expressão metafórica do poema. Estas palavras, com a resposta correspondente, leva o espírito a buscar um sentido moral em toda a narração que se desenvolvera anteriormente. Então o leitor começa a considerar o corvo como um ser emblemático. Mas só no último verso da última estância pode ver com nitidez a intenção de fazer do corvo o símbolo da recordação fúnebre e eterna:
E o Corvo, ainda imutável, segue pousado, segue pousado
Sobre o pálido busto de Palas, bem sobre a minha porta;
Seus olhos se assemelham aos de um demônio que medita,
E a luz da lâmpada, que o cobre, lança a sua sombra no chão;
E minha alma, daquela sombra que jaz flutuando no chão
Não se levantará... nunca mais!
EDGAR ALLAN POE - 1845
Obs. A tradução das estâncias e/ou dos excertos de certas estâncias do The Raven que aparecem neste ensaio, foram feitas literalmente (Nota do trad.).
*estribilho . [Do esp. estribillo.] S. m. 1. Arte Poét. Verso(s) repetido(s) no fim de cada estrofe de uma composição; refrão, refrém, ritornelo. 2. Fig. Palavra ou expressão que alguém repete muito na conversa ou na escrita; bordão.
domingo, 22 de agosto de 2010
SÉRIE PENSAMENTOS IMPORTANTES( 5 )
Certa vez, um bravo homem imaginou que, se os homens se afogavam, era unicamente porque estavam possuídos pela idéia da gravidade. Se retirassem da cabeça tal representação, declarando, por exemplo, que se tratava de uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam livres de todo perigo de afogamento. Durante toda sua vida lutou contra essa ilusão da gravidade, cujas consequências perniciosas todas as estatísticas lhe mostravam, por meio de provas numerosas e repetidas.
Karl Marx
Karl Marx
sábado, 21 de agosto de 2010
O QUE É O MITO?( 5 )
O MITO DA CAVERNA( Platão )
Imaginemos homens que vivam numa caverna cuja entrada se abre para a luz em toda a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Imaginemos que esta caverna seja habitada, e seus habitantes tenham as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e tenham de olhar apenas para o fundo da caverna, onde há uma parede. Imaginemos ainda que, bem em frente da entrada da caverna, exista um pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro, se movam homens carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e madeira, representando os mais diversos tipos de coisas. Imaginemos também que, por lá, no alto, brilhe o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza ecos e que os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna.
Se fosse assim, certamente os habitantes da caverna nada poderiam ver além das sombras das pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Entretanto, por nunca terem visto outra coisa, eles acreditariam que aquelas sombras, que eram cópias imperfeitas de objetos reais, eram a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes seriam o som real das vozes emitidas pelas sombras. Suponhamos, agora, que um daqueles habitantes consiga se soltar das correntes que o prendem. Com muita dificuldade e sentindo-se frequentemente tonto, ele se voltaria para a luz e começaria a subir até a entrada da caverna. Com muita dificuldade e sentindo-se perdido, ele começaria a se habituar à nova visão com a qual se deparava. Habituando os olhos e os ouvidos, ele veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro e, após formular inúmeras hipóteses, por fim compreenderia que elas possuem mais detalhes e são muito mais belas que as sombras que antes via na caverna, e que agora lhes parece algo irreal ou limitado. Suponhamos que alguém o traga para o outro lado do muro. Primeiramente ele ficaria ofuscado e amedrontado pelo excesso de luz; depois, habituando-se, veria as várias coisas em si mesmas; e, por último, veria a própria luz do sol refletida em todas as coisas. Compreenderia, então, que estas e somente estas coisas seriam a realidade e que o sol seria a causa de todas as outras coisas. Mas ele se entristeceria se seus companheiros da caverna ficassem ainda em sua obscura ignorância acerca das causas últimas das coisas. Assim, ele, por amor, voltaria à caverna a fim de libertar seus irmãos do julgo da ignorância e dos grilhões que os prendiam. Mas, quando volta, ele é recebido como um louco que não reconhece ou não mais se adapta à realidade que eles pensam ser a verdadeira: a realidade das sombras. E, então, eles o desprezariam...
Imaginemos homens que vivam numa caverna cuja entrada se abre para a luz em toda a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Imaginemos que esta caverna seja habitada, e seus habitantes tenham as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e tenham de olhar apenas para o fundo da caverna, onde há uma parede. Imaginemos ainda que, bem em frente da entrada da caverna, exista um pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro, se movam homens carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e madeira, representando os mais diversos tipos de coisas. Imaginemos também que, por lá, no alto, brilhe o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza ecos e que os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna.
Se fosse assim, certamente os habitantes da caverna nada poderiam ver além das sombras das pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco das vozes. Entretanto, por nunca terem visto outra coisa, eles acreditariam que aquelas sombras, que eram cópias imperfeitas de objetos reais, eram a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes seriam o som real das vozes emitidas pelas sombras. Suponhamos, agora, que um daqueles habitantes consiga se soltar das correntes que o prendem. Com muita dificuldade e sentindo-se frequentemente tonto, ele se voltaria para a luz e começaria a subir até a entrada da caverna. Com muita dificuldade e sentindo-se perdido, ele começaria a se habituar à nova visão com a qual se deparava. Habituando os olhos e os ouvidos, ele veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro e, após formular inúmeras hipóteses, por fim compreenderia que elas possuem mais detalhes e são muito mais belas que as sombras que antes via na caverna, e que agora lhes parece algo irreal ou limitado. Suponhamos que alguém o traga para o outro lado do muro. Primeiramente ele ficaria ofuscado e amedrontado pelo excesso de luz; depois, habituando-se, veria as várias coisas em si mesmas; e, por último, veria a própria luz do sol refletida em todas as coisas. Compreenderia, então, que estas e somente estas coisas seriam a realidade e que o sol seria a causa de todas as outras coisas. Mas ele se entristeceria se seus companheiros da caverna ficassem ainda em sua obscura ignorância acerca das causas últimas das coisas. Assim, ele, por amor, voltaria à caverna a fim de libertar seus irmãos do julgo da ignorância e dos grilhões que os prendiam. Mas, quando volta, ele é recebido como um louco que não reconhece ou não mais se adapta à realidade que eles pensam ser a verdadeira: a realidade das sombras. E, então, eles o desprezariam...
O POLICIAL NA LITERATURA - PARTE 2
O POLICIAL NA LITERATURA – PARTE 2
Por Jorge Lobo
O ROMANCE NEGRO( e por extensão, o conto )
- Seu criador foi Dashiel Hammett ( década de 20, revista Black Mask, onde era pago por palavras )
CARACTERÍSTICAS:
- Crítica ético-político-social: alegoria da nossa sociedade e de suas mazelas.
- Pessimismo.
- A Imoralidade ou amoralidade são admitidas e não aparecem apenas como contraponto da moralidade convencional.
- O detetive é falível, não resolve sempre o mistério e a explicação final não é inquestionável.
- Rompimento da estrutura da dupla história: nem sempre há mistério, embora ele exista em alguns casos. Nesses casos, porém, sua importância é secundária.
- Ação violenta.
- O amor tem vez nesse tipo de história e ele muitas vezes é bestial.
- Ódios ardentes.
- Presença de gírias e palavrões.
- Linguagem coloquial.
- Vê-se o humor com frequência.
- O detetive é um profissional.
- O narrador ou é impessoal e indefinido ou, como acontece na maioria das vezes é o próprio protagonista. A narrativa se dá no presente, o narrador e o receptor estão passo a passo . Além disso, o narrador é não-introspectivo, abrindo a possibilidade de inferirmos sobre as características das personagens.
- O detetive não tem imunidade garantida.
- O detetive não é fino, não é elegante e nem sutil.
Assim como Van Dine, um outro escritor de livros policiais, Raymond Chandler, também enumerou algumas regras para o romance policial. Por ser chandler adepto do policial noir, essas formulações ,que foram resumidas por Fr. Lacasin, trazem um ponto de vista diferente do de Van Dine:
1)A situação original e o desfecho devem ter motivos plausíveis;
2)Os erros técnicos sobre os métodos do assassinato ou da investigação não são mais admissíveis;
3)Personagens, ambiências e atmosfera devem ser realistas;
4)A intriga deve ser solidamente escrita e ter um interese enquanto história;
5)A estrutura deve ser bastante simples para que a explicação final seja a mais breve possível e acessível a todos;
6)A solução deve parecer inevitável, possível e não trucada;
7)É preciso escolher entre duas óticas inconciliáveis : história de enigma ou aventura violenta;
8)O criminoso sempre deve ser punido; não forçosamente por um tribunal;
9)É preciso ser honesto com relação ao leitor e não ocultar-lhe nenhum dado.
Exemplos de autores: Dashiel hammett, Raymond Chandler, James H. Chase, Ross macdonald
Por Jorge Lobo
O ROMANCE NEGRO( e por extensão, o conto )
- Seu criador foi Dashiel Hammett ( década de 20, revista Black Mask, onde era pago por palavras )
CARACTERÍSTICAS:
- Crítica ético-político-social: alegoria da nossa sociedade e de suas mazelas.
- Pessimismo.
- A Imoralidade ou amoralidade são admitidas e não aparecem apenas como contraponto da moralidade convencional.
- O detetive é falível, não resolve sempre o mistério e a explicação final não é inquestionável.
- Rompimento da estrutura da dupla história: nem sempre há mistério, embora ele exista em alguns casos. Nesses casos, porém, sua importância é secundária.
- Ação violenta.
- O amor tem vez nesse tipo de história e ele muitas vezes é bestial.
- Ódios ardentes.
- Presença de gírias e palavrões.
- Linguagem coloquial.
- Vê-se o humor com frequência.
- O detetive é um profissional.
- O narrador ou é impessoal e indefinido ou, como acontece na maioria das vezes é o próprio protagonista. A narrativa se dá no presente, o narrador e o receptor estão passo a passo . Além disso, o narrador é não-introspectivo, abrindo a possibilidade de inferirmos sobre as características das personagens.
- O detetive não tem imunidade garantida.
- O detetive não é fino, não é elegante e nem sutil.
Assim como Van Dine, um outro escritor de livros policiais, Raymond Chandler, também enumerou algumas regras para o romance policial. Por ser chandler adepto do policial noir, essas formulações ,que foram resumidas por Fr. Lacasin, trazem um ponto de vista diferente do de Van Dine:
1)A situação original e o desfecho devem ter motivos plausíveis;
2)Os erros técnicos sobre os métodos do assassinato ou da investigação não são mais admissíveis;
3)Personagens, ambiências e atmosfera devem ser realistas;
4)A intriga deve ser solidamente escrita e ter um interese enquanto história;
5)A estrutura deve ser bastante simples para que a explicação final seja a mais breve possível e acessível a todos;
6)A solução deve parecer inevitável, possível e não trucada;
7)É preciso escolher entre duas óticas inconciliáveis : história de enigma ou aventura violenta;
8)O criminoso sempre deve ser punido; não forçosamente por um tribunal;
9)É preciso ser honesto com relação ao leitor e não ocultar-lhe nenhum dado.
Exemplos de autores: Dashiel hammett, Raymond Chandler, James H. Chase, Ross macdonald
O POLICIAL NA LITERATURA - PARTE 1
O POLICIAL NA LITERATURA – PARTE 1
Por Jorge Lobo
ORIGEM
- Surge no século XIX e seu criador é Edgar Allan Poe com “Assassinatos na Rua Morgue”.
- A imprensa exerceu papel decisivo, pois foi no séc. XIX que surgiram os jornais populares de grande tiragem que publicavam notícias sobre crimes raros, inexplicáveis. Porque os leitores se interessavam? Desafio do mistério, atração mórbida pela desgraça alheia e sentimento de justiça violada que requer, então, reparos são as molas do interesse do público e foi se aproveitando do surgimento desse público que o policial pôde nascer.
- No plano ideológico, o Positivismo, com sua afirmação básica de que os fenômenos são regidos por leis influencia a proposta literária de Poe: substituição da intuição e do acaso pela precisão e rigor lógico;a história deve ser escrita ao contrário, de trás pra frente pra que os incidentes convirjam para o fim almejado(leia A Filosofia da Composição e entenda melhor).
- Concepção(surgida no séc. XIX) do criminoso como um inimigo social, o que também mexia com as paixões do público e atraía seu interesse para os textos policiais.
- Desconfiança da população com relação à polícia, formada por ex-contraventores: todos os primeiros detetives dos livros policiais não pertenciam à polícia.
O ROMANCE DE ENIGMA( e por extensão, o conto )
- Esse tipo de história policial obedece à seguinte estrutura:
- Presença de 2 histórias, a do crime(real mas ausente) e a do inquérito(presente, mas insignificante).A primeira, não pode estar presente no livro, pois ela será reconstituída pela segunda com os dias do inquérito em que o detetive reconstruirá os fatos que levaram ao crime através do raciocínio.
- Imunidade do detetive.
- Narração dos acontecimentos feita por um narrador, que é amigo e memorialista do detetive(exemplos: Watson para Sherlock Holmes, Capitão Hastings para Hercule Poirot, o narrador sem nome para Dupin). Se trata de roconstrituir um crime pasado e seu desvendamento. Se a narrativa fosse elaborada pelo detetive, o leitor saberia exatamente o que ele pensa e o mistério, o desafio ao leitor, a revelação final deixariam de existir. Além disso, essas personagens intensificam o halo de admiração que rodeia o detetive.
- Moralidade convencional. A imoralidade existe sim, mas para fazer contraponto com a moralidade convencional.
- Otimismo.
- Caracterização do detetive como uma máquina de raciocinar, sempre pronta a fazer leituras de índices, pistas, vestígios para desvendar o enigma(o que sempre acontece) e oferecer uma explicação conclusiva tranquilizadora e não-ambígua.
- Violência amenizada.
- A maioria dos detives são finos, elegantes, sutis.
- O detetive, apesar de sua argúcia, não é um profissional.
Além disso, existem as regras de Van dine:
Regras de Van Dine
O autor de romances policiais S.S. Van Dine enunciou, em 1928, 20 regras que devem ser seguidas por todo autor do gênero. Elas foram resumidas a oito - por achá-las redundantes - por Tzvetan Todorov em seu ensaio “Tipologia do romance policial” incluído em As estruturas narrativas:
l. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no mínimo uma vítima (um cadáver).
2. O culpado não deve ser um criminoso profissional, não deve ser o detetive; deve matar por motivos pessoais.
3. O amor não tem lugar no romance policial.
4. O culpado deve gozar de certa importância: a) na vida: não ser um empregado ou uma camareira; b) no livro: ser um dos personagens principais.
5. Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido.
6. Não há lugar para descrições nem para análises psicológicas.
7. É preciso conformar-se à seguinte homologia, quanto às informações sobre a história: autor : leitor = culpado : detetive.
8. É preciso evitar as situações e as soluções banais, Van Dine enumera 10 delas:
1)A descoberta da identidade do culpado, comparando uma ponta de cigarro encontrada no local do crime às que fuma um suspeito;
2)A sessão espírita trucada, no decorrer da qual o criminoso, tomado de terror, se denuncia;
3)As falsas impressões digitais;
4)O álibi construído por meio de um manequim;
5)O cão que não late, revelando assim que o intruso é um familiar do local;
6)O culpado, irmão gêmeo do suspeito ou um parente que se parece com ele a ponto de levar a engano;
7)A seringa hipodérmica e o soro da verdade;
8)O assassinato cometido numa peça fechada, na presença dos representantes da polícia;
9)O emprego das associações de palavras para descobrir o culpado;
10)A decifração de um criptograma pelo detetive ou a descoberta de um código cifrado.
Nota – As regras 1 a 8 se aplicam ao romance de enigma, enquanto as regras 4 b a 6 e a 8 se aplicam ao romance negro.Lembrando que o próprio Van Dine nem sempre respeitou suas próprias regras.
Exemplos de autores do romance de enigma: Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, S. S. Van Dine, Rex Stout.
Por Jorge Lobo
ORIGEM
- Surge no século XIX e seu criador é Edgar Allan Poe com “Assassinatos na Rua Morgue”.
- A imprensa exerceu papel decisivo, pois foi no séc. XIX que surgiram os jornais populares de grande tiragem que publicavam notícias sobre crimes raros, inexplicáveis. Porque os leitores se interessavam? Desafio do mistério, atração mórbida pela desgraça alheia e sentimento de justiça violada que requer, então, reparos são as molas do interesse do público e foi se aproveitando do surgimento desse público que o policial pôde nascer.
- No plano ideológico, o Positivismo, com sua afirmação básica de que os fenômenos são regidos por leis influencia a proposta literária de Poe: substituição da intuição e do acaso pela precisão e rigor lógico;a história deve ser escrita ao contrário, de trás pra frente pra que os incidentes convirjam para o fim almejado(leia A Filosofia da Composição e entenda melhor).
- Concepção(surgida no séc. XIX) do criminoso como um inimigo social, o que também mexia com as paixões do público e atraía seu interesse para os textos policiais.
- Desconfiança da população com relação à polícia, formada por ex-contraventores: todos os primeiros detetives dos livros policiais não pertenciam à polícia.
O ROMANCE DE ENIGMA( e por extensão, o conto )
- Esse tipo de história policial obedece à seguinte estrutura:
- Presença de 2 histórias, a do crime(real mas ausente) e a do inquérito(presente, mas insignificante).A primeira, não pode estar presente no livro, pois ela será reconstituída pela segunda com os dias do inquérito em que o detetive reconstruirá os fatos que levaram ao crime através do raciocínio.
- Imunidade do detetive.
- Narração dos acontecimentos feita por um narrador, que é amigo e memorialista do detetive(exemplos: Watson para Sherlock Holmes, Capitão Hastings para Hercule Poirot, o narrador sem nome para Dupin). Se trata de roconstrituir um crime pasado e seu desvendamento. Se a narrativa fosse elaborada pelo detetive, o leitor saberia exatamente o que ele pensa e o mistério, o desafio ao leitor, a revelação final deixariam de existir. Além disso, essas personagens intensificam o halo de admiração que rodeia o detetive.
- Moralidade convencional. A imoralidade existe sim, mas para fazer contraponto com a moralidade convencional.
- Otimismo.
- Caracterização do detetive como uma máquina de raciocinar, sempre pronta a fazer leituras de índices, pistas, vestígios para desvendar o enigma(o que sempre acontece) e oferecer uma explicação conclusiva tranquilizadora e não-ambígua.
- Violência amenizada.
- A maioria dos detives são finos, elegantes, sutis.
- O detetive, apesar de sua argúcia, não é um profissional.
Além disso, existem as regras de Van dine:
Regras de Van Dine
O autor de romances policiais S.S. Van Dine enunciou, em 1928, 20 regras que devem ser seguidas por todo autor do gênero. Elas foram resumidas a oito - por achá-las redundantes - por Tzvetan Todorov em seu ensaio “Tipologia do romance policial” incluído em As estruturas narrativas:
l. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no mínimo uma vítima (um cadáver).
2. O culpado não deve ser um criminoso profissional, não deve ser o detetive; deve matar por motivos pessoais.
3. O amor não tem lugar no romance policial.
4. O culpado deve gozar de certa importância: a) na vida: não ser um empregado ou uma camareira; b) no livro: ser um dos personagens principais.
5. Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido.
6. Não há lugar para descrições nem para análises psicológicas.
7. É preciso conformar-se à seguinte homologia, quanto às informações sobre a história: autor : leitor = culpado : detetive.
8. É preciso evitar as situações e as soluções banais, Van Dine enumera 10 delas:
1)A descoberta da identidade do culpado, comparando uma ponta de cigarro encontrada no local do crime às que fuma um suspeito;
2)A sessão espírita trucada, no decorrer da qual o criminoso, tomado de terror, se denuncia;
3)As falsas impressões digitais;
4)O álibi construído por meio de um manequim;
5)O cão que não late, revelando assim que o intruso é um familiar do local;
6)O culpado, irmão gêmeo do suspeito ou um parente que se parece com ele a ponto de levar a engano;
7)A seringa hipodérmica e o soro da verdade;
8)O assassinato cometido numa peça fechada, na presença dos representantes da polícia;
9)O emprego das associações de palavras para descobrir o culpado;
10)A decifração de um criptograma pelo detetive ou a descoberta de um código cifrado.
Nota – As regras 1 a 8 se aplicam ao romance de enigma, enquanto as regras 4 b a 6 e a 8 se aplicam ao romance negro.Lembrando que o próprio Van Dine nem sempre respeitou suas próprias regras.
Exemplos de autores do romance de enigma: Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, S. S. Van Dine, Rex Stout.
ENTREVISTA COM ANDRÉ SETARO( 2010 )
Entrevista com André Setaro, do site Setaro's Blog
Entevista colhida no site Setaro's blog
André Setaro é um amante do cinema. Dizer isso é mais importante e verdadeiro que dizer que ele é um dos maiores críticos de cinema do país. Mas ele também é isso. Sempre emoldurado por indefectíveis óculos de sol, Setaro, que também é professor de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, deixa entrever nos reflexos de sua fala uma certa nostalgia. Entretanto, não quer ver a humanidade andando para trás e apóia o uso de novas ferramentas para a construção do cinema. “Tudo é válido. Desde que haja talento”, diz. Neste papo, André Setaro fala sobre o início da sua relação com as imagens em movimento, de estética, pipoca, Hollywood, Globo Filmes, e, entre outras coisas, confecciona uma lista pessoal para quem pretende entender a cinematografia brasileira.
JM – Uma pergunta para se fazer a um crítico antigo: ainda existe crítica de cinema no Brasil?
AS – A grande crítica de cinema já morreu! Aquela que existia nos suplementos literários dos jornais, até mesmo aqui da Bahia, que escrevia textos grandes, reflexões, verdadeiros ensaios sobre o cinema, esta crítica já não existe mais. Inclusive pela própria transformação do jornalismo, que cada vez mais apequena os textos. Veja que agora mesmo tivemos o fim do Suplemento Cultural de A Tarde, que bem ou mal, dava um espaço... era bom.
JM – Nelson Rodrigues dizia que ‘os idiotas da objetividade’ inventaram o copy-desk e mesmo que o mundo se acabasse isso teria de ser noticiado de maneira direta, curta e impassível. Você acha que esse mundo moderno e veloz tem impedido a reflexão mais profunda?
AS – É claro que sim, a comunicação hoje se faz através de monossílabos, vide o MSN. Pelo que eu tenho observado, não há uma enunciação de um pensamento, uma interlocução. O sujeito só fala ‘Ah!’, ‘Tá Bom’, ‘É’... Não se debate idéias.
JM – Mas você tem uma coluna no Terra, de cinema. Você se preocupa com o tamanho dos textos que saem ali, ou escreve tudo o que considera necessário?
AS – Geralmente duas laudas. Duas laudas e meia, se for o caso. Mas também a morte da crítica, por assim dizer, vem acompanhada da morte do cinema. Porque o cinema decaiu muito. A indústria cultural hollywoodiana , com as honrosas exceções de praxe, produz um lixo cultural imenso, não é? Um cinema de ação ininterrupta, etc. Evidentemente que existem ainda bons filmes, Entre os Muros da Escola, Grand Torino... JM – Aproveitando que você falou em bons filmes, quero saber como e quando começou a sua relação com o cinema e porque fazer crítica e não filmes?
AS – Bem, a minha relação com o cinema começa quando eu comecei a ir ao cinema, aos sete anos de idade.
JM – (interrompendo) Já existia cinema (risos)? AS – (mais risos) O cinema existia! E existia de uma maneira mágica! E eu me atraí. Então eu tenho 59 [anos], veja bem, há mais de cinqüenta anos que eu vou ao cinema. É muito não é? Uma estrada já longuíssima. Eu comecei freqüentar o cinema e depois, adolescente, passei a freqüentar o Clube de Cinema da Bahia, ficava ouvindo Walter da Silveira falar sobre os filmes... aí eu comecei a entender que o cinema, além de uma grande diversão, era também uma expressão artística, e passei a ver aqueles filmes de Michelangelo Antonioni, a Nouvelle Vague, Jean Luc Godard, François Truffaut, Federico Fellini, cinema japonês, Akira Kurosawa, Alain Resnais, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Aí comecei a rabiscar, até que em 1974 eu ingressei na Tribuna da Bahia e comecei a fazer críticas diárias. Eu tinha uma coluna diária, na Tribuna, grande, um tijolo [simula um tamanho com as mãos], por 20 anos! Eu ía ao cinema todos os dias e tinha que elaborar um texto diariamente... foi assim que começou.
JM - E por que não fazer filmes?
AS – Eu já participei de filmes como assistente de direção, fiz pontas como ator... mas eu sou um sujeito muito preguiçoso, a verdade é essa. E o cinema dá muito trabalho. Para fazer um filme você tem que se jogar mesmo, de corpo e alma, e como eu sou preguiçoso... Eu já tive idéias, já comecei, fiz o roteiro, mas não ía até o fim.
JM – Melhor fazer crítica que é mais fácil (risos).
AS – [rindo] Mas não tem esse negócio de que crítico é cineasta frustrado. Isso é balela. Eu sou um apreciador do bom cinema.
JM – E afinal de contas existe mesmo um cinema baiano ou isso é narcisismo local?
AS – Não. O cinema baiano não existe porque para a existência de uma cinematografia é necessário que haja uma produção continuada. Existem sim, filmes baianos. Mas não existe uma cinematografia baiana estabelecida. Falta principalmente infra-estrutura para se ter uma continuidade de produção.
JM – Claro, mas e a restauração de Redenção, do Roberto Pires, você considera isso importante?
AS – Importantíssimo! Por que foi o primeiro filme baiano de longa-metragem e um trabalho artesanal que denota um rigor... uma procura de uma expressão pelas imagens em movimento numa época em que não existia possibilidade nenhuma na Bahia, tudo tinha que ser feito no Rio [de Janeiro], revelação, a compra de filme virgem era difícil... Então foi um trabalho de Hércules se fazer Redenção. Embora o filme seja um ‘policial’ meio amadorístico. Mas é muito importante essa restauração. É a memória não é? Além do mais é a memória não só do cinema mas de uma Bahia daquela época.
JM - E o cinema tem essa ligação com a memória muito grande, não é? Ele é um instrumento para armazenar imagens de uma época. Ele tem esse poder.
AS – Claro, ele tem esse poder. Por exemplo, os filmes dos anos 40, 50, você vê como era a sociedade daquela época, como as pessoas se vestiam, os costumes, os gestos. Um dia desses eu estava reparando como o tom gestual era diferente do de hoje, que é uam coisa mais largada. Era mais formal, existia uma convenção das normas comportamentais.
JM – Em entrevista recente, o poeta Décio Pignatari comentou que a poesia concreta foi o fim do verso tanto quanto a televisão foi o fim do cinema. E soltou a piada: “o Brasil nem chegou a fazer grande cinema e o cinema já acabou”. Quero que você comente essa declaração.
AS – É uma declaração um pouco frase de efeito e radical. Por que o surgimento da televisão abalou muito a indústria cinematográfica, mas não matou o cinema.
JM – Mas eu acho que o que o Décio disse também vai por este caminho, já que a poesia concreta abalou e modificou, resignificou o verso, mas não acabou o verso. Neste sentido você acha que o surgimento da televisão obrigou o cinema a se reestruturar, se adequar a novas linguagens, a novos mecanismos de captação e edição de imagens? Como você vê essa relação cinema-televisão? Hoje em dia se reclama muito que, por exemplo, os filmes produzidos pela Globo Filmes ficam parecendo produções televisivas. AS - Quando a televisão surgiu e os americanos começaram a fazer muitos seriados, o cinema precisou se reciclar, no sentido de dar mais agilidade aos filmes, para concorrer. Até mesmo Psicose, de Hitchcock, é um filme feito com orçamento de televisão. Um filme barato, como se fosse um filme de televisão, e se tornou uma obra-prima. Basta dizer que, quando a televisão surgiu nos Estados Unidos, metade dos cinemas fechou as suas portas. Então a indústria ficou muito tocada... e colocou o ‘cinemascope’, que já existia mas não estava implantado, em 1953. Isso tudo conseqüência da entrada da televisão. Inventaram também o cinerama, a bitola de 70mm, para dar a grandiosidade que você não poderia ter na televisão. E o som stereo.
JM – Agora, como você vê esses novos complexos de exibição, tipo Multiplex ou o Glauber Unibanco -onde antes era o Cine Guarany- com diversas salas, muita pipoca, guloseimas e etc.?
AS – Isso é decorrência da sociedade de consumo e do capitalismo cada vez mais selvagem. Quando eu gostava de ir ao cinema, cada um tinha suas características, seus estilos arquitetônicos, então eu associava muito: vi tal filme em determinado cinema; vi Spartacus no Tupi, vi Rastros de Ódio no PAX, e hoje a coisa é tudo uniforme. Você não vai mais ao cinema, você vai ao shopping e depois, como uma das fases do ‘shoppear’, vai ao cinema. O que eu vejo na platéia de hoje é uma apatia doentia, quase esquizóide em relação ao filme. O sujeito vai ao cinema pra telefonar com o celular, para comer [ressaltando] baldes de pipoca, não é mais o coitado do saquinho antigo, são baldes de pipoca, estabelece-se uma comilança... E as conversas fora de hora. Há uma deseducação que acompanha essa velocidade do consumo do capitalismo, que incentiva muito isso não é? E também os filmes com os cortes cada vez mais rápidos, que, inclusive você não tem nem tempo de contemplar a tomada porque já foi. E a contemplação é muito importante na penetração do conhecimento.
JM – Então é verdade que você freqüenta as sessões da madrugada? AS – Não. È o seguinte, eu estou com um problema cardíaco e de pressão, e eu tenho que assistir ao filme com absoluto silêncio senão fico perturbado, minha tensão arterial sobe. Então não posso ir ao Multiplex sábado de tarde, então eu tenho que ir na última sessão, que geralmente é mais vazia. JM – E o cinema, afinal, é um instrumento para contar histórias ou ele tem obrigação de ir além disso?
AS – O cinema é um instrumento de contar história e também de não contá-la. O cineasta pode se expressar fazendo filmes-ensaios, como Jean Luc Godard, onde não há uma história contada linearmente. Tudo é válido. Desde que haja talento.
JM - Para quem quer entender a evolução da cinematografia brasileira, quais são os filmes fundamentais que você indica?
AS - O melhores filmes do cinema brasileiro, para mim: Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha; Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos; São Paulo Sociedade Anônima, de Luís Sérgio Person; O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla; Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri; Ganga Bruta, Umberto Mauro; Limite, de Mário Peixoto; O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade; entre outros. JM – Fale um pouco sobre o cineasta Edgard Navarro. AS – Olha o Edgard Navarro é um talento. Eu acredito que seja o mais talentoso cineasta baiano de sua geração. Ele está muito acima dos outros, na minha opinião. Haja vista o SuperOutro, que é um filme muito bom. Eu Me Lembro é um filme, apesar de alguns defeitos estruturais, também muito bom. Agora ele está fazendo O Homem Que Não Dormia, já tá pronto, só falta a montagem. Edgard é um sujeito até cultuado no Sul do país.
JM – Este ano o Seminário Internacional realizou uma retrospectiva Godard, o diretor que revolucionou a linguagem do cinema com, entre outras coisas, o uso de equipamentos mais leves. Você tem acompanhado essa nova moçada que vem fazendo filmes com celular, câmera digital e outras mini-ferramentas?
AS – Olhe, houve uma revolução com a informática, com as novas tecnologias. Antigamente, na minha época, o sujeito para fazer um curta metragem era muito difícil, por que demandava um fotógrafo profissional, câmeras pesadas... e hoje o sujeito faz filme até no celular. Houve uma espécie assim de democratização da expressão cinematográfica, da expressão pelas imagens em movimento. Agora como hoje é muito fácil se fazer um filme, você pega o celular e faz uma história, então todo mundo tá fazendo filme, mas 90% do que se faz o tempo vai jogar no lixo, no seu devido lugar, porque de talento aí tem muito pouca coisa. Tem muito é lixo. Mas é importante. Eu sou a favor da liberdade de expressão. Que se faça milhões e milhões de filmes, o tempo, senhor da razão, o grande crítico, vai jogar tudo no lixo (risos).
JM – Agora, cinema é ou não é uma abreviatura de cinemamericano?
AS – É. O cinema americano instituiu um padrão de linguagem cinematográfica, a língua narrativa, montagem narrativa, que as pessoas associam o cinema com o espetáculo americano. O grande público acha que cinema é aquele filme estruturado no modelo narrativo americano. O grande público reage mal a um filme de Bergman, de Antonioni, mesmo a filme de Godard, isso fica para um mercado muito restrito.
JM – Mas é possível fazer cinema fora desse padrão?
AS – Claro. E nós vemos aí Lars Von Trier, dinamarquês, e vários filmes que estão completamente distantes do modelo narrativo de Hollywood.
JM - O cinema sempre esteve, até por suas dificuldades de feitura -que demandam muitos recursos- próximo ao Estado, inclusive como arma de propaganda de diversas ideologias. Essa proximidade atrapalha o artista? AS – Você veja, o cinema baiano do ano 2000 pra cá, todos os longas (ou uase todos) foram patrocinados pelo Estado, através do concurso de roteiros. Então, se não fosse o Estado, o cineasta baiano não teria condições de fazer longa-metragem, por que o empresário baiano é muito ignorante em relação a se dispor a investir em cinema. Já no Sul é melhor. Aqui eles são muito tacanhos. Então o cineasta baiano depende do Estado. Se você vai fazer um filme e quer concorrer e ganhar você não pode tocar em certos temas. Aí já existe a auto-censura e a restrição à liberdade. Você não pode fazer um filme, tê-lo aprovado, vamos dizer, falando sobre o mensalão do PT, porque o governo é de Wagner do PT e a comissão julgadora é indicada lá por pessoas que se afinam não é? Então é um cerceamento à liberdade.
JM – E a sua relação com os óculos? É verdade que você não tira nem pra tomar banho? AS – Eu durmo de óculos (risos).
JM – Você falou dos filmes fundamentais. E desses novos, do novo boom do cinema nacional: Cidade de Deus, O Homem Que Copiava e etc. Algum chama a sua atenção?
AS – É, começou com Central do Brasil...
JM – Ou Talvez com O Quatrilho. Teve também Carlota Joaquina, de Carla Camurati, filmes que foram, de certa forma, ressuscitando o cinema nacional...
AS – Tem os filmes de Beto Brant: O Invasor; Matadores. Tem os filmes de Eduardo Coutinho, grande documentarista: Edifício Máster; entre outros. Agora o que tá existindo é a Globo, que entrou na produção cinematográfica e tá fazendo filmes que parecem séries de TV. Principalmente os dirigidos por Daniel Filho: Se Eu Fosse Você 2 (que é o grande sucesso não é?); Primo Basílio; são filmes televisivos e pouco cinematográficos. JM – E para terminar, uma mensagem para um aspirante a cinéfilo.
AS – O cinéfilo hoje, se ele é sério e vê o cinema com seriedade, sofre o diabo, porque tem que agüentar os vândalos que vão ao cinema, então tem que fazer como eu: ir na calada da noite, o que é chato. Mas eu diria o seguinte: procure ver as grandes obras do cinema, através do DVD. Porque tem muita gente que pensa que o cinema nasceu em 1980. Procurem ver os grandes clássicos do passado. Isso é importante.
Entevista colhida no site Setaro's blog
André Setaro é um amante do cinema. Dizer isso é mais importante e verdadeiro que dizer que ele é um dos maiores críticos de cinema do país. Mas ele também é isso. Sempre emoldurado por indefectíveis óculos de sol, Setaro, que também é professor de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, deixa entrever nos reflexos de sua fala uma certa nostalgia. Entretanto, não quer ver a humanidade andando para trás e apóia o uso de novas ferramentas para a construção do cinema. “Tudo é válido. Desde que haja talento”, diz. Neste papo, André Setaro fala sobre o início da sua relação com as imagens em movimento, de estética, pipoca, Hollywood, Globo Filmes, e, entre outras coisas, confecciona uma lista pessoal para quem pretende entender a cinematografia brasileira.
JM – Uma pergunta para se fazer a um crítico antigo: ainda existe crítica de cinema no Brasil?
AS – A grande crítica de cinema já morreu! Aquela que existia nos suplementos literários dos jornais, até mesmo aqui da Bahia, que escrevia textos grandes, reflexões, verdadeiros ensaios sobre o cinema, esta crítica já não existe mais. Inclusive pela própria transformação do jornalismo, que cada vez mais apequena os textos. Veja que agora mesmo tivemos o fim do Suplemento Cultural de A Tarde, que bem ou mal, dava um espaço... era bom.
JM – Nelson Rodrigues dizia que ‘os idiotas da objetividade’ inventaram o copy-desk e mesmo que o mundo se acabasse isso teria de ser noticiado de maneira direta, curta e impassível. Você acha que esse mundo moderno e veloz tem impedido a reflexão mais profunda?
AS – É claro que sim, a comunicação hoje se faz através de monossílabos, vide o MSN. Pelo que eu tenho observado, não há uma enunciação de um pensamento, uma interlocução. O sujeito só fala ‘Ah!’, ‘Tá Bom’, ‘É’... Não se debate idéias.
JM – Mas você tem uma coluna no Terra, de cinema. Você se preocupa com o tamanho dos textos que saem ali, ou escreve tudo o que considera necessário?
AS – Geralmente duas laudas. Duas laudas e meia, se for o caso. Mas também a morte da crítica, por assim dizer, vem acompanhada da morte do cinema. Porque o cinema decaiu muito. A indústria cultural hollywoodiana , com as honrosas exceções de praxe, produz um lixo cultural imenso, não é? Um cinema de ação ininterrupta, etc. Evidentemente que existem ainda bons filmes, Entre os Muros da Escola, Grand Torino... JM – Aproveitando que você falou em bons filmes, quero saber como e quando começou a sua relação com o cinema e porque fazer crítica e não filmes?
AS – Bem, a minha relação com o cinema começa quando eu comecei a ir ao cinema, aos sete anos de idade.
JM – (interrompendo) Já existia cinema (risos)? AS – (mais risos) O cinema existia! E existia de uma maneira mágica! E eu me atraí. Então eu tenho 59 [anos], veja bem, há mais de cinqüenta anos que eu vou ao cinema. É muito não é? Uma estrada já longuíssima. Eu comecei freqüentar o cinema e depois, adolescente, passei a freqüentar o Clube de Cinema da Bahia, ficava ouvindo Walter da Silveira falar sobre os filmes... aí eu comecei a entender que o cinema, além de uma grande diversão, era também uma expressão artística, e passei a ver aqueles filmes de Michelangelo Antonioni, a Nouvelle Vague, Jean Luc Godard, François Truffaut, Federico Fellini, cinema japonês, Akira Kurosawa, Alain Resnais, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Aí comecei a rabiscar, até que em 1974 eu ingressei na Tribuna da Bahia e comecei a fazer críticas diárias. Eu tinha uma coluna diária, na Tribuna, grande, um tijolo [simula um tamanho com as mãos], por 20 anos! Eu ía ao cinema todos os dias e tinha que elaborar um texto diariamente... foi assim que começou.
JM - E por que não fazer filmes?
AS – Eu já participei de filmes como assistente de direção, fiz pontas como ator... mas eu sou um sujeito muito preguiçoso, a verdade é essa. E o cinema dá muito trabalho. Para fazer um filme você tem que se jogar mesmo, de corpo e alma, e como eu sou preguiçoso... Eu já tive idéias, já comecei, fiz o roteiro, mas não ía até o fim.
JM – Melhor fazer crítica que é mais fácil (risos).
AS – [rindo] Mas não tem esse negócio de que crítico é cineasta frustrado. Isso é balela. Eu sou um apreciador do bom cinema.
JM – E afinal de contas existe mesmo um cinema baiano ou isso é narcisismo local?
AS – Não. O cinema baiano não existe porque para a existência de uma cinematografia é necessário que haja uma produção continuada. Existem sim, filmes baianos. Mas não existe uma cinematografia baiana estabelecida. Falta principalmente infra-estrutura para se ter uma continuidade de produção.
JM – Claro, mas e a restauração de Redenção, do Roberto Pires, você considera isso importante?
AS – Importantíssimo! Por que foi o primeiro filme baiano de longa-metragem e um trabalho artesanal que denota um rigor... uma procura de uma expressão pelas imagens em movimento numa época em que não existia possibilidade nenhuma na Bahia, tudo tinha que ser feito no Rio [de Janeiro], revelação, a compra de filme virgem era difícil... Então foi um trabalho de Hércules se fazer Redenção. Embora o filme seja um ‘policial’ meio amadorístico. Mas é muito importante essa restauração. É a memória não é? Além do mais é a memória não só do cinema mas de uma Bahia daquela época.
JM - E o cinema tem essa ligação com a memória muito grande, não é? Ele é um instrumento para armazenar imagens de uma época. Ele tem esse poder.
AS – Claro, ele tem esse poder. Por exemplo, os filmes dos anos 40, 50, você vê como era a sociedade daquela época, como as pessoas se vestiam, os costumes, os gestos. Um dia desses eu estava reparando como o tom gestual era diferente do de hoje, que é uam coisa mais largada. Era mais formal, existia uma convenção das normas comportamentais.
JM – Em entrevista recente, o poeta Décio Pignatari comentou que a poesia concreta foi o fim do verso tanto quanto a televisão foi o fim do cinema. E soltou a piada: “o Brasil nem chegou a fazer grande cinema e o cinema já acabou”. Quero que você comente essa declaração.
AS – É uma declaração um pouco frase de efeito e radical. Por que o surgimento da televisão abalou muito a indústria cinematográfica, mas não matou o cinema.
JM – Mas eu acho que o que o Décio disse também vai por este caminho, já que a poesia concreta abalou e modificou, resignificou o verso, mas não acabou o verso. Neste sentido você acha que o surgimento da televisão obrigou o cinema a se reestruturar, se adequar a novas linguagens, a novos mecanismos de captação e edição de imagens? Como você vê essa relação cinema-televisão? Hoje em dia se reclama muito que, por exemplo, os filmes produzidos pela Globo Filmes ficam parecendo produções televisivas. AS - Quando a televisão surgiu e os americanos começaram a fazer muitos seriados, o cinema precisou se reciclar, no sentido de dar mais agilidade aos filmes, para concorrer. Até mesmo Psicose, de Hitchcock, é um filme feito com orçamento de televisão. Um filme barato, como se fosse um filme de televisão, e se tornou uma obra-prima. Basta dizer que, quando a televisão surgiu nos Estados Unidos, metade dos cinemas fechou as suas portas. Então a indústria ficou muito tocada... e colocou o ‘cinemascope’, que já existia mas não estava implantado, em 1953. Isso tudo conseqüência da entrada da televisão. Inventaram também o cinerama, a bitola de 70mm, para dar a grandiosidade que você não poderia ter na televisão. E o som stereo.
JM – Agora, como você vê esses novos complexos de exibição, tipo Multiplex ou o Glauber Unibanco -onde antes era o Cine Guarany- com diversas salas, muita pipoca, guloseimas e etc.?
AS – Isso é decorrência da sociedade de consumo e do capitalismo cada vez mais selvagem. Quando eu gostava de ir ao cinema, cada um tinha suas características, seus estilos arquitetônicos, então eu associava muito: vi tal filme em determinado cinema; vi Spartacus no Tupi, vi Rastros de Ódio no PAX, e hoje a coisa é tudo uniforme. Você não vai mais ao cinema, você vai ao shopping e depois, como uma das fases do ‘shoppear’, vai ao cinema. O que eu vejo na platéia de hoje é uma apatia doentia, quase esquizóide em relação ao filme. O sujeito vai ao cinema pra telefonar com o celular, para comer [ressaltando] baldes de pipoca, não é mais o coitado do saquinho antigo, são baldes de pipoca, estabelece-se uma comilança... E as conversas fora de hora. Há uma deseducação que acompanha essa velocidade do consumo do capitalismo, que incentiva muito isso não é? E também os filmes com os cortes cada vez mais rápidos, que, inclusive você não tem nem tempo de contemplar a tomada porque já foi. E a contemplação é muito importante na penetração do conhecimento.
JM – Então é verdade que você freqüenta as sessões da madrugada? AS – Não. È o seguinte, eu estou com um problema cardíaco e de pressão, e eu tenho que assistir ao filme com absoluto silêncio senão fico perturbado, minha tensão arterial sobe. Então não posso ir ao Multiplex sábado de tarde, então eu tenho que ir na última sessão, que geralmente é mais vazia. JM – E o cinema, afinal, é um instrumento para contar histórias ou ele tem obrigação de ir além disso?
AS – O cinema é um instrumento de contar história e também de não contá-la. O cineasta pode se expressar fazendo filmes-ensaios, como Jean Luc Godard, onde não há uma história contada linearmente. Tudo é válido. Desde que haja talento.
JM - Para quem quer entender a evolução da cinematografia brasileira, quais são os filmes fundamentais que você indica?
AS - O melhores filmes do cinema brasileiro, para mim: Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha; Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos; São Paulo Sociedade Anônima, de Luís Sérgio Person; O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla; Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri; Ganga Bruta, Umberto Mauro; Limite, de Mário Peixoto; O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade; entre outros. JM – Fale um pouco sobre o cineasta Edgard Navarro. AS – Olha o Edgard Navarro é um talento. Eu acredito que seja o mais talentoso cineasta baiano de sua geração. Ele está muito acima dos outros, na minha opinião. Haja vista o SuperOutro, que é um filme muito bom. Eu Me Lembro é um filme, apesar de alguns defeitos estruturais, também muito bom. Agora ele está fazendo O Homem Que Não Dormia, já tá pronto, só falta a montagem. Edgard é um sujeito até cultuado no Sul do país.
JM – Este ano o Seminário Internacional realizou uma retrospectiva Godard, o diretor que revolucionou a linguagem do cinema com, entre outras coisas, o uso de equipamentos mais leves. Você tem acompanhado essa nova moçada que vem fazendo filmes com celular, câmera digital e outras mini-ferramentas?
AS – Olhe, houve uma revolução com a informática, com as novas tecnologias. Antigamente, na minha época, o sujeito para fazer um curta metragem era muito difícil, por que demandava um fotógrafo profissional, câmeras pesadas... e hoje o sujeito faz filme até no celular. Houve uma espécie assim de democratização da expressão cinematográfica, da expressão pelas imagens em movimento. Agora como hoje é muito fácil se fazer um filme, você pega o celular e faz uma história, então todo mundo tá fazendo filme, mas 90% do que se faz o tempo vai jogar no lixo, no seu devido lugar, porque de talento aí tem muito pouca coisa. Tem muito é lixo. Mas é importante. Eu sou a favor da liberdade de expressão. Que se faça milhões e milhões de filmes, o tempo, senhor da razão, o grande crítico, vai jogar tudo no lixo (risos).
JM – Agora, cinema é ou não é uma abreviatura de cinemamericano?
AS – É. O cinema americano instituiu um padrão de linguagem cinematográfica, a língua narrativa, montagem narrativa, que as pessoas associam o cinema com o espetáculo americano. O grande público acha que cinema é aquele filme estruturado no modelo narrativo americano. O grande público reage mal a um filme de Bergman, de Antonioni, mesmo a filme de Godard, isso fica para um mercado muito restrito.
JM – Mas é possível fazer cinema fora desse padrão?
AS – Claro. E nós vemos aí Lars Von Trier, dinamarquês, e vários filmes que estão completamente distantes do modelo narrativo de Hollywood.
JM - O cinema sempre esteve, até por suas dificuldades de feitura -que demandam muitos recursos- próximo ao Estado, inclusive como arma de propaganda de diversas ideologias. Essa proximidade atrapalha o artista? AS – Você veja, o cinema baiano do ano 2000 pra cá, todos os longas (ou uase todos) foram patrocinados pelo Estado, através do concurso de roteiros. Então, se não fosse o Estado, o cineasta baiano não teria condições de fazer longa-metragem, por que o empresário baiano é muito ignorante em relação a se dispor a investir em cinema. Já no Sul é melhor. Aqui eles são muito tacanhos. Então o cineasta baiano depende do Estado. Se você vai fazer um filme e quer concorrer e ganhar você não pode tocar em certos temas. Aí já existe a auto-censura e a restrição à liberdade. Você não pode fazer um filme, tê-lo aprovado, vamos dizer, falando sobre o mensalão do PT, porque o governo é de Wagner do PT e a comissão julgadora é indicada lá por pessoas que se afinam não é? Então é um cerceamento à liberdade.
JM – E a sua relação com os óculos? É verdade que você não tira nem pra tomar banho? AS – Eu durmo de óculos (risos).
JM – Você falou dos filmes fundamentais. E desses novos, do novo boom do cinema nacional: Cidade de Deus, O Homem Que Copiava e etc. Algum chama a sua atenção?
AS – É, começou com Central do Brasil...
JM – Ou Talvez com O Quatrilho. Teve também Carlota Joaquina, de Carla Camurati, filmes que foram, de certa forma, ressuscitando o cinema nacional...
AS – Tem os filmes de Beto Brant: O Invasor; Matadores. Tem os filmes de Eduardo Coutinho, grande documentarista: Edifício Máster; entre outros. Agora o que tá existindo é a Globo, que entrou na produção cinematográfica e tá fazendo filmes que parecem séries de TV. Principalmente os dirigidos por Daniel Filho: Se Eu Fosse Você 2 (que é o grande sucesso não é?); Primo Basílio; são filmes televisivos e pouco cinematográficos. JM – E para terminar, uma mensagem para um aspirante a cinéfilo.
AS – O cinéfilo hoje, se ele é sério e vê o cinema com seriedade, sofre o diabo, porque tem que agüentar os vândalos que vão ao cinema, então tem que fazer como eu: ir na calada da noite, o que é chato. Mas eu diria o seguinte: procure ver as grandes obras do cinema, através do DVD. Porque tem muita gente que pensa que o cinema nasceu em 1980. Procurem ver os grandes clássicos do passado. Isso é importante.
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
FÓRMULA DIZ QUE "O ILUMINADO" É O FILME DE TERROR PERFEITO
O filme O Iluminado, de Stanley Kubrick, foi considerado o filme de terror perfeito, de acordo com uma nova fórmula matemática.
A fórmula foi desenvolvida por especialistas que tentavam provar porque filmes como Psicose e A Bruxa de Blair conseguiram aterrorizar tantas audiências.
A fórmula combina elementos de suspense, realismo, cenas sangrentas e surpresa para medir o quanto um filme é aterrorizante.
Os pesquisadores passaram dez semanas assistindo filmes como O Exorcista, O
Massacre da Serra Elétrica e o Silêncio dos Inocentes para compor a fórmula.
Patrocínio
Os fatores considerados incluem o uso de música, o equilíbrio entre vida real e fantasia e o quanto de sangue é envolvido.
Como o suspense é parte fundamental no sucesso de um filme de terror, os seus elementos – uso de música, o desconhecido, cenas de perseguição e sensação de estar em uma armadilha - são agrupados e depois multiplicados ao quadrado.
Se soma então o valor do choque.
Os especialistas dizem que um filme precisa ser realista para ser realmente aterrorizante. Eles tentaram balancear as partes que fazem um filme muito irreal ou próximo da vida real.
Eles então olharam para o número de personagens na tela, assumindo que as audiências simpatizam com uma quantidade menor de pessoas.
Os matemáticos também levaram em conta a quantidade de luz nos cenários.
As locações isoladas de O Iluminado, com a família vivendo em um grande hotel fechado para o inverno, e a cena do chuveiro em Psicose, foram exemplos perfeitos do uso da fórmula, dizem eles.
A fórmula também leva em conta a quantidade de sangue e a compara com a quantidade de estereótipos no filme.
Para os cientistas, Tubarão seria um exemplo perfeito do uso correto desses elementos.
“Spielberg alcançou o nível perfeito que permite ao expectador ver a quantidade suficiente de sangue para sentir medo do tubarão, mas não a ponto de ficar com nojo”, dizem os cientistas.
A pesquisa foi patrocinada pelo canal a cabo britânico Sky Movies, para lançar uma temporada de filmes.
Fórmula do filme de terror perfeito
(um+d+cp+a) 2+c + (r+f)/2 + (ps + e +l)/n + s X –es. Onde:
um = uso de música
d = desconhecido
cp = cenas de perseguição
a = sensação de estar em uma armadilha
c = choque
r = realismo
f = fantasia
ps = o personagem está sozinho
e = escuro
l = locação
n = número de pessoas
s = sangue
es = estereótipos
Fonte: BBCBRASIL.COM
A fórmula foi desenvolvida por especialistas que tentavam provar porque filmes como Psicose e A Bruxa de Blair conseguiram aterrorizar tantas audiências.
A fórmula combina elementos de suspense, realismo, cenas sangrentas e surpresa para medir o quanto um filme é aterrorizante.
Os pesquisadores passaram dez semanas assistindo filmes como O Exorcista, O
Massacre da Serra Elétrica e o Silêncio dos Inocentes para compor a fórmula.
Patrocínio
Os fatores considerados incluem o uso de música, o equilíbrio entre vida real e fantasia e o quanto de sangue é envolvido.
Como o suspense é parte fundamental no sucesso de um filme de terror, os seus elementos – uso de música, o desconhecido, cenas de perseguição e sensação de estar em uma armadilha - são agrupados e depois multiplicados ao quadrado.
Se soma então o valor do choque.
Os especialistas dizem que um filme precisa ser realista para ser realmente aterrorizante. Eles tentaram balancear as partes que fazem um filme muito irreal ou próximo da vida real.
Eles então olharam para o número de personagens na tela, assumindo que as audiências simpatizam com uma quantidade menor de pessoas.
Os matemáticos também levaram em conta a quantidade de luz nos cenários.
As locações isoladas de O Iluminado, com a família vivendo em um grande hotel fechado para o inverno, e a cena do chuveiro em Psicose, foram exemplos perfeitos do uso da fórmula, dizem eles.
A fórmula também leva em conta a quantidade de sangue e a compara com a quantidade de estereótipos no filme.
Para os cientistas, Tubarão seria um exemplo perfeito do uso correto desses elementos.
“Spielberg alcançou o nível perfeito que permite ao expectador ver a quantidade suficiente de sangue para sentir medo do tubarão, mas não a ponto de ficar com nojo”, dizem os cientistas.
A pesquisa foi patrocinada pelo canal a cabo britânico Sky Movies, para lançar uma temporada de filmes.
Fórmula do filme de terror perfeito
(um+d+cp+a) 2+c + (r+f)/2 + (ps + e +l)/n + s X –es. Onde:
um = uso de música
d = desconhecido
cp = cenas de perseguição
a = sensação de estar em uma armadilha
c = choque
r = realismo
f = fantasia
ps = o personagem está sozinho
e = escuro
l = locação
n = número de pessoas
s = sangue
es = estereótipos
Fonte: BBCBRASIL.COM
A HISTÓRIA DO PROFETA JONAS
A Bíblia é, sem dúvida, para além da religião( se se acredita ou não em deus, é um valor que cada um deve decidir por conta própria ), um bom livro de histórias. Uma dessas boas histórias é a do profeta Jonas:
[Jonas 1]Jonas 1
COM DEUS NÃO SE BRINCA...
1. A palavra de Javé foi dirigida a Jonas, filho de Amati, ordenando:
2. "Levante-se e vá a Nínive, a grande cidade, e anuncie aí que a maldade dela chegou até mim".
3. Jonas partiu, então, com intenção de escapar da presença de Javé, fugindo para Társis. Desceu até Jope e aí encontrou um navio de saída para Társis. Pagou a passagem e embarcou, a fim de ir com eles até Társis, para escapar assim da presença de Javé.
4. Javé, porém, mandou sobre o mar um vento forte, que provocou uma grande tempestade e ondas violentas. E o navio estava a ponto de naufragar.
5. Os marinheiros começaram a ficar com medo e a rezar cada um ao seu próprio deus. Jogaram no mar a
carga que estava no navio, a fim de diminuir-lhe o peso. Jonas, porém, tinha descido ao porão do navio e,
deitado, dormia a sono solto.
6. O capitão, ao chegar aonde ele estava, disse-lhe: "O que você faz aí dormindo? Levante-se e invoque o seu Deus. Quem sabe ele se lembra de nós e não nos deixa morrer".
7. Depois disseram uns aos outros: "Vamos tirar sorte para ver quem é o culpado dessa desgraça que nos está acontecendo". Tiraram a sorte, e ela caiu em Jonas.
8. Então lhe perguntaram: "Conte para nós por que é que nos está acontecendo essa desgraça. Qual é a sua
profissão? De onde você vem? Qual é a sua terra? De que povo é você?"
9. Jonas respondeu: "Eu sou hebreu. Eu adoro a Javé, Deus do céu, que fez o mar e a terra".
10. Os marinheiros ficaram com medo, e lhe perguntaram: "O que foi que você fez?" Eles tinham percebido
que Jonas estava fugindo da presença de Javé, pois ele próprio lhes tinha contado tudo.
11. E perguntaram: "O que é que vamos fazer com você, para que o mar se acalme?" Pois o mar estava cada vez mais bravo.
12. Jonas respondeu: "É só vocês me pegarem e me atirarem ao mar, que ele se acalmará em volta de vocês; eu sei que foi por minha causa que lhes veio essa tempestade tão violenta".
13. Os homens tentavam remar, a fim de chegar mais perto da terra firme, mas não conseguiam, pois o mar ia ficando cada vez mais agitado, ventando contra eles.
14. Então invocaram a Javé, dizendo: "Ah! Javé! Não queremos morrer por causa deste homem. Não lances contra nós a culpa de um sangue inocente. Tu és Javé e fazes tudo o que desejas".
15. Pegaram Jonas e o jogaram ao mar. Imediatamente o mar acalmou a sua fúria.
16. Daí para frente aqueles homens começaram a temer muito a Javé, oferecendo-lhe sacrifícios e fazendo
votos.
[Jonas 2]Jonas 2
...POIS DE DEUS VEM A SALVAÇÃO
1. Javé enviou um peixe bem grande para que engolisse Jonas. E Jonas ficou no ventre do peixe três dias e três noites.
2. E do ventre do peixe, Jonas dirigiu a Javé, seu Deus, a seguinte oração:
3. "Na minha angústia invoquei a Javé, e ele me atendeu. Do fundo do abismo pedi tua ajuda, e ouviste a
minha voz.
4. Jogaste-me nas profundezas, no coração do mar, e a torrente me envolveu. Passaram sobre mim as tuas
ondas e vagas.
5. Então pensei: 'Eu fui expulso para longe dos teus olhos; nunca mais poderei admirar a beleza do teu santo
Templo?'
6. Eu estava cercado de água até o pescoço, o abismo me rodeava, um lodo se agarrava à minha cabeça.
7. Desci até as raízes das montanhas, a terra se fechava sobre mim para sempre. Mas tu retiraste da fossa a
minha vida, Javé, meu Deus!
8. Quando minhas forças se acabavam, eu me lembrei de Javé. E minha oração pôde chegar a ti, no teu santo Templo.
9. Quem segue os ídolos, abandona o amor de Javé.
10. Mas eu, entre cânticos de louvor, é a ti que presto o meu culto e com ação de graças cumpro os meus
votos. A salvação pertence a Javé".
11. Então Javé mandou que o peixe vomitasse Jonas em terra firme.
[Jonas 3]Jonas 3
CONVERSÃO CONTRA TODA EXPECTATIVA
1. A palavra de Javé foi dirigida a Jonas pela segunda vez, ordenando:
2. "Levante-se e vá a Nínive, a grande cidade, e anuncie-lhe o que vou dizer a você".
3. Jonas se levantou e foi a Nínive, conforme Javé lhe tinha ordenado. Nínive era uma cidade fabulosamente
grande: tinha o comprimento de uma caminhada de três dias.
4. Jonas entrou na cidade e começou a percorrê-la, caminhando um dia inteiro. Ele dizia: "Dentro de quarenta dias, Nínive será destruída!"
5. Os moradores de Nínive começaram a acreditar em Deus, e marcaram um dia de penitência, vestindo-se
todos de pano de saco, desde os maiores até os menores.
6. O fato chegou também ao conhecimento do rei de Nínive. Ele se levantou do trono, tirou o manto, vestiu
um pano de saco e sentou-se em cima da cinza.
7. Mandou também publicar e anunciar aos ninivitas um decreto do rei e de seus ministros, nestes termos:
"Homens, animais, gado e ovelhas não poderão comer nada, nem pastar, nem beber água.
8. Deverão vestir pano de saco, tanto homens como animais; e todos clamarão a Deus com toda a força. Cada um deverá converter-se de sua má conduta e deixar de lado toda espécie de ações violentas.
9. Quem sabe, assim, Deus volte atrás, fique com pena, apague o ardor de sua ira, e a gente consiga escapar".
10. Deus viu o que eles fizeram e como se converteram de sua má conduta; então, desistiu do mal com que os tinha ameaçado, e não o executou.
[Jonas 4]Jonas 4
DEUS QUER SALVAR TODOS OS HOMENS
1. Jonas ficou muito desgostoso e despeitado.
2. E rezou a Javé: "Ah! Javé! Não era justamente isso que eu dizia quando estava na minha terra? Foi por isso que eu corri, tentando fugir para Társis, pois eu sabia que tu és um Deus compassivo e clemente, lento para a ira e cheio de amor, e que voltas atrás nas ameaças feitas.
3. Se é assim, Javé, tira a minha vida, pois eu acho melhor morrer do que ficar vivo".
4. Javé respondeu-lhe: "Está certo você ficar irritado desse jeito?"
5. Jonas saiu da cidade e ficou no lado do nascer do sol. Aí fez uma cabana e sentou-se na sombra, esperando para ver o que aconteceria com a cidade.
6. O Senhor Javé fez nascer uma mamoneira, que cresceu de modo a fazer sombra sobre a cabeça de Jonas e livrá-lo de uma insolação. E Jonas ficou muito contente com essa mamoneira.
7. Então, na madrugada seguinte, Deus enviou um verme que prejudicou a mamoneira, e ela secou.
8. Quando o sol nasceu, Javé mandou um vento quente e sufocante; e o sol abrasava a cabeça de Jonas, a
ponto de fazê-lo desmaiar. E Jonas tornou a pedir a morte, dizendo: "Prefiro morrer do que ficar vivo!"
9. Deus perguntou a Jonas: "Está certo você ficar com tanta raiva por causa da mamoneira?" Ele respondeu:
"Sim, está certo eu ficar com raiva, a ponto de pedir a morte".
10. Javé lhe disse: "Você está com dó de uma mamoneira, que não lhe custou trabalho, que não foi você quem a fez crescer, que brotou numa noite e na outra morreu?
11. E eu, será que não vou ter pena de Nínive, esta cidade enorme, onde moram mais de cento e vinte mil
pessoas, que não sabem distinguir a direita da esquerda, além de tantos animais?"
[Jonas 1]Jonas 1
COM DEUS NÃO SE BRINCA...
1. A palavra de Javé foi dirigida a Jonas, filho de Amati, ordenando:
2. "Levante-se e vá a Nínive, a grande cidade, e anuncie aí que a maldade dela chegou até mim".
3. Jonas partiu, então, com intenção de escapar da presença de Javé, fugindo para Társis. Desceu até Jope e aí encontrou um navio de saída para Társis. Pagou a passagem e embarcou, a fim de ir com eles até Társis, para escapar assim da presença de Javé.
4. Javé, porém, mandou sobre o mar um vento forte, que provocou uma grande tempestade e ondas violentas. E o navio estava a ponto de naufragar.
5. Os marinheiros começaram a ficar com medo e a rezar cada um ao seu próprio deus. Jogaram no mar a
carga que estava no navio, a fim de diminuir-lhe o peso. Jonas, porém, tinha descido ao porão do navio e,
deitado, dormia a sono solto.
6. O capitão, ao chegar aonde ele estava, disse-lhe: "O que você faz aí dormindo? Levante-se e invoque o seu Deus. Quem sabe ele se lembra de nós e não nos deixa morrer".
7. Depois disseram uns aos outros: "Vamos tirar sorte para ver quem é o culpado dessa desgraça que nos está acontecendo". Tiraram a sorte, e ela caiu em Jonas.
8. Então lhe perguntaram: "Conte para nós por que é que nos está acontecendo essa desgraça. Qual é a sua
profissão? De onde você vem? Qual é a sua terra? De que povo é você?"
9. Jonas respondeu: "Eu sou hebreu. Eu adoro a Javé, Deus do céu, que fez o mar e a terra".
10. Os marinheiros ficaram com medo, e lhe perguntaram: "O que foi que você fez?" Eles tinham percebido
que Jonas estava fugindo da presença de Javé, pois ele próprio lhes tinha contado tudo.
11. E perguntaram: "O que é que vamos fazer com você, para que o mar se acalme?" Pois o mar estava cada vez mais bravo.
12. Jonas respondeu: "É só vocês me pegarem e me atirarem ao mar, que ele se acalmará em volta de vocês; eu sei que foi por minha causa que lhes veio essa tempestade tão violenta".
13. Os homens tentavam remar, a fim de chegar mais perto da terra firme, mas não conseguiam, pois o mar ia ficando cada vez mais agitado, ventando contra eles.
14. Então invocaram a Javé, dizendo: "Ah! Javé! Não queremos morrer por causa deste homem. Não lances contra nós a culpa de um sangue inocente. Tu és Javé e fazes tudo o que desejas".
15. Pegaram Jonas e o jogaram ao mar. Imediatamente o mar acalmou a sua fúria.
16. Daí para frente aqueles homens começaram a temer muito a Javé, oferecendo-lhe sacrifícios e fazendo
votos.
[Jonas 2]Jonas 2
...POIS DE DEUS VEM A SALVAÇÃO
1. Javé enviou um peixe bem grande para que engolisse Jonas. E Jonas ficou no ventre do peixe três dias e três noites.
2. E do ventre do peixe, Jonas dirigiu a Javé, seu Deus, a seguinte oração:
3. "Na minha angústia invoquei a Javé, e ele me atendeu. Do fundo do abismo pedi tua ajuda, e ouviste a
minha voz.
4. Jogaste-me nas profundezas, no coração do mar, e a torrente me envolveu. Passaram sobre mim as tuas
ondas e vagas.
5. Então pensei: 'Eu fui expulso para longe dos teus olhos; nunca mais poderei admirar a beleza do teu santo
Templo?'
6. Eu estava cercado de água até o pescoço, o abismo me rodeava, um lodo se agarrava à minha cabeça.
7. Desci até as raízes das montanhas, a terra se fechava sobre mim para sempre. Mas tu retiraste da fossa a
minha vida, Javé, meu Deus!
8. Quando minhas forças se acabavam, eu me lembrei de Javé. E minha oração pôde chegar a ti, no teu santo Templo.
9. Quem segue os ídolos, abandona o amor de Javé.
10. Mas eu, entre cânticos de louvor, é a ti que presto o meu culto e com ação de graças cumpro os meus
votos. A salvação pertence a Javé".
11. Então Javé mandou que o peixe vomitasse Jonas em terra firme.
[Jonas 3]Jonas 3
CONVERSÃO CONTRA TODA EXPECTATIVA
1. A palavra de Javé foi dirigida a Jonas pela segunda vez, ordenando:
2. "Levante-se e vá a Nínive, a grande cidade, e anuncie-lhe o que vou dizer a você".
3. Jonas se levantou e foi a Nínive, conforme Javé lhe tinha ordenado. Nínive era uma cidade fabulosamente
grande: tinha o comprimento de uma caminhada de três dias.
4. Jonas entrou na cidade e começou a percorrê-la, caminhando um dia inteiro. Ele dizia: "Dentro de quarenta dias, Nínive será destruída!"
5. Os moradores de Nínive começaram a acreditar em Deus, e marcaram um dia de penitência, vestindo-se
todos de pano de saco, desde os maiores até os menores.
6. O fato chegou também ao conhecimento do rei de Nínive. Ele se levantou do trono, tirou o manto, vestiu
um pano de saco e sentou-se em cima da cinza.
7. Mandou também publicar e anunciar aos ninivitas um decreto do rei e de seus ministros, nestes termos:
"Homens, animais, gado e ovelhas não poderão comer nada, nem pastar, nem beber água.
8. Deverão vestir pano de saco, tanto homens como animais; e todos clamarão a Deus com toda a força. Cada um deverá converter-se de sua má conduta e deixar de lado toda espécie de ações violentas.
9. Quem sabe, assim, Deus volte atrás, fique com pena, apague o ardor de sua ira, e a gente consiga escapar".
10. Deus viu o que eles fizeram e como se converteram de sua má conduta; então, desistiu do mal com que os tinha ameaçado, e não o executou.
[Jonas 4]Jonas 4
DEUS QUER SALVAR TODOS OS HOMENS
1. Jonas ficou muito desgostoso e despeitado.
2. E rezou a Javé: "Ah! Javé! Não era justamente isso que eu dizia quando estava na minha terra? Foi por isso que eu corri, tentando fugir para Társis, pois eu sabia que tu és um Deus compassivo e clemente, lento para a ira e cheio de amor, e que voltas atrás nas ameaças feitas.
3. Se é assim, Javé, tira a minha vida, pois eu acho melhor morrer do que ficar vivo".
4. Javé respondeu-lhe: "Está certo você ficar irritado desse jeito?"
5. Jonas saiu da cidade e ficou no lado do nascer do sol. Aí fez uma cabana e sentou-se na sombra, esperando para ver o que aconteceria com a cidade.
6. O Senhor Javé fez nascer uma mamoneira, que cresceu de modo a fazer sombra sobre a cabeça de Jonas e livrá-lo de uma insolação. E Jonas ficou muito contente com essa mamoneira.
7. Então, na madrugada seguinte, Deus enviou um verme que prejudicou a mamoneira, e ela secou.
8. Quando o sol nasceu, Javé mandou um vento quente e sufocante; e o sol abrasava a cabeça de Jonas, a
ponto de fazê-lo desmaiar. E Jonas tornou a pedir a morte, dizendo: "Prefiro morrer do que ficar vivo!"
9. Deus perguntou a Jonas: "Está certo você ficar com tanta raiva por causa da mamoneira?" Ele respondeu:
"Sim, está certo eu ficar com raiva, a ponto de pedir a morte".
10. Javé lhe disse: "Você está com dó de uma mamoneira, que não lhe custou trabalho, que não foi você quem a fez crescer, que brotou numa noite e na outra morreu?
11. E eu, será que não vou ter pena de Nínive, esta cidade enorme, onde moram mais de cento e vinte mil
pessoas, que não sabem distinguir a direita da esquerda, além de tantos animais?"
TRAGICOMÉDIA
Três traços essenciais caracterizam as tragicomédias: personagens populares misturam-se a personagens aristocráticos; a ação dramática não desemboca numa catástrofe e o herói não perece; o estilo mescla a elevação e a ênfase de linguagem da tragédia com o linguajar vulgar ou cotidiano, típico da comédia. – Patrice Pavis, Dicionário do Teatro
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE TRÁGICA
“O trágico, originariamente, consiste em que, no círculo da colisão, as duas partes opostas, consideradas isoladamente, têm um direito por si mesmas. Por outro lado, só podendo realizar o que há de verdadeiro e positivo em seu objetivo e seu caráter como negação e violação da outra força igualmente justa, elas serão levadas, malgrado sua moralidade ou antes por causa dela, a cometer faltas".
“Os personagens da tragédia antiga, verdadeiras estátuas vivas, são isentos de conflitos íntimos. Estão eles informados pela consciência de sua vontade e por suas altas paixões, direitos, razões ou interesses pessoais. Eles fazem sempre a reivindicação moral de um direito relativo a um fato determinado. Ao contrário, a tragédia moderna apropria-se, desde seu começo, do princípio da personalidade ou da subjetividade. Faz do caráter pessoal em si, e não da individualização das forças morais, seu objetivo próprio e fundo de suas representações.”
“A fraqueza resultante da impossibilidade de tomar uma decisão, do recurso à reflexão, do exame das razões que pleiteiam por ou contra uma resolução dada, observa-se já nas tragédias antigas e, sobretudo, nas de Eurípedes que, de todos os trágicos gregos é aliás aquele que menos caso faz da plástica dos caracteres e das ações e procura sobretudo provocar emoções subjetivas. Ora, na tragédia moderna, estas personagens indecisas e hesitantes são apresentadas como assediadas por duas paixões que as arrastam em direções opostas, lhes inspiram decisões e as levam a atos que se contrariam... São naturezas duplas que não podem alcançar uma individualidade firme e completa. Acontece precisamente o contrário quando um caráter seguro de si mesmo se encontra ante dois deveres igualmente sagrados e é forçado a decidir-se por um, com exclusão do outro. A hesitação não passa, então, de uma fase transitória e não constitui o fundo do caráter”.
(Hegel – Estética)
SOBRE ÉDIPO REI(POÉTICA DE ARISTÓTELES):
A)PERIPÉCIA É A MUDANÇA, DENTRO DA PEÇA, DE UM ESTADO DE COISAS PARA O SEU OPOSTO, DE ACORDO COM NOSSA DESCRIÇÃO, SENDO ESSA MUDANÇA, ALÉM DO MAIS, PROVÁVEL OU INEVITÁVEL. POR EXEMPLO, O MENSAGEIRO NO ÉDIPO, QUE VEIO PARA ALEGRAR O REI E LIVRÁ-LO DA ANSIEDADE A RESPEITO DE SUA MÃE, REVELANDO-LHE SEU VERDADEIRO PARENTESCO, E FEZ EXATAMENTE O CONTRÁRIO.”
B)A ESPÉCIE POR EXCELÊNCIA DE DESCOBERTA(reconhecimento) É A QUE COINCIDE COM A PERIPÉCIA, COMO A RELACIONADA COM A DESCOBERTA NO ÉDIPO.”
C)ESSA É A ESPÉCIE DE HOMEM QUE NÃO É ESSENCIALMENTE VIRTUOSO E JUSTO E, TODAVIA, NÃO É POR MALDADE OU VILANIA INTRÍNSECAS QUE ELE CAI EM DESGRAÇA; É ANTES POR UM ERRO DE DISCERNIMENTO, SENDO ELE UM DOS QUE OCUPAM ALTAS POSIÇÕES E DESFRUTAM DE GRANDE PROSPERIDADE, COMO ÉDIPO”ARISTÓTELES REFERE-SE AO HERÓI PARA UMA TRAGÉDIA.
D)O MEDO E A PIEDADE ÀS VEZES RESULTAM DO ESPETÁCULO, E ÀS VEZES SÃO SUSCITADOS PELA ESTRUTURA MESMA E PELOS INCIDENTES DA PEÇA, QUE SÃO O MELHOR MEIO PARA MOSTRAR O MELHOR POETA. COM EFEITO, O ENREDO DEVE SER ARMADO DE TAL FORMA QUE, MESMO SEM VER OS FATOS DESENROLAREM-SE, AQUELE QUE SIMPLESMENTE OUVE O SEU RELATO FIQUE TOCADO PELO TERROR E PELA PIEDADE DIANTE DOS INCIDENTES. É JUSTAMENTE ESSE EFEITO QUE A SIMPLES RECITAÇÃO DO ÉDIPO PRODUZ SOBRE NÓS.”
E)OU ELES(OS PROTAGONISTAS) PODEM PRATICAR OS ATOS, MAS SEM PERCEBER O HORROR INERENTE AOS MESMOS, DESCOBRINDO ISSO MAIS TARDE, COMO ACONTECE NO ÉDIPO DE SÓFOCLES.”
F)NADA DEVE HAVER DE IMPROVÁVEL NOS INCIDENTES PRESENTES. SE ISSO FOR INEVITÁVEL, QUE SEJA ENTÃO FORA DA TRAGÉDIA, COMO AS IMPROBABILIDADES NO ÉDIPO DE SÓFOCLES.”
G) A MELHOR DESCOBERTA, TODAVIA, É A RESULTANTE DOS PRÓPRIOS INCIDENTES , QUANDO A GRANDE SURPRESA SOBREVÉM POR MEIO DE UM INCIDENTE PLAUSÍVEL, COMO NO ÉDIPO DE SÓFOCLES.
H)O EFEITO MAIS CONCENTRADO É MAIS AGRADÁVEL QUE O RESULTANTE DO RECURSO A LONGOS INTERVALOS DE TEMPO PARA DILUIR A AÇÃO; VEJA-SE, POR EXEMPLO, O ÉDIPO DE SÓFOCLES.
“Os personagens da tragédia antiga, verdadeiras estátuas vivas, são isentos de conflitos íntimos. Estão eles informados pela consciência de sua vontade e por suas altas paixões, direitos, razões ou interesses pessoais. Eles fazem sempre a reivindicação moral de um direito relativo a um fato determinado. Ao contrário, a tragédia moderna apropria-se, desde seu começo, do princípio da personalidade ou da subjetividade. Faz do caráter pessoal em si, e não da individualização das forças morais, seu objetivo próprio e fundo de suas representações.”
“A fraqueza resultante da impossibilidade de tomar uma decisão, do recurso à reflexão, do exame das razões que pleiteiam por ou contra uma resolução dada, observa-se já nas tragédias antigas e, sobretudo, nas de Eurípedes que, de todos os trágicos gregos é aliás aquele que menos caso faz da plástica dos caracteres e das ações e procura sobretudo provocar emoções subjetivas. Ora, na tragédia moderna, estas personagens indecisas e hesitantes são apresentadas como assediadas por duas paixões que as arrastam em direções opostas, lhes inspiram decisões e as levam a atos que se contrariam... São naturezas duplas que não podem alcançar uma individualidade firme e completa. Acontece precisamente o contrário quando um caráter seguro de si mesmo se encontra ante dois deveres igualmente sagrados e é forçado a decidir-se por um, com exclusão do outro. A hesitação não passa, então, de uma fase transitória e não constitui o fundo do caráter”.
(Hegel – Estética)
SOBRE ÉDIPO REI(POÉTICA DE ARISTÓTELES):
A)PERIPÉCIA É A MUDANÇA, DENTRO DA PEÇA, DE UM ESTADO DE COISAS PARA O SEU OPOSTO, DE ACORDO COM NOSSA DESCRIÇÃO, SENDO ESSA MUDANÇA, ALÉM DO MAIS, PROVÁVEL OU INEVITÁVEL. POR EXEMPLO, O MENSAGEIRO NO ÉDIPO, QUE VEIO PARA ALEGRAR O REI E LIVRÁ-LO DA ANSIEDADE A RESPEITO DE SUA MÃE, REVELANDO-LHE SEU VERDADEIRO PARENTESCO, E FEZ EXATAMENTE O CONTRÁRIO.”
B)A ESPÉCIE POR EXCELÊNCIA DE DESCOBERTA(reconhecimento) É A QUE COINCIDE COM A PERIPÉCIA, COMO A RELACIONADA COM A DESCOBERTA NO ÉDIPO.”
C)ESSA É A ESPÉCIE DE HOMEM QUE NÃO É ESSENCIALMENTE VIRTUOSO E JUSTO E, TODAVIA, NÃO É POR MALDADE OU VILANIA INTRÍNSECAS QUE ELE CAI EM DESGRAÇA; É ANTES POR UM ERRO DE DISCERNIMENTO, SENDO ELE UM DOS QUE OCUPAM ALTAS POSIÇÕES E DESFRUTAM DE GRANDE PROSPERIDADE, COMO ÉDIPO”ARISTÓTELES REFERE-SE AO HERÓI PARA UMA TRAGÉDIA.
D)O MEDO E A PIEDADE ÀS VEZES RESULTAM DO ESPETÁCULO, E ÀS VEZES SÃO SUSCITADOS PELA ESTRUTURA MESMA E PELOS INCIDENTES DA PEÇA, QUE SÃO O MELHOR MEIO PARA MOSTRAR O MELHOR POETA. COM EFEITO, O ENREDO DEVE SER ARMADO DE TAL FORMA QUE, MESMO SEM VER OS FATOS DESENROLAREM-SE, AQUELE QUE SIMPLESMENTE OUVE O SEU RELATO FIQUE TOCADO PELO TERROR E PELA PIEDADE DIANTE DOS INCIDENTES. É JUSTAMENTE ESSE EFEITO QUE A SIMPLES RECITAÇÃO DO ÉDIPO PRODUZ SOBRE NÓS.”
E)OU ELES(OS PROTAGONISTAS) PODEM PRATICAR OS ATOS, MAS SEM PERCEBER O HORROR INERENTE AOS MESMOS, DESCOBRINDO ISSO MAIS TARDE, COMO ACONTECE NO ÉDIPO DE SÓFOCLES.”
F)NADA DEVE HAVER DE IMPROVÁVEL NOS INCIDENTES PRESENTES. SE ISSO FOR INEVITÁVEL, QUE SEJA ENTÃO FORA DA TRAGÉDIA, COMO AS IMPROBABILIDADES NO ÉDIPO DE SÓFOCLES.”
G) A MELHOR DESCOBERTA, TODAVIA, É A RESULTANTE DOS PRÓPRIOS INCIDENTES , QUANDO A GRANDE SURPRESA SOBREVÉM POR MEIO DE UM INCIDENTE PLAUSÍVEL, COMO NO ÉDIPO DE SÓFOCLES.
H)O EFEITO MAIS CONCENTRADO É MAIS AGRADÁVEL QUE O RESULTANTE DO RECURSO A LONGOS INTERVALOS DE TEMPO PARA DILUIR A AÇÃO; VEJA-SE, POR EXEMPLO, O ÉDIPO DE SÓFOCLES.
O PODER DA INCERTEZA
O Poder da Incerteza
Para que o cineasta ou a cineasta atinjam seu objetivo num longa é preciso, basicamente, manter o público na poltrona, prestando atenção no enredo e importando-se com o resultado e com os personagens. Em outras palavras, é preciso a participação do público. Sem isso, o espectador vira mera testemunha, desinteressado e insensível. Isto pode matar o drama, porque uma história não é, em si, dramática; ela só é dramática na medida em que tem impacto sobre o público, na medida em que seja capaz de comover, de alguma forma. O drama (incluindo-se ai tanto a comédia quanto a tragédia) exige uma reação emocional da platéia para poder existir.
Ironicamente, nem todas as histórias "comoventes" afetam as emoções do público e, por outro lado, nem todos os filmes aparentemente diretos e cheios de ação deixam o público insensível. Uma Rajada de Balas, O Poderoso Chefão e Intriga Internacional são filmes cheios de ação, entretanto todos geram uma reação fortemente emotiva por parte do público. Uma pessoa chorando histericamente num filme não terá nenhum impacto emocional a menos que nós saibamos alguma coisa sobre ela, sobre o contexto e sobre os fatos que levaram à crise de choro.
Então, qual é o truque para manter a participação do público e criar a reação emotiva da qual depende o drama? Respondendo numa só palavra: incerteza. Incerteza sobre o futuro imediato, incerteza sobre o desenrolar dos acontecimentos. Uma outra forma de definir esta idéia seria o conceito de "esperança versus medo". Se o cineasta conseguir fazer o público torcer por certos eventos e temer determinados outros, sem que saiba, de fato, para que lado vai pender a história, terá conseguido, com a incerteza, uma ferramenta poderosíssima. Quantas vezes não nos pegamos fascinados por uma história com um forte componente de esperança e medo?
Em Casablanca, Rick vai continuar ou não alheio àquele mundo complexo e perigoso que o cerca, ainda que seu grande amor, Ilsa, esteja envolvida e implicada? Em Os Incompreendidos, conseguirá Antoine encontrar um lugar no mundo onde se encaixe? Em O Tesouro de Sierra Madre, Fred C. Dobbs sucumbirá à cobiça ou manterá sua palavra? Em Janela Indiscreta, L. B. Jeiferies conseguirá provar o que houve do outro lado do pátio antes que o assassino o encontre? Em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, será que Alvy vai conseguir manter seu relacionamento com Annie? Em o Império Contra-Ataca, será que o jovem Luke será derrotado por Vader e se entregará ao Lado negro?
Às vezes, situações idênticas mas em circunstâncias diferentes provocam esperanças e medos opostos. Um casal jovem tentando ter um filho vai torcer para que a mulher engravide naquele mês e, simultaneamente, vai ter medo de que ela não consiga. Um casal de adolescentes, ou um casal cujo envolvimento é esporádico, talvez tenha medo de que a moça esteja grávida e torça para que não esteja. Ao mesmo tempo, a incerteza da platéia não é, necessariamente, igual à dos personagens. Se o público sentir que o casal tentando ter um filho não combina, que o casamento deles está por um fio e que o bebê vai se ressentir da separação iminente, o espectador é capaz de estar torcendo para que ela não fique grávida e temendo que ela consiga, ao passo que os personagens sentem exatamente o oposto.
Como é que se cria essa sensação de incerteza, esse conceito de "esperança versus medo", no público? Em primeiro lugar, e acima de tudo, o público precisa simpatizar, nem que seja minimamente, com um ou mais dos personagens principais. O passo seguinte para se criar esperança e medo é deixar que o público saiba o que potencialmente pode acontecer, mas nunca o que vai acontecer.
Em Tempos Modernos (Modern Times), Charlie Chaplin é vigia noturno numa loja de departamentos. Ele põe um par de patins nos pés e começa a exibir suas habilidades para Paulette Goddard usando uma venda nos olhos. Vai patinar justamente na área onde a loja passa por uma reforma, ao lado de um imenso buraco no chão. Ele patina na beirada do buraco, afasta-se, aproxima-se um pouco mais, afasta-se de novo, volta para perto do buraco, depois pára. Durante o tempo todo estamos rindo, mas tensos, sentindo uma forte sensação de esperança e medo.Se não soubéssemos do buraco no chão, se não pudéssemos prever o que poderia acontecer, não haveria tensão, não haveria esperança e medo e, portanto, não haveria drama. Mas como sabemos que ele pode despencar, entretanto não sabemos se ele vai ou não despencar mesmo, ficamos num estado de incerteza e, conseqüentemente, estamos participando.
A base dessa participação, portanto, é a antecipação. A antecipação do que pode ou não acontecer é uma situação informada, não é uma situação de ignorância.Em outras palavras, se não conhecemos os perigos ou os benefícios que podem advir no futuro próximo do filme, não somos capazes de antecipar o que pode ou não ocorrer.Um erro comum entre os roteiristas iniciantes é pensar que a única forma de evitar que o espectador adivinhe o final é mantê-lo desinformado sobre o que está acontecendo, é não divulgar informações. Mas imagine só se não tivéssemos conhecimento da existência do buraco no chão onde Carlitos patina. Imagine se não soubéssemos quem é o verdadeiro assassino em Frenesi (Frenzy). Imagine se não soubéssemos que havia bandidos atrás dos dois homens vestidos de mulher em Quanto Mais Quente Melhor (Some Like ft Hot). De onde viriam a tensão e o drama?
A chave para se evitar que o público adivinhe o que vem pela frente não é manter o espectador na ignorância e sim fazê-lo acreditar que, talvez, suas esperanças se concretizem, mas também que aquilo que ele teme pode acontecer. Ou seja, ter dois resultados igualmente plausíveis para determinada situação mantém a participação do público, porém este não é capaz de prever o resultado exato da cena ou da história.
A participação do público na história implica, portanto, o seguinte: o espectador tem um certo grau de simpatia pelo personagem, sabe o que pode acontecer ou não, está diretamente interessado num resultado ou noutro (através da esperança e do medo) e acredita realmente que tanto um quanto outro são possíveis.Tanto faz que você analise Amadeus ou Apocalipse Now, Janela Indiscreta ou E O Vento Levou, O Terceiro Homem ou Quando Duas Mulheres Pecam - a chave para que as cenas individuais e a história toda funcionem está no fato de os cineastas terem conseguido criar, no público, essa mistura de sentimentos, conhecimento e crença.Mas para poder criá-la no público, a mistura tem de existir no papel, tem de estar no roteiro.Se a criação desse relacionamento com o público não for levada em consideração na fase de roteirização, praticamente não existe qualquer esperança de superar a falha na produção do filme.
Texto extraído do livro "Teoria e Prática do Roteiro"
de Edward Mabley e David Howard
Para que o cineasta ou a cineasta atinjam seu objetivo num longa é preciso, basicamente, manter o público na poltrona, prestando atenção no enredo e importando-se com o resultado e com os personagens. Em outras palavras, é preciso a participação do público. Sem isso, o espectador vira mera testemunha, desinteressado e insensível. Isto pode matar o drama, porque uma história não é, em si, dramática; ela só é dramática na medida em que tem impacto sobre o público, na medida em que seja capaz de comover, de alguma forma. O drama (incluindo-se ai tanto a comédia quanto a tragédia) exige uma reação emocional da platéia para poder existir.
Ironicamente, nem todas as histórias "comoventes" afetam as emoções do público e, por outro lado, nem todos os filmes aparentemente diretos e cheios de ação deixam o público insensível. Uma Rajada de Balas, O Poderoso Chefão e Intriga Internacional são filmes cheios de ação, entretanto todos geram uma reação fortemente emotiva por parte do público. Uma pessoa chorando histericamente num filme não terá nenhum impacto emocional a menos que nós saibamos alguma coisa sobre ela, sobre o contexto e sobre os fatos que levaram à crise de choro.
Então, qual é o truque para manter a participação do público e criar a reação emotiva da qual depende o drama? Respondendo numa só palavra: incerteza. Incerteza sobre o futuro imediato, incerteza sobre o desenrolar dos acontecimentos. Uma outra forma de definir esta idéia seria o conceito de "esperança versus medo". Se o cineasta conseguir fazer o público torcer por certos eventos e temer determinados outros, sem que saiba, de fato, para que lado vai pender a história, terá conseguido, com a incerteza, uma ferramenta poderosíssima. Quantas vezes não nos pegamos fascinados por uma história com um forte componente de esperança e medo?
Em Casablanca, Rick vai continuar ou não alheio àquele mundo complexo e perigoso que o cerca, ainda que seu grande amor, Ilsa, esteja envolvida e implicada? Em Os Incompreendidos, conseguirá Antoine encontrar um lugar no mundo onde se encaixe? Em O Tesouro de Sierra Madre, Fred C. Dobbs sucumbirá à cobiça ou manterá sua palavra? Em Janela Indiscreta, L. B. Jeiferies conseguirá provar o que houve do outro lado do pátio antes que o assassino o encontre? Em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, será que Alvy vai conseguir manter seu relacionamento com Annie? Em o Império Contra-Ataca, será que o jovem Luke será derrotado por Vader e se entregará ao Lado negro?
Às vezes, situações idênticas mas em circunstâncias diferentes provocam esperanças e medos opostos. Um casal jovem tentando ter um filho vai torcer para que a mulher engravide naquele mês e, simultaneamente, vai ter medo de que ela não consiga. Um casal de adolescentes, ou um casal cujo envolvimento é esporádico, talvez tenha medo de que a moça esteja grávida e torça para que não esteja. Ao mesmo tempo, a incerteza da platéia não é, necessariamente, igual à dos personagens. Se o público sentir que o casal tentando ter um filho não combina, que o casamento deles está por um fio e que o bebê vai se ressentir da separação iminente, o espectador é capaz de estar torcendo para que ela não fique grávida e temendo que ela consiga, ao passo que os personagens sentem exatamente o oposto.
Como é que se cria essa sensação de incerteza, esse conceito de "esperança versus medo", no público? Em primeiro lugar, e acima de tudo, o público precisa simpatizar, nem que seja minimamente, com um ou mais dos personagens principais. O passo seguinte para se criar esperança e medo é deixar que o público saiba o que potencialmente pode acontecer, mas nunca o que vai acontecer.
Em Tempos Modernos (Modern Times), Charlie Chaplin é vigia noturno numa loja de departamentos. Ele põe um par de patins nos pés e começa a exibir suas habilidades para Paulette Goddard usando uma venda nos olhos. Vai patinar justamente na área onde a loja passa por uma reforma, ao lado de um imenso buraco no chão. Ele patina na beirada do buraco, afasta-se, aproxima-se um pouco mais, afasta-se de novo, volta para perto do buraco, depois pára. Durante o tempo todo estamos rindo, mas tensos, sentindo uma forte sensação de esperança e medo.Se não soubéssemos do buraco no chão, se não pudéssemos prever o que poderia acontecer, não haveria tensão, não haveria esperança e medo e, portanto, não haveria drama. Mas como sabemos que ele pode despencar, entretanto não sabemos se ele vai ou não despencar mesmo, ficamos num estado de incerteza e, conseqüentemente, estamos participando.
A base dessa participação, portanto, é a antecipação. A antecipação do que pode ou não acontecer é uma situação informada, não é uma situação de ignorância.Em outras palavras, se não conhecemos os perigos ou os benefícios que podem advir no futuro próximo do filme, não somos capazes de antecipar o que pode ou não ocorrer.Um erro comum entre os roteiristas iniciantes é pensar que a única forma de evitar que o espectador adivinhe o final é mantê-lo desinformado sobre o que está acontecendo, é não divulgar informações. Mas imagine só se não tivéssemos conhecimento da existência do buraco no chão onde Carlitos patina. Imagine se não soubéssemos quem é o verdadeiro assassino em Frenesi (Frenzy). Imagine se não soubéssemos que havia bandidos atrás dos dois homens vestidos de mulher em Quanto Mais Quente Melhor (Some Like ft Hot). De onde viriam a tensão e o drama?
A chave para se evitar que o público adivinhe o que vem pela frente não é manter o espectador na ignorância e sim fazê-lo acreditar que, talvez, suas esperanças se concretizem, mas também que aquilo que ele teme pode acontecer. Ou seja, ter dois resultados igualmente plausíveis para determinada situação mantém a participação do público, porém este não é capaz de prever o resultado exato da cena ou da história.
A participação do público na história implica, portanto, o seguinte: o espectador tem um certo grau de simpatia pelo personagem, sabe o que pode acontecer ou não, está diretamente interessado num resultado ou noutro (através da esperança e do medo) e acredita realmente que tanto um quanto outro são possíveis.Tanto faz que você analise Amadeus ou Apocalipse Now, Janela Indiscreta ou E O Vento Levou, O Terceiro Homem ou Quando Duas Mulheres Pecam - a chave para que as cenas individuais e a história toda funcionem está no fato de os cineastas terem conseguido criar, no público, essa mistura de sentimentos, conhecimento e crença.Mas para poder criá-la no público, a mistura tem de existir no papel, tem de estar no roteiro.Se a criação desse relacionamento com o público não for levada em consideração na fase de roteirização, praticamente não existe qualquer esperança de superar a falha na produção do filme.
Texto extraído do livro "Teoria e Prática do Roteiro"
de Edward Mabley e David Howard
JEAN-CLAUDE CARRIÈRE
O presente texto é a transcrição parcial de um seminário ministrado por Jean-Claude Carrière no Ateliers des Arts em março de 1983. Traduzido por Ignácio Dotto Neto .
O que é um roteiro?
Um roteiro pode ser comparado a uma ferramenta de alquimista. Uma passagem. Uma transmutação. Todos aqueles que, sobre um tablado, em um estúdio, participam desta transformação muito lenta, muito difícil, tão árdua quanto a busca da pedra filosofal - seja ele o último estagiário que traz os sanduíches ou o ‘mestre da obra' - são os operários deste ato de feitiçaria. Eles trabalham neste antro, neste cadinho mágico que é o cinema, que irá transformar um ‘objeto' escrito em ‘coisa' filmada. O roteiro é principalmente isso, o instrumento de uma passagem, uma etapa crisálida. Se tivesse que definir o roteiro, é o que eu poderia dizer... Um texto portador de um outro estado... Palavras geradoras de imagens e sons.
Um texto livre
Nunca digo ‘Uma das regras fundamentais do roteiro é...'. Acho que não existe nenhuma regra neste campo. Os roteiristas podem imaginar tudo, fazer tudo. A única certeza, a única exigência é que aquilo tem que funcionar... e aí nenhum pressuposto divino ou humano pode ditar essa ou aquela forma. Dito isto, existem princípios que se aprendem e nos quais se acredita porque sabemos que quando não os aplicamos o filme não fica tão bom quanto poderia. Me parece essencial e evidente ‘nunca anunciar o que será visto, nunca contar o que se viu'. Isso parece simples e pueril, um novo ovo de Colombo. E, no entanto, quando vamos ao cinema, os personagens comentam a ação, discorrem sobre a imagem quando é completamente inútil ou, pior ainda, anunciam e expõem o que vai acontecer, aquilo que nos será mostrado. É uma perda de tempo considerável, uma redundância. Evitá-la é difícil e dá muito trabalho, mas é uma regra que me imponho e cada roteirista cria sua própria exigência. Isso força a não ceder à facilidade da narrativa e a buscar e imaginar soluções narrativas que, de outro modo, não teriam sido confrontadas.
Um texto que não é uma narrativa
Todos nós fomos educados na tradição da tragédia clássica que se baseia na narrativa. Isto faz parte de nossos ‘genes' e é difícil desprender-se deles, na verdade impossível como mudar de raça. No período da tragédia clássica, se narrava, não se mostrava. Fazia-se assim por razões de ‘bom gosto', de conveniência. Agora, quando as contingências não são mais as mesmas, ainda nos resta alguma coisa que não conseguimos esquecer. Não estou afirmando que não há necessidade de narrativa no cinema. Algumas vezes é até interessante narrar alguma coisa que não vimos. Em A via Láctea, que escrevi com Buñuel, um personagem conta um milagre e para mim é uma das melhores cenas do filme... Buñuel e eu nunca havíamos experimentado isso e um dia dissemos ‘E se escrevêssemos uma narrativa cinematográfica?'... Imaginamos que alguém se senta perto de uma lareira, rodeado por uma platéia e começa a contar... E que o que ele diz, o que sugere não é nem uma narração romanesca nem um texto teatral, mas pertence ao mundo cinematográfico... O cinema não é literatura. Isto me parece muito importante. A literatura é talvez o maior perigo que ameaça o roteiro, o cinema: é preciso que desconfiemos das palavras muito bonitas que são utilizadas, das frases muito bem construídas: elas não têm equivalência na tela; elas se referem a um outro registro, o do estilo escrito e não à linguagem visual. Somos tentados sempre colocar no papel ‘que reina em uma peça uma atmosfera lúgubre' ou que ‘os personagens têm um ar de contentamento'. O que isso quer dizer? É preciso que um roteirista seja extremamente honesto com o filme que vai nascer de suas palavras. Ele não pode escrever algo que não vai acontecer, que não tem relação com o que o expectador irá ver.
Se podemos escrever que ‘Georges Swamm acorda de mau humor', é preciso saber primeiro o que, sem essa indicação, não é possível, ou menos difícil. Em seguida, isso pode ser indicado, mas é preciso que este estado de espírito seja traduzido na tela, o que não é simples. Mas escrever ‘que ele acorda pensando em Odette' pertence apenas à literatura, que vem naturalmente sob a pena quando é preciso afastar-se dela. A experiência me ensinou outras coisas no que diz respeito à escrita técnica de um roteiro.
Um texto ligado ao tempo
Não é preciso narrar longamente uma ação breve e brevemente uma ação longa. O tempo de leitura de um roteiro deve corresponder quase ao tempo de projeção do filme. As durações devem ser iguais. Ler um roteiro em voz alta - ação e diálogos - por alguns minutos não deve tomar mais ou menos tempo que o que se passa para ver o filme. Não é preciso descrever em vinte e cinco linhas a queda de alguém que cai de uma janela nem despachar em uma frase a atitude de um personagem que, debruçada nessa mesma janela, está sonhadora e triste, espera por alguém ou olha a paisagem durante muito tempo. Nesse caso, convém definir com precisão o que se vê e fazer sentir de uma maneira indireta o tempo que passa.Em suma, é preciso que a escrita seja equivalente e paralela ao tempo cinematográfico.
Um texto próximo à imagem
Sou roteirista há 20 anos e tenho constatado – devido aos fatos - uma evolução na escrita de roteiro. Antes ela era muito mais técnica, precisa. Era necessário dar muitas indicações de cenário, de lentes, até mesmo de diafragma. Hoje, tudo isso desapareceu em grande parte e o roteirista não está mais ligado desse modo a uma escrita que inclui uma découpage técnica, pois a filmagem se faz mais comumente em cenários naturais aos quais devemos nos adaptar no próprio momento.
Mas permanece na escrita de um roteiro uma certa maneira de indicar o que eu chamo uma découpage inconsciente ou subterrânea. O simples fato de iniciar novo parágrafo evidencia isso. O conteúdo das frases também.
Se digo ‘uns trinta estudantes estão reunidos em uma sala com poltronas negras da escola de cinema', isso implica, sem necessidade de maiores especificações, uma panorâmica. Se escrevo ‘na primeira fila, uma estudante morena com cabelos curtos toma notas com uma caneta azul', isso indica automaticamente um close.
Iniciar um novo parágrafo ritma inconscientemente a leitura e dá indicações preciosas. À primeira vista, não nos damos conta que existe uma découpage, mas existe, e a leitura não é obstruída e sobrecarregada de indicações técnicas. Se leio ‘em uma pequena mesa, dois homens estão sentados. Um fala e tem uma barba grisalha, e o outro, os braços cruzados e está ouvindo', eu vejo um plano médio. Se leio ‘sua mão leva um copo d'água até seus lábios', eu sei que se trata de umclose-up . Se queremos indicar um travelling unindo esses dois planos - plano médio e close-up - basta escrever essas duas ações sem interrupção, quer dizer, ‘dois homens estão sentados em uma mesa. Um fala, o outro escuta. A mão do homem barbudo pega um copo e aproxima de seus lábios'. Inconscientemente, fiz um zoom e antes um travelling, porque não abri novo parágrafo. Se, em compensação, eu abro um novo parágrafo, por esse simples fato de escrita, indico um corte, uma mudança de plano. Quando se trabalha com um diretor, quando imaginamos em dois uma cena, acontece um outro fenômeno. Acontece uma espécie de comunicação visual que se estabelece, que mantém a découpage inconsciente induzida no que acabamos de perceber - iniciar novo parágrafo ou não, escrever essa ou aquela frase. Misteriosamente, os dois colegas vêem a cena com as mesmas disposições. Com Buñuel, isso acontecia constantemente. Se eu escrevia, por exemplo, ‘Alguns expectadores estão na sala. Pela porta enfeitada com papel de parede azul acaba de entrar um homem moreno, vestido com um pulôver, que vai se sentar'. Isso queria dizer - minha mudança de parágrafo - que eu tinha me colocado na porta para ver a entrada desse personagem. Quando começávamos a trabalhar essa cena e eu desenhava a tomada, se eu perguntava ‘Luis, de que lado do cenário é a porta?' Ele me respondia, por exemplo, ‘à sua esquerda' e isso sempre correspondia ao que eu havia imaginado. Isso está relacionado ao gesto que fazemos, às atitudes que tomamos, mas também a uma comunicação quase telepática que se estabelece entre duas pessoas que trabalham há alguns dias ou semanas juntos.
Existe história e história
Existem muitas maneiras de abordar uma história. Podemos classificar as narrativas em gênero ‘histórico', épico, cômico, sabendo que estes rótulos são sempre inúteis. Podemos também tentar definir uma história segundo o público para o qual nos dirigimos. Eu prefiro me situar em um outro plano. Creio que existem apenas três tipos de histórias. A história contada por alguém que a conhece para pessoas que também a conhecem. Esse tipo de narrativa possui raízes muito ancestrais e é o mais difundido. É da mesma família do trabalho dos contadores de histórias. Penso sempre naqueles da Amazônia que têm por tarefa contar os eventos míticos que determinaram o nascimento da tribo. O que eles dizem, todos os expectadores já conhecem. Mas o que é importante é a maneira como eles contam, a maneira de introduzir suas personalidades aos acontecimentos. Os mesmos fatos muito precisos assumem uma outra coloração conforme é este ou aquele contador que se encarrega de contar. Danton [1] pertence a este tipo de história. O homem que ele é, o que lhe acontece não é uma revelação. 90% dos expectadores sabem que ele vai se opor a Robespierre e que será guilhotinado. O que vai lhes interessar no filme Danton que coloca em cena um homem cujo destino eles conhecem muito bem? É preciso segurar sua atenção não por meio de peripécias - que já estão enumeradas - mas pela maneira de apresentar a narrativa, o ângulo da tomada e o trabalho do ator.
Existe também a história contada por quem a conhece para aqueles que não a conhecem. Mais de 50% dos filmes que vemos pertencem a essa categoria, é evidente. Se escrevo um roteiro de um filme policial, eu conheço o culpado, conheço o assassino e sei como o desfecho vai acontecer. Os espectadores, pelo menos em princípio, ignoram tudo isso. Hitchcock, que é o mestre desta segunda categoria de narrativa, dizia: ‘não conte o fim'. É o que podemos chamar ‘a história chtt' ou história ‘dedos sobre os lábios'.
Este gênero de narrativa também possui raízes muito antigas. O teatro, a arte dramática, tem origens sagradas, estão ligados ao religioso. Mas a tragédia grega pertence mais à primeira categoria. Aqui, encontramos o que apareceu com o romance, quer dizer, uma história que foi escrita por alguém que a inventou e é descoberta pelos leitores que a ignoram e penetram nela página após página, acontecimento após acontecimento. Por último, existe o terceiro tipo de narrativa. Alguém conta uma história que não conhece a pessoas que não a conhecem mais que ele. Isso pode ser resumido em uma única palavra: ‘improvisação'. Aí também as origens remontam à noite dos tempos. O teatro a tem praticado desde os primórdios e, na tela, Godard ou Ferreri trabalham dessa forma e são os cineastas do terceiro tipo. No momento em que Jean-Luc Godard diz “filmando”, ele não sabe realmente o que vai se passar. Ele diz ‘é preciso evitar chegar antes de ter partido' e a primeira questão que ele coloca sempre é ‘o que está acontecendo?'. No momento em que ‘estão rodando' acontece alguma coisa que não aconteceria durante os ensaios. Existem evento e fenômeno novos. Ele os espera e os utiliza.
Ferreri raramente faz uma tomada duas vezes. O que lhe parece importante é o que ele captou naquele momento preciso. Acontece de ele suprimir se a tomada não ficou boa. Cada vez, bem entendido, ele tem uma idéia do que quer, mas não sabe o que vai ter e se deixa levar pela descoberta.
Para citar um belo exemplo do que a improvisação pode trazer a um espetáculo, é preciso citar Les maîtres fous, de Jean Rouch, que Peter Brook também considera um filme emblemático. Aí, trata-se de um happening, uma palavra decomposta que modifica todo seu sentido: o que acontece em um momento de transe, quando um ator está tão completamente possuído que esquece de si mesmo e se torna aquilo se supõe que está representando? É preciso ver e rever este filme para compreender bem o que a improvisação pode dar como dimensão nova a um espetáculo. Raoul Ruiz, com quem eu falava um dia da minha maneira de classificar as histórias em três tipos de narrativas, me respondeu sob a forma de provocação e de brincadeira que existe ainda uma quarta ‘uma história contada por pessoas que não a conhecem para pessoas que a conhecem'. Eu pedi que me desse um exemplo e ele me disse ‘Todos os cineastas da América Latina ou do Terceiro Mundo vêm a Paris. Fazem o IDHEC [2] , aprendem a fazer cinema à européia e em seguida retornam a seus países. Resolvem contar uma história típica deles, mas fazem em um estilo europeu. O que faz com que coloquem em cena uma história que eles esqueceram, perverteram, traíram, transformaram e a contam para pessoas, para espectadores que a conhecem muito bem, mas que simplesmente não a reconhecem mais'.
O ritmo e o tempo
Uma outra escritura
Se escrevo em um roteiro ‘na manhã seguinte, Charles Swann acorda pensando em Odette', é uma frase literária que não possui nenhuma equivalência cinematográfica. Cada palavra contém uma impossibilidade: ‘o dia seguinte': como indicar no cinema que estamos no dia seguinte? ‘De manhã' é menos simples do que pensamos. ‘Charles Swann'; se não pronunciei esse nome antes, ninguém saberá quem ele é: será simplesmente um homem em sua cama. E ‘pensando em Odette' não é imaginável. Podemos mostrar um ator que está refletindo, mas não podemos mostrar alguém que está pensando. Se não conseguimos comunicar um pensamento preciso, às vezes tentamos sugerir de modo sutil aquilo que um personagem está pensando. Simplesmente mostrando-o e abstendo-se de falar de suas impressões ou de suas preocupações. Mas de um modo geral ‘o pensamento é a noite do cinema'... É preciso lembrar sempre que o público é mais passivo no cinema que no teatro. A imagem na tela se impõe com mais força e realismo que uma cena de teatro. Quando um diretor não se dá conta da faculdade de imaginação de um público de teatro, ele vai inevitavelmente ao fracasso. No cinema, o espectador está na sombra e está disposto a receber imagens. A partir do momento que uma imagem é fotografada, que é a própria definição do fotograma, ela é recebida como verdadeira. É por isso que o fantástico, a violência, o horror possui tanto impacto: acreditamos no que vemos. A tela é portadora de verdade. O cinema nos transforma em São Tomé: vimos, acreditamos. No teatro, ao contrário, permanecemos sempre no teatro. Isso não quer dizer que a emoção sentida seja fraca, mas ela nos atinge de um modo diferente.
A importância do tempo
Fazer perceber o desenrolar do tempo é outra dificuldade. Isso se transforma em um instransponível quebra-cabeça quando é preciso indicar que se passam 15 dias ou três semanas e encontrar um ritmo que permita contar uma história pelo calendário. Por outro lado, devemos estabelecer dentro do roteiro uma espécie de continuidade, de ‘falso ritmo', e separar o que chamamos ‘o tempo cinematográfico', tempo que é para mim o problema número um desta escritura. O tempo cinematográfico se diferencia do tempo romanesco e do tempo teatral.
As noites e os dias
Um dia, eu falava de Danton com Wajda. Eu disse a ele ‘me parece, depois de tantos anos de trabalho que uma das coisas mais importantes em um filme é a alternância de noites e dias. Não que seja necessário uma noite para uma noite e um dia para um dia, pois o dia cinematográfico não tem nada a ver com a descrição de tudo o que se passa durante 24 horas. Podemos escrever ‘interior' do Palácio do Congresso. ‘Dia' e em seguida ‘interior. Hôtel Arenberg. Dia'. Será um dia cinematográfico, mas a cena do hotel poderá se passar três semanas depois. Dentro de um dia ‘tela', podemos colocar muitos dias da vida real, misturar o tempo. Para as noites, é mais difícil. Temos todos na memória certos filmes noiramericanos que se passam quase que exclusivamente durante a noite, nos quais uma noite sucede a outra, continuidade que é mais difícil e acrobática de estabelecer que a dos dias. Pois sei, sem poder explicar, que uma noite cinematográfica dificilmente pode conter muitas noites reais. Ao contrário do que é possível com os dias. Mas o mais importante é a relação, no interior de um mesmo roteiro, da sucessão de noites e dias. Isso dá um ritmo inconsciente que não é percebido, que não é preciso acentuar, mas que funciona com energia. Esse ritmo é essencial: todas nossas atividades, nossa vida, são definidas por ele. Romper com isso condena ao mal-estar, ao fracasso.
Acabo de trabalhar com Daniel Vigne em um filme, Le Retour de Martin Guerre.A ação se passa durante três ou quatro meses. É indispensável estabelecer desde o início o número de noites contidas em um roteiro. Não podemos escrever um roteiro que dura muitos meses somente com duas noites. É melhor que sejam 6 ou 7... sem chegar a abordar as 90 ou 120 que corresponderiam à realidade!
Observei, sem nunca ter tido a teoria, que as passagens do dia e da noite indicam uma mudança muito rápida. Também é bom alterná-los de modo regular - se isso é possível - para que o mesmo intervalo separe as noites umas das outras. Isso ajuda a encontrar uma respiração, um ritmo que parece natural porque está de acordo com o desenrolar do tempo na realidade, com a passagem das estações. Isso, posso dizer, é quase uma receita. Quando eu falava para Wajda de tudo isso, ele foi logo interrompendo e me disse ‘Eu precisei de 20 anos para descobrir isso'. Esse ritmo é muito importante. Se ele não funciona ou funciona mal, cria uma espécie de caos que pode ser interessante se o dominamos, se o organizamos, se brincamos com ele. Um filme não é um rio que corre com regularidade. Nele podem existir quedas, cascatas, redemoinhos. Mais uma vez não existe qualquer regra, mas é preciso saber que, quaisquer que sejam o estilo e o ritmo de seu filme, esta alternância de dias e noites é fundamental.
Encontrar o ritmo
Todo ritmo é bom. Toda quebra de ritmo é perigosa. Ela pode ser às vezes extraordinária se é bem feita, pois desperta o interesse.
Todo ritmo é bom, seja ele rápido, lento ou moderado. Mas é importante não errar o ritmo. Assistimos comédias devastadas porque o diretor pensava que esse gênero implicava obrigatoriamente o movimento irregular, o acelerado, a rapidez, que se a câmera girasse rápida, seria muito mais engraçado do que se funcionasse em velocidade normal. Laurel e Hardy nos ensinaram exatamente o contrário. Eles são, juntamente com Raoul Walsh, os inventores do cômico lento, do cômico vindo do circo, do cômico em que não se acelera... e embaixo da lona milhões e milhões de pessoas riem há gerações. A questão do ritmo não está apenas ligada ao assunto, mas ao ator e ao resultado antecipado. Vi Tati, no dia de estréia de As férias de Monsieur Hulot,espantado, na cabine de projeção do cinema Normandie, refazendo a montagem. Chaplin dizia que nunca sabia quanto tempo deveria permanecer em um efeito cômico no fim de uma gag. Buñuel conheceu Chaplin muito bem. Eles se viam muito em uma época que Luis estava passando por dificuldades financeiras. Buñuel inclusive tentou vender algumas gags a ele. Um dia, Chaplin o convidou para uma pré-estréia de Luzes da cidade , filme onde há a famosa cena em que ele engole um apito. Ele tem um soluço e está assoviando. Buñuel, como os outros espectadores, riu muito... no início, porque a gag durava 23 minutos, duração que Chaplin achava perfeita. Buñuel me contou ‘Depois de 3 ou 4 minutos, frente a essa repetição desmesurada, nós nos olhamos, em seguida olhamos nossos relógios e no final da seção, dissemos a ele que era muito interessante, mas que havia aquela cena que não acabava nunca'. Chaplin, que, entretanto, sabia fazer filmes, ficou com um ar muito surpreso. Ele não tinha se dado conta que a duração era inadmissível. Foi preciso toda a insistência de Buñuel e de outros para reduzir a gag a um tempo razoável... normal. Embora a noção de normalidade seja muito elástica uma vez que o que faz um espectador rir durante um certo tempo poderá aborrecer outro rapidamente. Uma platéia é uma mistura.
São necessários tempos mortos?
Quando me colocam essa questão, penso sempre na cena de acampamento em um western ... esse tempo de suspensão, da qual algumas vezes sentimos a obscura necessidade que se assemelha àquela da noite. Essa cena não existe apenas neste tipo de cinema. Transposta, a encontramos em todos os filmes. Ela está presente em Claude Saudet quando ele volta com Piccoli e Schneider. Trata-se do momento em que a ação pára e sentimos a necessidade de comentá-la, determinar as coordenadas. Os personagens dormem se possível uns nos braços dos outros e, que um índio malvado ou o marido ciumento esteja escondido atrás de uma moita ou de um outdoor, o que importa é que seja um momento de respiração e não de tensão. Essa cena de acampamento é um tempo morto? Não creio, pelo menos não no sentido negativo. Ela faz parte da estrutura da narrativa e da necessidade que os espectadores têm de fazer uma pausa. Um tempo morto também não é uma moldura vazia ou uma cena que dura excepcionalmente muito tempo. Neste caso podemos de preferência falar como dizemos no teatro ‘colaboração com o público'. O encenador deve se perguntar às vezes ‘o que é que permite à imaginação de um expectador brincar no mesmo tempo que a minha?' Losey em Accident faz com que os personagens saiam de cena e nos deixa por um momento em um cenário vazio, seja um interior ou um caminho na zona rural rodeado de árvores. Se formos expectadores atentos e interessados, esta imagem não será vivenciada como nada: ela faz vibrar em nós tudo o que a cena anterior significava, continuamos a contar para nós mesmos a história dos personagens que acabam de sair.
Mas esse qualquer coisa que continua em nós, somos nós, o público, que o trazemos, não é Losey. Losey nos ofereceu a ocasião de sonhar naquele momento. A ocasião de reunir nossos sentimentos, a ocasião de imaginar o que continuam a fazer e a dizer os personagens que não estamos mais vendo. Isso é muito, muito bom. Mas será um tempo morto, esse momento em que bruscamente a ação pára e quando o que passou em um olhar ou um gesto é deixado para a interpretação e emoção de cada expectador?
Não acho. O conteúdo da imagem.Uma linguagem de olhar e gesto
Fui rever La marche nuptiale, de Eric von Stroheim. É um filme de que gosto muito. Me perguntei como tinha sido escrita no roteiro a cena da sedução a cavalo - ela é bastante conhecida - quando, enquanto uma missa solene está sendo celebrada na catedral, Stroheim, que no filme interpreta um personagem que comanda um esquadrão de cavaleiros austríacos nesta cidade de guarnição, seduz uma jovem que vê passar seu cavalo e seu regimento. Ela está no meio da multidão com seu noivo, um açougueiro muito rude, e seus pais. É uma cena que dura 15 minutos: nem uma palavra é trocada. Não há nada além de olhares, gestos, sorrisos muito discretos. Como isso foi escrito, narrado, minuciosamente calculado no papel? Tudo acontece no olhar e cada olhar é diferente. Existem os olhares da jovem e ela está com sua cabeça quase na altura do joelho de Stroheim. Ele quer perguntar a ela se ela é casada. Ele está com sua espada na mão, ele a baixa e também os olhos, ele convida seu olhar a fazer o mesmo movimento. Há um contracampo da jovem cujo olhar baixa até a mão de Stroheim, a mão que faz alguns gestos, que a jovem não entende, isso se lê em seus olhos. Então, ele cruza as mãos e em uma outra atitude, um outro movimento, tenta perguntar a ela ‘você é casada?' É uma cena fantástica, muito erótica. Como traduzir em um roteiro o que não é uma linguagem de diálogo, mas de fisionomia, de atitude? Acho que houve umadécoupage muito precisa, quase desenhada. Não podemos deixar ao acaso da montagem as direções do olhar, os olhos da jovem que vão do rosto até a mão. Isso deve estar rigorosamente previsto.
O cassetete de Hitchcock
Hitchcock colocava os problemas do cinema de um modo muito concreto. Ele se perguntava, por exemplo, e ele achava isso fundamental, se, quando uma pessoa caminha por uma rua na qual depois da esquina alguém a espera com um cassetete, é preciso mostrar ou não o homem com o cassetete. Durante toda a vida ele se colocou esse problema, como Chaplin nunca parou de se perguntar quanto tempo deveria durar a gag do apito. A maneira como estou falando dessas coisas pode parecer simplificar essa questão, ela não continua menos central. É necessário mostrar os suspenses: filmar o homem que caminha pela rua, pára, compra um jornal, enquanto o outro, constrangido pelos transeuntes, esconde seu cassetete ou jogar com o prodigioso efeito de surpresa de um golpe de cassetete que não era esperado. É entre esses dois pólos, com todas //as nuances que eles implicam, que trabalha o cinema de Hitchcock. Ele e Lubitsch se comportam como romancistas do século XIX, eles são os mestres absolutos de seus personagens. Em To be or not to be , Lubitsch passa de um personagem a outro, de um cenário a outro em função do que espera da reação do público: isso retoma e prolonga a questão colocada por Hitchcock: em que momento o público deve estar antecipado em relação ao personagem, em que momento ele deve estar atrasado. Em um filme policial, o detetive possui uma informação que precede a do expectador. Ele sabe de coisas, mas nos oculta até a revelação final. Ele faz um certo número de operações misteriosas, de colocações que nos mostram que ele tem uma idéia. Por outro lado, no exemplo de Hitchcock, se vemos o homem com o cassetete estamos adiantados em relação ao detetive e à narrativa.
O bom lugar do clichê.
Hitchcock dizia também, em uma outra esfera, ‘Mais vale partir de um clichê do que terminar em um'. Quando procuramos uma idéia original, que damos tratos à bola para encontrar uma situação que nunca foi contada e a encontramos, começamos por festejar e nos parabenizar por termos inventado um truque extraordinário. Em seguida nos perguntamos ‘Será que os expectadores vão aceitar isso?' Então começamos a elaborar, a encontrar ajustes, em suma, a reduzir o novo, e terminamos com um clichê. Isso aconteceu com Jean Lotte há uns vinte anos. Ele propôs a um produtor de rodar um filme sobre a vida dos santos dos primeiros séculos da Igreja. Ele conhecia muito bem o assunto e havia publicado um livro a respeito. Os dois concordaram que é uma história extraordinária, que nunca tinha sido filmada, portanto deveria ser feita. Eles envolveram um roteirista e todos trabalharam por mais de seis meses. O filme foi de fato filmado, mas, de mudança em mudança, não se tratava mais de uma história santa, mas de uma série noir com Eddie Constantine que se passava na Madrid de nossos dias. Eis o caminho de um roteiro. De tanto se perguntarem sobre por quê um filme tão longe de nós, de se perguntar qual personagem contemporâneo poderia ser o mais próximo de um santo de antigamente e descobrir que seria um detetive particular, sem nenhuma pressão do produtor, eles chegaram a fazer um filme completamente banal partindo de uma idéia bem original. Se, por outro lado, como Hitchcock e Lubitsch, partimos de uma situação melodramática clássica e desenvolvemos essa idéia, ao fazermos um exercício de aprofundamento, ao introduzirmos pouco a pouco elementos que irão, digamos, pervertê-la, torná-la interessante, temos mais chances de chegar a um filme original do que se, desde o início, pensamos que iremos fazer algo que nunca foi visto. Quando partimos de uma originalidade importante ou de uma grande novidade, contra nossa própria vontade, estamos nos protegendo. Estabelecemos estruturas de pensamento, medos, freios que agem e nos bloqueiam sem nos darmos conta.
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Traduzido por Ignácio Dotto Neto , roteirista, mestre em Teoria Literária pela UNICAMP, autor de Entreatos – o teatro em Curitiba entre 1981 e 1995, eContracenas – o teatro em Curitiba contado por seus artistas.
Referência bibliográfica
Contracampo – Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Vol 10/11, Niterói: 2004, pp. 99-110.
O que é um roteiro?
Um roteiro pode ser comparado a uma ferramenta de alquimista. Uma passagem. Uma transmutação. Todos aqueles que, sobre um tablado, em um estúdio, participam desta transformação muito lenta, muito difícil, tão árdua quanto a busca da pedra filosofal - seja ele o último estagiário que traz os sanduíches ou o ‘mestre da obra' - são os operários deste ato de feitiçaria. Eles trabalham neste antro, neste cadinho mágico que é o cinema, que irá transformar um ‘objeto' escrito em ‘coisa' filmada. O roteiro é principalmente isso, o instrumento de uma passagem, uma etapa crisálida. Se tivesse que definir o roteiro, é o que eu poderia dizer... Um texto portador de um outro estado... Palavras geradoras de imagens e sons.
Um texto livre
Nunca digo ‘Uma das regras fundamentais do roteiro é...'. Acho que não existe nenhuma regra neste campo. Os roteiristas podem imaginar tudo, fazer tudo. A única certeza, a única exigência é que aquilo tem que funcionar... e aí nenhum pressuposto divino ou humano pode ditar essa ou aquela forma. Dito isto, existem princípios que se aprendem e nos quais se acredita porque sabemos que quando não os aplicamos o filme não fica tão bom quanto poderia. Me parece essencial e evidente ‘nunca anunciar o que será visto, nunca contar o que se viu'. Isso parece simples e pueril, um novo ovo de Colombo. E, no entanto, quando vamos ao cinema, os personagens comentam a ação, discorrem sobre a imagem quando é completamente inútil ou, pior ainda, anunciam e expõem o que vai acontecer, aquilo que nos será mostrado. É uma perda de tempo considerável, uma redundância. Evitá-la é difícil e dá muito trabalho, mas é uma regra que me imponho e cada roteirista cria sua própria exigência. Isso força a não ceder à facilidade da narrativa e a buscar e imaginar soluções narrativas que, de outro modo, não teriam sido confrontadas.
Um texto que não é uma narrativa
Todos nós fomos educados na tradição da tragédia clássica que se baseia na narrativa. Isto faz parte de nossos ‘genes' e é difícil desprender-se deles, na verdade impossível como mudar de raça. No período da tragédia clássica, se narrava, não se mostrava. Fazia-se assim por razões de ‘bom gosto', de conveniência. Agora, quando as contingências não são mais as mesmas, ainda nos resta alguma coisa que não conseguimos esquecer. Não estou afirmando que não há necessidade de narrativa no cinema. Algumas vezes é até interessante narrar alguma coisa que não vimos. Em A via Láctea, que escrevi com Buñuel, um personagem conta um milagre e para mim é uma das melhores cenas do filme... Buñuel e eu nunca havíamos experimentado isso e um dia dissemos ‘E se escrevêssemos uma narrativa cinematográfica?'... Imaginamos que alguém se senta perto de uma lareira, rodeado por uma platéia e começa a contar... E que o que ele diz, o que sugere não é nem uma narração romanesca nem um texto teatral, mas pertence ao mundo cinematográfico... O cinema não é literatura. Isto me parece muito importante. A literatura é talvez o maior perigo que ameaça o roteiro, o cinema: é preciso que desconfiemos das palavras muito bonitas que são utilizadas, das frases muito bem construídas: elas não têm equivalência na tela; elas se referem a um outro registro, o do estilo escrito e não à linguagem visual. Somos tentados sempre colocar no papel ‘que reina em uma peça uma atmosfera lúgubre' ou que ‘os personagens têm um ar de contentamento'. O que isso quer dizer? É preciso que um roteirista seja extremamente honesto com o filme que vai nascer de suas palavras. Ele não pode escrever algo que não vai acontecer, que não tem relação com o que o expectador irá ver.
Se podemos escrever que ‘Georges Swamm acorda de mau humor', é preciso saber primeiro o que, sem essa indicação, não é possível, ou menos difícil. Em seguida, isso pode ser indicado, mas é preciso que este estado de espírito seja traduzido na tela, o que não é simples. Mas escrever ‘que ele acorda pensando em Odette' pertence apenas à literatura, que vem naturalmente sob a pena quando é preciso afastar-se dela. A experiência me ensinou outras coisas no que diz respeito à escrita técnica de um roteiro.
Um texto ligado ao tempo
Não é preciso narrar longamente uma ação breve e brevemente uma ação longa. O tempo de leitura de um roteiro deve corresponder quase ao tempo de projeção do filme. As durações devem ser iguais. Ler um roteiro em voz alta - ação e diálogos - por alguns minutos não deve tomar mais ou menos tempo que o que se passa para ver o filme. Não é preciso descrever em vinte e cinco linhas a queda de alguém que cai de uma janela nem despachar em uma frase a atitude de um personagem que, debruçada nessa mesma janela, está sonhadora e triste, espera por alguém ou olha a paisagem durante muito tempo. Nesse caso, convém definir com precisão o que se vê e fazer sentir de uma maneira indireta o tempo que passa.Em suma, é preciso que a escrita seja equivalente e paralela ao tempo cinematográfico.
Um texto próximo à imagem
Sou roteirista há 20 anos e tenho constatado – devido aos fatos - uma evolução na escrita de roteiro. Antes ela era muito mais técnica, precisa. Era necessário dar muitas indicações de cenário, de lentes, até mesmo de diafragma. Hoje, tudo isso desapareceu em grande parte e o roteirista não está mais ligado desse modo a uma escrita que inclui uma découpage técnica, pois a filmagem se faz mais comumente em cenários naturais aos quais devemos nos adaptar no próprio momento.
Mas permanece na escrita de um roteiro uma certa maneira de indicar o que eu chamo uma découpage inconsciente ou subterrânea. O simples fato de iniciar novo parágrafo evidencia isso. O conteúdo das frases também.
Se digo ‘uns trinta estudantes estão reunidos em uma sala com poltronas negras da escola de cinema', isso implica, sem necessidade de maiores especificações, uma panorâmica. Se escrevo ‘na primeira fila, uma estudante morena com cabelos curtos toma notas com uma caneta azul', isso indica automaticamente um close.
Iniciar um novo parágrafo ritma inconscientemente a leitura e dá indicações preciosas. À primeira vista, não nos damos conta que existe uma découpage, mas existe, e a leitura não é obstruída e sobrecarregada de indicações técnicas. Se leio ‘em uma pequena mesa, dois homens estão sentados. Um fala e tem uma barba grisalha, e o outro, os braços cruzados e está ouvindo', eu vejo um plano médio. Se leio ‘sua mão leva um copo d'água até seus lábios', eu sei que se trata de umclose-up . Se queremos indicar um travelling unindo esses dois planos - plano médio e close-up - basta escrever essas duas ações sem interrupção, quer dizer, ‘dois homens estão sentados em uma mesa. Um fala, o outro escuta. A mão do homem barbudo pega um copo e aproxima de seus lábios'. Inconscientemente, fiz um zoom e antes um travelling, porque não abri novo parágrafo. Se, em compensação, eu abro um novo parágrafo, por esse simples fato de escrita, indico um corte, uma mudança de plano. Quando se trabalha com um diretor, quando imaginamos em dois uma cena, acontece um outro fenômeno. Acontece uma espécie de comunicação visual que se estabelece, que mantém a découpage inconsciente induzida no que acabamos de perceber - iniciar novo parágrafo ou não, escrever essa ou aquela frase. Misteriosamente, os dois colegas vêem a cena com as mesmas disposições. Com Buñuel, isso acontecia constantemente. Se eu escrevia, por exemplo, ‘Alguns expectadores estão na sala. Pela porta enfeitada com papel de parede azul acaba de entrar um homem moreno, vestido com um pulôver, que vai se sentar'. Isso queria dizer - minha mudança de parágrafo - que eu tinha me colocado na porta para ver a entrada desse personagem. Quando começávamos a trabalhar essa cena e eu desenhava a tomada, se eu perguntava ‘Luis, de que lado do cenário é a porta?' Ele me respondia, por exemplo, ‘à sua esquerda' e isso sempre correspondia ao que eu havia imaginado. Isso está relacionado ao gesto que fazemos, às atitudes que tomamos, mas também a uma comunicação quase telepática que se estabelece entre duas pessoas que trabalham há alguns dias ou semanas juntos.
Existe história e história
Existem muitas maneiras de abordar uma história. Podemos classificar as narrativas em gênero ‘histórico', épico, cômico, sabendo que estes rótulos são sempre inúteis. Podemos também tentar definir uma história segundo o público para o qual nos dirigimos. Eu prefiro me situar em um outro plano. Creio que existem apenas três tipos de histórias. A história contada por alguém que a conhece para pessoas que também a conhecem. Esse tipo de narrativa possui raízes muito ancestrais e é o mais difundido. É da mesma família do trabalho dos contadores de histórias. Penso sempre naqueles da Amazônia que têm por tarefa contar os eventos míticos que determinaram o nascimento da tribo. O que eles dizem, todos os expectadores já conhecem. Mas o que é importante é a maneira como eles contam, a maneira de introduzir suas personalidades aos acontecimentos. Os mesmos fatos muito precisos assumem uma outra coloração conforme é este ou aquele contador que se encarrega de contar. Danton [1] pertence a este tipo de história. O homem que ele é, o que lhe acontece não é uma revelação. 90% dos expectadores sabem que ele vai se opor a Robespierre e que será guilhotinado. O que vai lhes interessar no filme Danton que coloca em cena um homem cujo destino eles conhecem muito bem? É preciso segurar sua atenção não por meio de peripécias - que já estão enumeradas - mas pela maneira de apresentar a narrativa, o ângulo da tomada e o trabalho do ator.
Existe também a história contada por quem a conhece para aqueles que não a conhecem. Mais de 50% dos filmes que vemos pertencem a essa categoria, é evidente. Se escrevo um roteiro de um filme policial, eu conheço o culpado, conheço o assassino e sei como o desfecho vai acontecer. Os espectadores, pelo menos em princípio, ignoram tudo isso. Hitchcock, que é o mestre desta segunda categoria de narrativa, dizia: ‘não conte o fim'. É o que podemos chamar ‘a história chtt' ou história ‘dedos sobre os lábios'.
Este gênero de narrativa também possui raízes muito antigas. O teatro, a arte dramática, tem origens sagradas, estão ligados ao religioso. Mas a tragédia grega pertence mais à primeira categoria. Aqui, encontramos o que apareceu com o romance, quer dizer, uma história que foi escrita por alguém que a inventou e é descoberta pelos leitores que a ignoram e penetram nela página após página, acontecimento após acontecimento. Por último, existe o terceiro tipo de narrativa. Alguém conta uma história que não conhece a pessoas que não a conhecem mais que ele. Isso pode ser resumido em uma única palavra: ‘improvisação'. Aí também as origens remontam à noite dos tempos. O teatro a tem praticado desde os primórdios e, na tela, Godard ou Ferreri trabalham dessa forma e são os cineastas do terceiro tipo. No momento em que Jean-Luc Godard diz “filmando”, ele não sabe realmente o que vai se passar. Ele diz ‘é preciso evitar chegar antes de ter partido' e a primeira questão que ele coloca sempre é ‘o que está acontecendo?'. No momento em que ‘estão rodando' acontece alguma coisa que não aconteceria durante os ensaios. Existem evento e fenômeno novos. Ele os espera e os utiliza.
Ferreri raramente faz uma tomada duas vezes. O que lhe parece importante é o que ele captou naquele momento preciso. Acontece de ele suprimir se a tomada não ficou boa. Cada vez, bem entendido, ele tem uma idéia do que quer, mas não sabe o que vai ter e se deixa levar pela descoberta.
Para citar um belo exemplo do que a improvisação pode trazer a um espetáculo, é preciso citar Les maîtres fous, de Jean Rouch, que Peter Brook também considera um filme emblemático. Aí, trata-se de um happening, uma palavra decomposta que modifica todo seu sentido: o que acontece em um momento de transe, quando um ator está tão completamente possuído que esquece de si mesmo e se torna aquilo se supõe que está representando? É preciso ver e rever este filme para compreender bem o que a improvisação pode dar como dimensão nova a um espetáculo. Raoul Ruiz, com quem eu falava um dia da minha maneira de classificar as histórias em três tipos de narrativas, me respondeu sob a forma de provocação e de brincadeira que existe ainda uma quarta ‘uma história contada por pessoas que não a conhecem para pessoas que a conhecem'. Eu pedi que me desse um exemplo e ele me disse ‘Todos os cineastas da América Latina ou do Terceiro Mundo vêm a Paris. Fazem o IDHEC [2] , aprendem a fazer cinema à européia e em seguida retornam a seus países. Resolvem contar uma história típica deles, mas fazem em um estilo europeu. O que faz com que coloquem em cena uma história que eles esqueceram, perverteram, traíram, transformaram e a contam para pessoas, para espectadores que a conhecem muito bem, mas que simplesmente não a reconhecem mais'.
O ritmo e o tempo
Uma outra escritura
Se escrevo em um roteiro ‘na manhã seguinte, Charles Swann acorda pensando em Odette', é uma frase literária que não possui nenhuma equivalência cinematográfica. Cada palavra contém uma impossibilidade: ‘o dia seguinte': como indicar no cinema que estamos no dia seguinte? ‘De manhã' é menos simples do que pensamos. ‘Charles Swann'; se não pronunciei esse nome antes, ninguém saberá quem ele é: será simplesmente um homem em sua cama. E ‘pensando em Odette' não é imaginável. Podemos mostrar um ator que está refletindo, mas não podemos mostrar alguém que está pensando. Se não conseguimos comunicar um pensamento preciso, às vezes tentamos sugerir de modo sutil aquilo que um personagem está pensando. Simplesmente mostrando-o e abstendo-se de falar de suas impressões ou de suas preocupações. Mas de um modo geral ‘o pensamento é a noite do cinema'... É preciso lembrar sempre que o público é mais passivo no cinema que no teatro. A imagem na tela se impõe com mais força e realismo que uma cena de teatro. Quando um diretor não se dá conta da faculdade de imaginação de um público de teatro, ele vai inevitavelmente ao fracasso. No cinema, o espectador está na sombra e está disposto a receber imagens. A partir do momento que uma imagem é fotografada, que é a própria definição do fotograma, ela é recebida como verdadeira. É por isso que o fantástico, a violência, o horror possui tanto impacto: acreditamos no que vemos. A tela é portadora de verdade. O cinema nos transforma em São Tomé: vimos, acreditamos. No teatro, ao contrário, permanecemos sempre no teatro. Isso não quer dizer que a emoção sentida seja fraca, mas ela nos atinge de um modo diferente.
A importância do tempo
Fazer perceber o desenrolar do tempo é outra dificuldade. Isso se transforma em um instransponível quebra-cabeça quando é preciso indicar que se passam 15 dias ou três semanas e encontrar um ritmo que permita contar uma história pelo calendário. Por outro lado, devemos estabelecer dentro do roteiro uma espécie de continuidade, de ‘falso ritmo', e separar o que chamamos ‘o tempo cinematográfico', tempo que é para mim o problema número um desta escritura. O tempo cinematográfico se diferencia do tempo romanesco e do tempo teatral.
As noites e os dias
Um dia, eu falava de Danton com Wajda. Eu disse a ele ‘me parece, depois de tantos anos de trabalho que uma das coisas mais importantes em um filme é a alternância de noites e dias. Não que seja necessário uma noite para uma noite e um dia para um dia, pois o dia cinematográfico não tem nada a ver com a descrição de tudo o que se passa durante 24 horas. Podemos escrever ‘interior' do Palácio do Congresso. ‘Dia' e em seguida ‘interior. Hôtel Arenberg. Dia'. Será um dia cinematográfico, mas a cena do hotel poderá se passar três semanas depois. Dentro de um dia ‘tela', podemos colocar muitos dias da vida real, misturar o tempo. Para as noites, é mais difícil. Temos todos na memória certos filmes noiramericanos que se passam quase que exclusivamente durante a noite, nos quais uma noite sucede a outra, continuidade que é mais difícil e acrobática de estabelecer que a dos dias. Pois sei, sem poder explicar, que uma noite cinematográfica dificilmente pode conter muitas noites reais. Ao contrário do que é possível com os dias. Mas o mais importante é a relação, no interior de um mesmo roteiro, da sucessão de noites e dias. Isso dá um ritmo inconsciente que não é percebido, que não é preciso acentuar, mas que funciona com energia. Esse ritmo é essencial: todas nossas atividades, nossa vida, são definidas por ele. Romper com isso condena ao mal-estar, ao fracasso.
Acabo de trabalhar com Daniel Vigne em um filme, Le Retour de Martin Guerre.A ação se passa durante três ou quatro meses. É indispensável estabelecer desde o início o número de noites contidas em um roteiro. Não podemos escrever um roteiro que dura muitos meses somente com duas noites. É melhor que sejam 6 ou 7... sem chegar a abordar as 90 ou 120 que corresponderiam à realidade!
Observei, sem nunca ter tido a teoria, que as passagens do dia e da noite indicam uma mudança muito rápida. Também é bom alterná-los de modo regular - se isso é possível - para que o mesmo intervalo separe as noites umas das outras. Isso ajuda a encontrar uma respiração, um ritmo que parece natural porque está de acordo com o desenrolar do tempo na realidade, com a passagem das estações. Isso, posso dizer, é quase uma receita. Quando eu falava para Wajda de tudo isso, ele foi logo interrompendo e me disse ‘Eu precisei de 20 anos para descobrir isso'. Esse ritmo é muito importante. Se ele não funciona ou funciona mal, cria uma espécie de caos que pode ser interessante se o dominamos, se o organizamos, se brincamos com ele. Um filme não é um rio que corre com regularidade. Nele podem existir quedas, cascatas, redemoinhos. Mais uma vez não existe qualquer regra, mas é preciso saber que, quaisquer que sejam o estilo e o ritmo de seu filme, esta alternância de dias e noites é fundamental.
Encontrar o ritmo
Todo ritmo é bom. Toda quebra de ritmo é perigosa. Ela pode ser às vezes extraordinária se é bem feita, pois desperta o interesse.
Todo ritmo é bom, seja ele rápido, lento ou moderado. Mas é importante não errar o ritmo. Assistimos comédias devastadas porque o diretor pensava que esse gênero implicava obrigatoriamente o movimento irregular, o acelerado, a rapidez, que se a câmera girasse rápida, seria muito mais engraçado do que se funcionasse em velocidade normal. Laurel e Hardy nos ensinaram exatamente o contrário. Eles são, juntamente com Raoul Walsh, os inventores do cômico lento, do cômico vindo do circo, do cômico em que não se acelera... e embaixo da lona milhões e milhões de pessoas riem há gerações. A questão do ritmo não está apenas ligada ao assunto, mas ao ator e ao resultado antecipado. Vi Tati, no dia de estréia de As férias de Monsieur Hulot,espantado, na cabine de projeção do cinema Normandie, refazendo a montagem. Chaplin dizia que nunca sabia quanto tempo deveria permanecer em um efeito cômico no fim de uma gag. Buñuel conheceu Chaplin muito bem. Eles se viam muito em uma época que Luis estava passando por dificuldades financeiras. Buñuel inclusive tentou vender algumas gags a ele. Um dia, Chaplin o convidou para uma pré-estréia de Luzes da cidade , filme onde há a famosa cena em que ele engole um apito. Ele tem um soluço e está assoviando. Buñuel, como os outros espectadores, riu muito... no início, porque a gag durava 23 minutos, duração que Chaplin achava perfeita. Buñuel me contou ‘Depois de 3 ou 4 minutos, frente a essa repetição desmesurada, nós nos olhamos, em seguida olhamos nossos relógios e no final da seção, dissemos a ele que era muito interessante, mas que havia aquela cena que não acabava nunca'. Chaplin, que, entretanto, sabia fazer filmes, ficou com um ar muito surpreso. Ele não tinha se dado conta que a duração era inadmissível. Foi preciso toda a insistência de Buñuel e de outros para reduzir a gag a um tempo razoável... normal. Embora a noção de normalidade seja muito elástica uma vez que o que faz um espectador rir durante um certo tempo poderá aborrecer outro rapidamente. Uma platéia é uma mistura.
São necessários tempos mortos?
Quando me colocam essa questão, penso sempre na cena de acampamento em um western ... esse tempo de suspensão, da qual algumas vezes sentimos a obscura necessidade que se assemelha àquela da noite. Essa cena não existe apenas neste tipo de cinema. Transposta, a encontramos em todos os filmes. Ela está presente em Claude Saudet quando ele volta com Piccoli e Schneider. Trata-se do momento em que a ação pára e sentimos a necessidade de comentá-la, determinar as coordenadas. Os personagens dormem se possível uns nos braços dos outros e, que um índio malvado ou o marido ciumento esteja escondido atrás de uma moita ou de um outdoor, o que importa é que seja um momento de respiração e não de tensão. Essa cena de acampamento é um tempo morto? Não creio, pelo menos não no sentido negativo. Ela faz parte da estrutura da narrativa e da necessidade que os espectadores têm de fazer uma pausa. Um tempo morto também não é uma moldura vazia ou uma cena que dura excepcionalmente muito tempo. Neste caso podemos de preferência falar como dizemos no teatro ‘colaboração com o público'. O encenador deve se perguntar às vezes ‘o que é que permite à imaginação de um expectador brincar no mesmo tempo que a minha?' Losey em Accident faz com que os personagens saiam de cena e nos deixa por um momento em um cenário vazio, seja um interior ou um caminho na zona rural rodeado de árvores. Se formos expectadores atentos e interessados, esta imagem não será vivenciada como nada: ela faz vibrar em nós tudo o que a cena anterior significava, continuamos a contar para nós mesmos a história dos personagens que acabam de sair.
Mas esse qualquer coisa que continua em nós, somos nós, o público, que o trazemos, não é Losey. Losey nos ofereceu a ocasião de sonhar naquele momento. A ocasião de reunir nossos sentimentos, a ocasião de imaginar o que continuam a fazer e a dizer os personagens que não estamos mais vendo. Isso é muito, muito bom. Mas será um tempo morto, esse momento em que bruscamente a ação pára e quando o que passou em um olhar ou um gesto é deixado para a interpretação e emoção de cada expectador?
Não acho. O conteúdo da imagem.Uma linguagem de olhar e gesto
Fui rever La marche nuptiale, de Eric von Stroheim. É um filme de que gosto muito. Me perguntei como tinha sido escrita no roteiro a cena da sedução a cavalo - ela é bastante conhecida - quando, enquanto uma missa solene está sendo celebrada na catedral, Stroheim, que no filme interpreta um personagem que comanda um esquadrão de cavaleiros austríacos nesta cidade de guarnição, seduz uma jovem que vê passar seu cavalo e seu regimento. Ela está no meio da multidão com seu noivo, um açougueiro muito rude, e seus pais. É uma cena que dura 15 minutos: nem uma palavra é trocada. Não há nada além de olhares, gestos, sorrisos muito discretos. Como isso foi escrito, narrado, minuciosamente calculado no papel? Tudo acontece no olhar e cada olhar é diferente. Existem os olhares da jovem e ela está com sua cabeça quase na altura do joelho de Stroheim. Ele quer perguntar a ela se ela é casada. Ele está com sua espada na mão, ele a baixa e também os olhos, ele convida seu olhar a fazer o mesmo movimento. Há um contracampo da jovem cujo olhar baixa até a mão de Stroheim, a mão que faz alguns gestos, que a jovem não entende, isso se lê em seus olhos. Então, ele cruza as mãos e em uma outra atitude, um outro movimento, tenta perguntar a ela ‘você é casada?' É uma cena fantástica, muito erótica. Como traduzir em um roteiro o que não é uma linguagem de diálogo, mas de fisionomia, de atitude? Acho que houve umadécoupage muito precisa, quase desenhada. Não podemos deixar ao acaso da montagem as direções do olhar, os olhos da jovem que vão do rosto até a mão. Isso deve estar rigorosamente previsto.
O cassetete de Hitchcock
Hitchcock colocava os problemas do cinema de um modo muito concreto. Ele se perguntava, por exemplo, e ele achava isso fundamental, se, quando uma pessoa caminha por uma rua na qual depois da esquina alguém a espera com um cassetete, é preciso mostrar ou não o homem com o cassetete. Durante toda a vida ele se colocou esse problema, como Chaplin nunca parou de se perguntar quanto tempo deveria durar a gag do apito. A maneira como estou falando dessas coisas pode parecer simplificar essa questão, ela não continua menos central. É necessário mostrar os suspenses: filmar o homem que caminha pela rua, pára, compra um jornal, enquanto o outro, constrangido pelos transeuntes, esconde seu cassetete ou jogar com o prodigioso efeito de surpresa de um golpe de cassetete que não era esperado. É entre esses dois pólos, com todas //as nuances que eles implicam, que trabalha o cinema de Hitchcock. Ele e Lubitsch se comportam como romancistas do século XIX, eles são os mestres absolutos de seus personagens. Em To be or not to be , Lubitsch passa de um personagem a outro, de um cenário a outro em função do que espera da reação do público: isso retoma e prolonga a questão colocada por Hitchcock: em que momento o público deve estar antecipado em relação ao personagem, em que momento ele deve estar atrasado. Em um filme policial, o detetive possui uma informação que precede a do expectador. Ele sabe de coisas, mas nos oculta até a revelação final. Ele faz um certo número de operações misteriosas, de colocações que nos mostram que ele tem uma idéia. Por outro lado, no exemplo de Hitchcock, se vemos o homem com o cassetete estamos adiantados em relação ao detetive e à narrativa.
O bom lugar do clichê.
Hitchcock dizia também, em uma outra esfera, ‘Mais vale partir de um clichê do que terminar em um'. Quando procuramos uma idéia original, que damos tratos à bola para encontrar uma situação que nunca foi contada e a encontramos, começamos por festejar e nos parabenizar por termos inventado um truque extraordinário. Em seguida nos perguntamos ‘Será que os expectadores vão aceitar isso?' Então começamos a elaborar, a encontrar ajustes, em suma, a reduzir o novo, e terminamos com um clichê. Isso aconteceu com Jean Lotte há uns vinte anos. Ele propôs a um produtor de rodar um filme sobre a vida dos santos dos primeiros séculos da Igreja. Ele conhecia muito bem o assunto e havia publicado um livro a respeito. Os dois concordaram que é uma história extraordinária, que nunca tinha sido filmada, portanto deveria ser feita. Eles envolveram um roteirista e todos trabalharam por mais de seis meses. O filme foi de fato filmado, mas, de mudança em mudança, não se tratava mais de uma história santa, mas de uma série noir com Eddie Constantine que se passava na Madrid de nossos dias. Eis o caminho de um roteiro. De tanto se perguntarem sobre por quê um filme tão longe de nós, de se perguntar qual personagem contemporâneo poderia ser o mais próximo de um santo de antigamente e descobrir que seria um detetive particular, sem nenhuma pressão do produtor, eles chegaram a fazer um filme completamente banal partindo de uma idéia bem original. Se, por outro lado, como Hitchcock e Lubitsch, partimos de uma situação melodramática clássica e desenvolvemos essa idéia, ao fazermos um exercício de aprofundamento, ao introduzirmos pouco a pouco elementos que irão, digamos, pervertê-la, torná-la interessante, temos mais chances de chegar a um filme original do que se, desde o início, pensamos que iremos fazer algo que nunca foi visto. Quando partimos de uma originalidade importante ou de uma grande novidade, contra nossa própria vontade, estamos nos protegendo. Estabelecemos estruturas de pensamento, medos, freios que agem e nos bloqueiam sem nos darmos conta.
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Traduzido por Ignácio Dotto Neto , roteirista, mestre em Teoria Literária pela UNICAMP, autor de Entreatos – o teatro em Curitiba entre 1981 e 1995, eContracenas – o teatro em Curitiba contado por seus artistas.
Referência bibliográfica
Contracampo – Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Vol 10/11, Niterói: 2004, pp. 99-110.
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