sábado, 11 de dezembro de 2010

UM PARALELO ENTRE A TRAJETÓRIA DE GERALDO VANDRÉ E A DA PERSONAGEM DE WINSTON SMITH, DE “1984”, LIVRO DE GEORGE ORWELL – PARTE I

"Ele foi um rei, e brincou com a sorte
Hoje ele é nada, e retrata a morte
Ele foi um rei, e brincou com a sorte
Hoje ele é nada, e retrata a morte

Ele passou por mim, mudo e entristecido
Eu quis gritar seu nome, não pude
Ele olhou pra parede, disse coisas lindas
Disse um poema pra um poste, me veio lágrimas

O que foi que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei
O que foi que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei"
("Tributo A Um Rei Esquecido", Benito Di Paula)  OUÇA A MÚSICA

“Duas lágrimas cheirando a gim escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão.” – “1984” – George Orwell

Geraldo Vandré e Winston Smith têm muito em comum. Ambos foram quebrados pela ditadura. Ambos acabaram tendo suas mentes transtornadas, a ponto de Winston Smith chegar a amar o Grande Irmão (símbolo do Estado totalitário de 1984) e Geraldo Vandré a adotar a FAB (símbolo do militarismo brasileiro) como sua protetora, a ponto de compor uma música chamada ”Fabiana”, em homenagem à Força Aérea Brasileira. Winston Smith foi barbaramente torturado pelo regime  de “1984”, livro de George Orwell escrito em 1948 (1948 x 1984, entenderam?) , Geraldo Vandré não admite ter sido torturado, mas suas declarações fazem supor que sim, seja ela tortura física ou psicológica. No “GLOBO NEWS DOSSIÊ” (2010) , entrevistado por Geneton Moraes Netto, Vandré deixou escapar que “guerra é guerra”, “eu não perdi! (risos) ”. Foi um riso envergonhado, sem dúvida, pois ele sabe que perdeu. Além disso, Vandré diz: “tive que passar por um processo de adaptação ao voltar”. Esse processo de “adaptação” foi, na verdade, controlado pelos militares com “tratamento” em clínicas psiquiátricas. Celso Lungaretti em seu blog “Náufrago da Utopia” sustenta a tese de lavagem cerebral. Existem depoimentos de pessoas que viram Vandré em clínicas de Botafogo, bairro do Rio de Janeiro. Geraldo diz que”chegou meio perdido e doente em seu próprio país”, quando foi “acolhido pelos militares, alojado” e que deram a ele tratamento médico. Alguns chegaram a dizer que ele teria teria sido castrado. Existem precedentes: Manoel (não citarei o sobrenome) , militante de esquerda, foi castrado, mas sobreviveu e nem por isso passou para o outro lado, como parece ter sido o caso de Vandré. Digo parece, porque a hipótese de lavagem cerebral é crível, mas minha opinião pessoal é de que ele foi tão maltratado, enlouquecido, pagando por seus “pecados” por ter composto “Caminhando”, a marselhesa brasileira, que ele não teve condições psicológicas de voltar com suas atividades musicais coerentemente, pois não dá para dizer, de forma alguma,  que “Fabiana” é coerente com seu passado, por outro lado, ele se mostra aparentemente lúcido na entrevista e mede nitidamente as palavras. Mas por que Caetano Veloso e Gilberto Gil, que também voltaram do exílio, continuaram produzindo e fazendo sucesso e Vandré paralisou suas atividades?Vandré, em um depoimento, pouco depois de ter chegado ao Brasil, declarou que “a partir de agora, só faria canções de amor e de paz”, Gil declarou: “não tenho mais compromissos com a história”. A minha opinião é de que a ditadura brasileira considerava Vandré mais perigoso que Caetano e Gil. Geraldo admite que sua chegada ao Brasil se deu, na verdade, 58 dias antes de sua entrevista ao “Jornal Nacional” (telejornal da Globo que, à época, apoiava a ditadura militar), em que aparecia como se estivesse acabando de chegar ao Brasil, “tudo muito manipulado”, declarou ele mesmo. Seja como for, parece que o efeito do “tratamento” se metamorfoseou num acordo em que Vandré se comprometeu a nunca dizer a verdade, pois sofreria represálias se contasse a verdade. Winston Smith também foi “acolhido” pela ditadura de “1984”. Virou um pária, assim como Vandré, envergonhado de si mesmo e impotente para lutar. O primeiro nome da personagem do livro foi uma referência à Winston Churchill, homem importantíssimo na Inglaterra. Já Smith, é o sobrenome mais popular da Inglaterra. Geraldo é um nome super comum no Brasil. Já Vandré, vem de uma abreviação do sobrenome do pai de Vandré( Vandrelísio ). Mas aí residem uma diferença e uma semelhança importantes: Vandré virou um nome mítico por causa do próprio Vandré, que compôs o hino de uma geração que lutou contra a ditadura militar, Churchill era um mito pré-existente, mas igualmente um mito. Seja fruto da cultura massificada, que Geraldo criticou na entrevista ao “Dossiê Globo News” ou não, o fato é que Vandré é, ou era, um mito.

LEIA MAIS SOBRE VANDRÉ

Veja a entrevista que Geraldo Vandré concedeu ao Dossiê Globo News

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O POLICIAL NA LITERATURA - PARTE 3


A estratégia do crime

De seu início, com Poe, no século 19, até a atualidade, com autores como os argentinos Ricardo Piglia e Juan José Saer, a literatura policial se torna cada vez mais dominante

Adriano Schwartz
Editor do Mais!


O escritor Ricardo Piglia já disse mais de uma vez que não há nada além de livros de viagens ou histórias policiais. "Narra-se uma viagem ou um crime. Que outra coisa se pode narrar?". A afirmação é intensificada em "Formas Breves", há pouco lançado no Brasil, no qual ele diz que "o gênero policial é o grande gênero moderno [...], inunda o mundo contemporâneo".
Ao contrário do que normalmente se pensa, então, os herdeiros de investigação de Dupin, Sherlock Holmes, padre Brown, Maigret, Poirot, Marlowe, Spade ocupariam um lugar nobre numa potencial e sempre controversa hierarquia do valor literário.
A própria produção do autor argentino – textos como "Respiração Artificial" ou "Nome Falso" – confirma que a hipótese pode ser correta. Os inúmeros títulos policiais de qualidade bastante questionável publicados mensalmente, infestados de convenções e temas estereotipados, parece desmenti-la.
Como a intenção aqui não é criar um enigma insolúvel à espera de mais um improvável detetive, e sim tentar entender um pouco melhor o papel que esse tipo de narrativa exerce atualmente – e por que ele, ao mesmo tempo, consegue ser atacado e defendido de modos tão peremptórios –, vale a pena retomar brevemente a sua origem e lembrar algumas das modificações pelas quais passou, com uma pequena incursão pelas recentes publicações de dois autores brasileiros, Joaquim Nogueira e Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Detetive-padrão
O norte-americano Edgar Allan Poe, com Auguste Dupin, personagem de três de seus contos, cria na primeira metade do século 19 (em 1841, com "Os Crimes da Rua Morgue") o primeiro detetive de fato da literatura policial e estabelece alguns padrões que foram seguidos por vários autores: o narrador é um amigo/discípulo do investigador; a reflexão predomina sobre a ação; o final precisa surpreender o leitor.
Inventado pelo inglês Conan Doyle, Sherlock Holmes, o mais famoso dos detetives, segue a fórmula. Suas histórias são contadas por um médico e admirador, o dr. Watson, e ele se vale de sua mente poderosa e de uma minuciosa busca de indícios e pistas que a outros haviam passado despercebidos para solucionar os mais difíceis crimes, sempre de modo inesperado. E também, para muitos, de modo irritante, uma vez que muitas das conclusões de Holmes são extraídas esotericamente, sem que o texto tivesse possibilitado ao leitor chegar à mesma solução por sua conta: é como se a narrativa fosse "desonesta".
Segundo Jorge Luis Borges, grande admirador, crítico e autor do gênero policial, essa é uma falha inaceitável. "Declaração de todos os termos do problema: se a memória não me engana (ou sua falta), a variada infração dessa lei é o defeito preferido de Conan Doyle", afirma o autor em um de seus "mandamentos da narração policial". Raymond Chandler reafirmaria o argumento, em suas "regras para histórias de mistério": "Elas precisam ser honestas com o leitor. Isso é sempre dito, mas o que a frase implica freqüentemente não é levado em conta".
De falha desse tipo sofrem muitos dos desfechos dos casos do padre Brown, de Chesterton, apesar de este ser sempre muito elogiado por Borges. Para ele, o inglês dominava a técnica de transmitir a impressão de que havia algo de irreal por trás do acontecimento criminoso, para logo apresentar uma solução totalmente racional. O método de Brown? Colocar-se no lugar do adversário, transformar-se no adversário. Ainda assim, é muito difícil assimilar sem uma ponta de incredulidade a resolução de "O Homem Invisível", para citar um dos contos mais famosos do autor. O mesmo ocorre com as histórias de dois dos mais prolíficos autores policiais, George Simenon e Agatha Christie.

Sujeira
No final dos anos 20, nos EUA, acontece uma guinada no perfil da ficção policial. Dashiell Hammett cria a figura do detetive durão, mulherengo, de humor corrosivo e moral menos rígida, em textos escritos de modo seco e ambientados muitas vezes nos recantos mais pobres e violentos da cidade. Os contos e cinco romances – principalmente "O Falcão Maltês" e Sam Spade, seu protagonista – mostram que o universo do crime pode ser sujo.
Muitos críticos acreditam que, em decorrência das diferenças entre essa tradição "dura" e a anterior, elas não devam ser misturadas. O fato é que Raymond Chandler, talvez o principal autor dessa segunda linhagem, ataca com insistência predecessores e contemporâneos – Agatha Christie, com especial prazer ("você não engana o leitor escondendo pistas ou tornando falso um personagem, como Christie...") – em seus ensaios.
É com esses escritores que o criador de Philip Marlowe duela: o atrito não significa, portanto, ruptura, e sim modificação. Trata-se ainda de crime, investigação e solução. Só que agora com dúvidas, sexo, dinheiro, fracasso, sangue, morte. Com variações maiores ou menores, é o tipo de narrativa desenvolvida por Hammett e Chandler que predomina na maior parte dos romances policiais "criminosos" que vendem milhares de exemplares anualmente ao redor do planeta.
Do ponto de vista da técnica, a solução apresentada por Poe é das mais seguras. Ao centrar o foco narrativo em um personagem secundário, que acompanha a seqüência de eventos e reflexões do detetive, ele simula a colocação de uma câmera que acompanha por trás os passos do detetive e registra os acontecimentos e discussões, dando ao leitor a sensação de que está "jogando limpo" e de que a resolução do problema estaria também ao alcance dele.
Outra via possível, a de Chandler por exemplo, é deixar o investigador contar a própria história. O leitor vê o que ele vê: acrescenta-se aí a uma percepção semelhante de "honestidade" o conhecimento da subjetividade do personagem, de suas impressões, temores, riscos.
"Vida Pregressa", segundo romance de Joaquim Nogueira, lançado há pouco, utiliza esse padrão. O mérito do autor é torná-lo atrativo pelo uso de um procedimento de reiteração aparentemente banal. O detetive Venício resolve investigar a morte de um homem. Cada pista que ele descobre o leva a uma nova pessoa. Para cada "elemento" interrogado, o personagem explica como chegou até ele, repetindo os passos prévios de sua busca. A narrativa cria assim um efeito de eco distorcido, que vai se amplificando de modo a acompanhar a progressiva complexificação da intriga, ao mesmo tempo em que o espaço geográfico da trama, a cidade de São Paulo, também vai se tornando mais abrangente.
A opção mais comum, mais fácil e mais problemática, no entanto, é a do narrador onisciente. Como apresentar no início da história os pensamentos do personagem que, se saberá ao final, era o misterioso culpado? Talvez a saída mais eficaz para esse dilema seja a de Hammett em "O Falcão Maltês". Apesar de o livro ser narrado em terceira pessoa, o protagonista Sam Spade está sempre em primeiro plano – não há nenhuma cena do romance em que ele não apareça – e, além disso, em momento nenhum penetra-se no "interior" de qualquer personagem: o leitor, assim, toma conhecimento apenas do que o detetive vê ou ouve. Com isso, o autor inclusive aumenta o suspense, já que nunca se sabe como Spade reagirá aos eventos.

Admiração e incômodo

Ainda onisciente, mas em muitos trechos de maneira seletiva, alternando personagens, é o narrador de "O Caso dos Dez Negrinhos", o romance mais conhecido de Agatha Christie. O livro provoca admiração pela engenhosidade da autora, em uma primeira leitura, e incômodo na releitura. Nela, ficam evidentes pensamentos do "vilão" claramente incompatíveis com a premissa básica de que, desde o começo, ele já era o responsável por tudo o que ocorreria.
É essa também a técnica de Luiz Alfredo Garcia-Roza em "Perseguido", a mais recente aventura do delegado Espinosa. O investigador divide a cena com a família do psiquiatra Arthur Nesse – mulher e duas filhas- e com o seu paciente, borgianamente denominado Isidoro Cruz, apesar de ele só aceitar ser chamado de Jonas. Calculada ou não – e esse é um dos fulcros do enredo-, a "imposição" desse segundo nome pelo jovem já indica que, nesta obra, tudo será mais complicado.
Para não estragar o prazer dos muitos leitores que o livro ainda terá, não cabe aqui discutir detalhes do enredo e da labiríntica tematização da paranóia que ele propõe. É necessário dizer, no entanto, que, muito por conta da alternância do foco narrativo, se as "conclusões" de Espinosa no desfecho do texto estivessem corretas, o romance – pelo menos em seu aspecto "policial"- não se sustentaria. O "erro" do detetive, contudo, faz parte do jogo, engrandece-o. Uma das mais impressionantes características de um texto literário é que apenas ele, em sua totalidade, pode desmentir um personagem, um narrador e até mesmo um autor (bem como, aliás, ele pode posteriormente desmentir o desmentido...). Em "Perseguido", Garcia-Roza parece estar brincando com a lembrança que um memorialista em um conto de Borges tem de um dos projetos de um peculiar escritor, Herbert Quain: "... o leitor, inquieto, procura nos capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor deste livro singular é mais perspicaz que o detetive".
Percebe-se que a suposta contradição entre "convenção" e "grandeza" apontada no início deste texto, a partir do comentário de Piglia, não é irremediável. Na verdade, ela vem sendo contornada há bastante tempo.
Em 1955, a norte-americana Patricia Highsmith publica a primeira história da série "Ripley": "O Talentoso Ripley". Qualquer romance policial se equilibra sobre um fato mínimo – o crime- e três decorrências lógicas – o investigador, o criminoso e a vítima. Uma das estratégias da autora para manipular a convenção é girar o triângulo e centrar a narrativa na segunda delas, em vez de na primeira. Com isso, ela minimiza o suspense e destaca as "motivações" de seu anti-herói e as "conseqüências" de seus atos.

Homenagem

Ainda mais cedo, em 1941, Borges concebe o primeiro de seus três contos policiais que remetem genialmente aos três contos de Poe. Exatos cem anos após o início da publicação de "Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistério de Marie Roget" e "A Carta Roubada", o autor argentino começa sua "homenagem" com "Os Jardins dos Caminhos Que Se Bifurcam". Os outros dois contos, escritos nos anos seguintes, são "A Morte e a Bússola" e "Abenjacan, o Bokari, Morto em Seu Labirinto". O último não é tão excepcional quanto os predecessores, mas é nele que se lê que "a solução do mistério é sempre inferior ao mistério".
"Os Jardins..." e "A Morte e a Bússola" mostram que a frase nem sempre é verdadeira, uma vez que Borges dinamita ainda mais as convenções do gênero e faz com que o leitor ora pense estar lendo uma trama centrada na figura do investigador, ora na do criminoso, para, ao final, descobrir que de fato estivera acompanhando, desde o início, as vítimas. O desfecho surpreendente – outro dos "mandamentos" do autor – acontece e é duplicado. Não é à toa que Piglia considera o segundo texto o "Ulisses do conto policial". Aquele outro "mandamento" borgiano, o da "declaração de todos os termos do problema", por exemplo, é cumprido de modo quase maníaco: absolutamente tudo o que é dito na narrativa exerce um papel preciso e fundamental, e não há nenhum evento ou dedução que não tenha uma justificativa previamente introduzida.
Para terminar, deve-se notar que, na literatura atual, a contradição mencionada acima é muitas vezes resolvida com o ocultamento dos termos que geram a "convenção". Assim, em vez de alternar o ângulo de abordagem daquele triângulo – investigador, criminoso e vítima-, o autor esconde ou mascara o próprio fato causador, o crime, que se torna não mais um componente do enredo, e sim um elemento constitutivo da forma narrativa. É o que ocorre nos já citados textos de Piglia ou, para lembrar de outro argentino, nos romances de Juan José Saer. Talvez seja por isso que, para lidar com esse gênero que "inunda o mundo contemporâneo", o autor de "Nome Falso" já tenha afirmado que, "em mais de um sentido, o crítico é o investigador, e o escritor é o criminoso", ou, de outro modo, discutido "a representação paranóica do escritor que apaga suas pegadas e cifra seus crimes, perseguido pelo crítico, decifrador de enigmas".

Folha de São Paulo
, 8 fev. 2004, Mais!

sábado, 23 de outubro de 2010

INSTANTES

INSTANTES
[o poema que não é de Jorge Luis Borges, durante muito tempo foi atribuído a ele]:

Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvetes e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata
e profundamente cada minuto de sua vida;
claro que tive momentos de alegria.
Mas se eu pudesse voltar a viver trataria somente
de ter bons momentos.
Porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos;
não percam o agora.
Eu era um daqueles que nunca ia
a parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas e,
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo"
[quem é o autor?] A autora do poema é a estadunidense Nadine Stair.

A SOCIEDADE CINDIDA

Por Jacob Gorender*

Texto publicado na Revista Teoria e Debate no.57(março/abril de 2004)

Transcorre, neste ano, o quadragésimo aniversário do golpe militar de 1º de abril de 1964. Uma data que não é para celebrar, tampouco para esquecer. Sobretudo, com a distância do tempo, convém explorar seu significado histórico e avaliar suas seqüelas. Em primeiro lugar, o generalizado emprego da classificação do evento como golpe militar. Emprego no qual eu mesmo tenho incidido. Faz-se necessário frisar que não se tratou de mera manobra de cúpula, na qual apenas se teriam envolvido círculos políticos e militares dirigentes, resultando na mera substituição de uma camarilha por outra.
A campanha pela deposição do presidente da República suscitou um grande movimento de massas e foi, decisivamente, o resultado desse movimento. Conforme veremos adiante, a participação maciça da classe média teve um papel de grande peso. Podemos continuar a empregar a classificação de golpe militar, levando em consideração tais ressalvas.

Circunstâncias da chegada ao poder

João Goulart (ou Jango, como será doravante chamado) chegou à Presidência da República com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, uma vez que era o vice-presidente, como já o fora de Juscelino Kubitschek.
Jânio pretendeu conseguir do Congresso poderes excepcionais. Uma vez que não lhe foram concedidos, acreditou que a renúncia suscitaria pressão popular suficientemente forte para dobrar o Congresso. Errou no cálculo. Diante da ausência da esperada pressão popular, ao invés de regressar a Brasília, tomou o navio em Santos para um passeio na Europa.
Conterrâneo e discípulo de Getúlio Vargas, Jango não poderia deixar de ser identificado como seu continuador. Ao ser eleito em 1950, retornando ao Catete após a deposição em 1945, Getúlio veio com o propósito de aplicar um programa nacionalista, criando, entre outras medidas, empresas estatais de importância estratégica para o desenvolvimento econômico do país. Contava com a ajuda dos Estados Unidos, de cujo governo obtivera créditos e colaboração técnica em 1943 para erguer a usina siderúrgica de Volta Redonda, em troca da permissão de instalação de bases militares norte-americanas no Nordeste. Mas, em seu segundo mandato governamental, perdeu a confiança dos Estados Unidos, que retiraram seus representantes da comissão conjunta com o Brasil para financiamento de empreendimentos de desenvolvimento econômico. Getúlio, não obstante, prosseguiu na execução do programa previsto, contando apenas com recursos internos. Desta iniciativa surgiram a Petrobras e a Eletrobrás.
O presidente Vargas viu-se acossado por uma campanha na mídia e no Parlamento, capitaneada por Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara (então, abrangente somente da cidade do Rio de Janeiro).
Nos princípios de agosto de 1954, pistoleiros da guarda presidencial tomaram a iniciativa (ao que tudo indica, por conta própria), de eliminar Lacerda. Quando este regressava a sua residência na Rua Tonelero, na Zona Sul do Rio de Janeiro, alvejaram-no, porém só conseguiram feri-lo numa perna. Mas o guarda-costas de Lacerda, o major Vaz, oficial da Aeronáutica, tombou morto no atentado. O episódio desencadeou gravíssima crise política, que envolveu as Forças Armadas. Getúlio havia declarado, em discurso na campanha eleitoral, que não renunciaria uma segunda vez. A 24 de agosto suicidou-se com um tiro no coração, em pleno Palácio do Catete.
Diante de tais precedentes, a posse de Jango, apesar de legal e legítima, não poderia ser tranqüila. No momento da renúncia de Jânio, o vice-presidente encontrava-se em visita à China. Os adversários – que reuniam os representantes das forças mais reacionárias e pró-imperialistas – pretenderam impedir que regressasse ao Brasil. Jango conseguiu retornar, em meio ao clamor crescente contra sua posse no Palácio do Planalto. Uma vez mais, vinha à frente das propostas anticonstitucionais Carlos Lacerda, utilizando um virulento arsenal de insultos e calúnias.
Enquanto em Brasília a posse de Jango era contestada, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, unia a população do estado e obtinha o apoio do III Exército, ali sediado e comandado pelo general Jair Dantas Ribeiro, para a luta em favor da posse. O recrudescimento da oposição entre Brasília e Porto Alegre ameaçava jogar o país na guerra civil.
A fim de evitá-la, optou-se pela solução conciliatória do parlamentarismo, por meio de emenda constitucional. Jango governaria com um primeiro-ministro, submetido ao voto de confiança do Congresso. Estaria sob controle suficiente – julgavam os adversários – para impedir iniciativas nacionalistas e, sobretudo, obstar sua intenção, mais ou menos evidente, de conseguir um segundo mandato presidencial.
A experiência parlamentarista


A república brasileira não tinha nenhuma tradição parlamentarista. A memória histórica do parlamentarismo do Império, tutelado por D. Pedro II, não inspirava simpatias.
Sob a presidência de Jango, a partir de 1961, sucederam-se três primeiros-ministros no regime parlamentarista: Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima. Nenhum deles conseguiu enfrentar a situação econômica, deteriorada pela inflação herdada do qüinqüênio de Juscelino, nem se haver com os problemas políticos suscitados por sucessivas greves, reivindicações dos mais variados setores e difíceis de atender e, principalmente, o assédio incessante das forças conservadoras, aglutinadas em torno da UDN. Com a deterioração política, que criava uma instabilidade julgada inconveniente e ameaçadora pela própria classe dominante, a idéia do retorno ao regime presidencialista ganhou crescente apoio político-popular.
A 14 de setembro de 1962, uma greve nacional, articulada com o apoio do comandante do III Exército, general Jair Dantas Ribeiro, obrigou o Congresso a aprovar a emenda Valadares, que determinou a antecipação para janeiro de 1963 da realização do plebiscito sobre o parlamentarismo, marcado para 1965.
Na ab-rogação do parlamentarismo estava interessado não somente Jango. Pretendentes à Presidência, também Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros e Juscelino Kubitschek apoiaram o movimento de retorno ao presidencialismo, que já estaria vigente nas eleições de 1965. Em conseqüência, o parlamentarismo foi rejeitado por mais de 10 milhões de votos, na proporção de cinco votos contra um.
Jango pôde, então, passar a governar com as prerrogativas amplas do presidencialismo brasileiro.

Novos atores, novo quadro político

Com vistas ao combate à inflação, Jango encarregou Celso Furtado, ministro do Planejamento, de elaborar um plano antiinflacionário. Veio, assim, à luz, uma semana antes do plebiscito de 6 de janeiro, o Plano Trienal preparado pelo prestigioso economista. Consistia numa versão da clássica estabilização financeira, temperada por uma dose de desenvolvimentismo. Entre as propostas principais, figuravam a chamada “verdade cambial”, ou seja, a desvalorização do cruzeiro (moeda nacional na época), visando ao incremento das exportações, o corte dos subsídios ao consumo do trigo e de derivados de petróleo, a elevação das tarifas dos serviços públicos, a contenção do crédito e das emissões de papel-moeda e a disciplina de salários e preços. Prometia, simultaneamente, a recuperação de taxas elevadas de crescimento.
Assim que pôde ser analisado, o Plano Trienal foi criticado e rejeitado pelas organizações operárias e esquerdistas em geral, particularmente o PCB. Verificou-se, com pouco tempo, que era inoperante e inócuo.
Jango se viu no centro de uma cena política em que novos atores ganhavam relevância. Precisava enfrentar um movimento popular diversificado e fortemente reivindicativo.
No Nordeste, sob a liderança de Francisco Julião, surgiram as Ligas Camponesas, que acentuaram as lutas na área rural. Tomou grande impulso a sindicalização de trabalhadores rurais. Insignificantes até 1962, já eram 270 sindicatos rurais em dezembro de 1963 formalmente reconhecidos pelo Ministério do Trabalho e 557 em fase de reconhecimento. Daí resultou a estruturação da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag). O fortalecimento dos trabalhadores rurais recebeu, no Nordeste, contribuição de grande importância da política aplicada por Miguel Arraes, governador de Pernambuco, que impôs o pagamento rigoroso do salário mínimo na Zona da Mata e incentivou iniciativas de educação e cultura popular, com a mobilização de milhares de ativistas, particularmente estudantes. Com essas iniciativas, Arraes se tornou um político de influência nacional.
A 19 de novembro de 1963, 200 mil cortadores de cana de Pernambuco e da Paraíba realizaram uma greve vitoriosa, após três dias de duração. Era uma ação totalmente inédita numa região onde costumava imperar a violência impiedosa da classe dominante.
Acentuou-se o “grande medo” dos usineiros, latifundiários e empresários em geral. Defrontavam-se com ações não rotinizadas, com as quais não sabiam como lidar. Os usineiros e latifundiários plantadores de cana reagiram comprando grandes quantidades de armas e apelando a reações violentas contra as reivindicações dos assalariados.
O golpismo de direita, em franca evolução, atuava através de organizações como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, da UDN e das pregações falsárias e antidemocráticas do deputado Bilac Pinto.
Papel importantíssimo, na articulação e suporte das forças reacionárias e pró-imperialistas, teve o embaixador Lincoln Gordon, representante dos Estados Unidos no Brasil, de 1961 a 1966. Gordon não era diplomata profissional, mas professor de economia da Universidade Harvard, tendo sido escolhido para o cargo diplomático pelo próprio presidente Kennedy. Em 1963, diante de informações alarmantes, Kennedy enviou, como reforço à Embaixada americana no Brasil, o coronel Vernon Walters, especializado no serviço de inteligência. Poliglota, Walters falava fluentemente o português. Durante a Segunda Guerra Mundial, atuara na Itália como oficial de ligação entre a FEB e o V Corpo do Exército dos Estados Unidos, ao qual os expedicionários brasileiros estavam incorporados. Tal função lhe permitira estabelecer relacionamento com vários oficiais brasileiros que iriam ter papel de relevo no golpe de 64, a exemplo de Castelo Branco, Cordeiro de Farias e Syzeno Sarmento. (Ver Elio Gaspari A Ditadura Envergonhada. São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 59-61).
Em sentido oposto, intensificou-se a atuação das forças operárias e democráticas.
A inflação incontida suscitava greves sucessivas, sem que os trabalhadores conseguissem resultados positivos duradouros. Impunha-se uma coordenação mais eficiente. Sindicatos e federações se entenderam e criaram o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), com abrangência nacional.
A novidade mais significativa veio, porém, dos subalternos das Forças Armadas, marinheiros e sargentos. Até então, a tradição das ações rebeldes e antilegalistas da oficialidade incluía sempre a colaboração submissa dos subalternos. A única ação independente de subalternos, na história nacional, remontava a 1910, quando ocorreu a célebre Revolta da Chibata, comandada pelo marinheiro João Cândido. Em 1962, pela primeira vez na segunda metade do século 20 e numa fase muito mais adiantada das lutas sociais, os subalternos passam a tomar iniciativas por conta própria.
A 25 de março de 1962, surge, no Rio de Janeiro, a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, que chega a reunir milhares de adeptos. Além de reivindicações profissionais, colocam em destaque a conquista de direitos políticos, inclusive a elegibilidade para o Congresso. Enfrentando a hostilidade do Ministério da Marinha, os marinheiros e fuzileiros navais editam um periódico, a Tribuna do Mar, e mantêm uma escola de preparatórios de exames de madureza, tendo como professores universitários da UNE. Sob a direção da UNE, incrementa-se notavelmente a mobilização estudantil pelas reformas de base.
Os sargentos das três forças militares passam também a agir com independência. Manifestaram sobretudo a aspiração aos direitos cidadãos de elegibilidade nas disputas eleitorais. Provocou revolta a sentença do Supremo Tribunal Federal pela cassarção do mandato do sargento Aimoré Cavaleiro, eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul. A sentença da suprema corte ameaçava o mandato do sargento Antonio Garcia Filho, eleito deputado federal. Em resposta, a 12 de setembro de 1963, algumas centenas de sargentos da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antonio Prestes de Paula, se sublevaram em Brasília. Prenderam altas autoridades e ocuparam a sede dos Ministérios da Marinha e da Aeronáutica, a Base Aérea, o aeroporto e a central telefônica. O movimento era intempestivo e preparado com precipitação. Dificilmente deixaria de fracassar. Os sublevados acabaram presos, porque, ao invés de contar com o apoio de colegas do Exército, tiveram de ceder diante das tropas que o ministro da Guerra sediou em Brasília, as quais sufocaram a rebelião. A atitude preventiva do ministro Jair Dantas Ribeiro, ciente do motim em preparação, resultou na prisão de seiscentos sargentos, inutilizando importante contingente para as lutas futuras, mais duras e decisivas e em acelerada aproximação.

Pré-revolução e contra-revolução preventiva

Recuperadas as prerrogativas próprias do regime presidencialista, Jango passou a enfrentar as reivindicações de um vigoroso movimento popular em favor das reformas de base.
No segundo pós-guerra, durante os governos Dutra (continuador do regime repressivo do Estado Novo), Getúlio, Juscelino e Jânio, as forças democráticas, da classe operária aos estudantes, profissionais liberais, intelectuais em geral e parte dos empresários, ganharam um poder de mobilização desconhecido na história nacional. Cresceu o vigor dos setores que reivindicavam mudanças em profundidade na sociedade brasileira. Tais mudanças receberam a denominação de reformas de base, dentre as quais tinham prioridade a reforma agrária e a legislação nacionalista sobre o capital estrangeiro.
A reforma agrária era praticamente impossibilitada pelo dispositivo constitucional, que obrigava ao pagamento prévio e em dinheiro das desapropriações de terras. Os projetos em favor da derrogação desse dispositivo eram sistematicamente barrados pela maioria do Congresso.
Com relação ao capital estrangeiro, foi possível importante vitória ainda em 1962. Baseada em projeto do deputado Sérgio Magalhães, presidente da Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), foi aprovada no Congresso, a 3 de setembro, a Lei 4.131 sobre as remessas de lucro do capital estrangeiro. Essas remessas passavam a ter o teto de 10% sobre o capital efetivamente ingressado no país, com exclusão, portanto, para cálculo do percentual, do capital adicionado e originário dos lucros obtidos no Brasil. A aprovação da lei foi possibilitada pela divisão das bancadas do PSD e da UDN. Provocou, não obstante, reação contundente da grande imprensa e aberta condenação do embaixador Gordon. Esquivando-se de sua responsabilidade como presidente, Jango deixou escoar o prazo constitucional sem sancionar a lei. Coube ao presidente do Senado fazê-lo. Mas a lei ficou engavetada, enquanto o Executivo não procedia a sua regulamentação.
Diante do movimento em ascensão pelas reformas de base, Jango prolongava uma atitude de indefinição, que não podia passar despercebida aos partidários das mudanças progressistas. Não se tratava de reivindicações revolucionárias. Poderiam, no entanto, preparar o caminho à transformação da sociedade brasileira numa democracia avançada, com hegemonia dos trabalhadores e de seus aliados do segmento de assalariados intelectuais. Neste sentido, considero que o movimento pelas reformas de base criava uma situação de pré-revolução.
Na conjuntura de 1963, algumas das lideranças mais destacadas radicalizaram o comportamento, adotando linhas de atuação destituídas de suporte em forças efetivas. Julião, que fez as Ligas Camponesas avançar enquanto as manteve no terreno das reivindicações legais, retornou de uma visita a Cuba com a cabeça feita pelo foquismo e pela idéia de uma reforma agrária coletivista. Tal proposta e sua palavra de ordem “reforma agrária na lei ou na marra” assustou não só os latifundiários, mas também os pequenos proprietários rurais, jogando-os no campo dos adversários da reforma agrária. As Ligas Camponesas enfraqueceram e se tornaram impotentes para agir em situações decisivas. Antes avesso à atuação parlamentar, Julião se candidatou a deputado federal e só com muita dificuldade conseguiu se eleger.
Da sua parte, Brizola não foi capaz de impedir que o governo do Rio Grande do Sul caísse nas mãos de Ildo Meneghetti, que viria a apoiar o golpe em 1964. Em contrapartida, Brizola logrou eleger-se deputado federal pela Guanabara, com votação elevada. Lançou o movimento pela formação dos Grupos dos Onze, com estruturação e objetivos vagamente formulados, mas sugerindo preparação para ações armadas.

Da sua parte, Jango prosseguia no jogo de atitudes contraditórias.

No dia 4 de abril, a Agência Nacional difundiu a convocação de um comício para o Largo do Machado, no Rio de Janeiro. A convocação tinha caráter claramente provocativo, prevendo o deslocamento da massa popular ao Palácio Guanabara, sede do governo de Lacerda. O deslocamento justificaria a intervenção de tropas federais e de ações contra o CGT e outras organizações populares. O alerta oportuno do general Osvino Ferreira Alves, comandante do I Exército, desfez a armadilha e frustrou a realização do comício.
Contudo, estranhamente, em sincronização com a convocação do comício, Jango discursava em Marília, interior do estado de São Paulo, apresentando-se como o mais credenciado dos anticomunistas. Reforçou a jogada direitista com elogios ao governador Adhemar de Barros e ao falido Plano Trienal. Fazia-se evidente que buscava uma recomposição com as forças conservadoras direitistas.
Todavia, à noite da mesma data, o presidente discursou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista. Prudentemente deixou de lado o anticomunismo e fez vagas alusões às reformas de base.
No dia 23 de agosto, à tardinha, realizou-se na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, um comício em homenagem à memória de Getúlio Vargas. Jango discursou perante 60 mil pessoas. Faixas estendidas diziam: “Jango, não vacile”, “Jango, chega de conciliação com os inimigos do povo. Reforma já!” Diante das frases vazias do presidente, a massa o interrompeu com o grito cadenciado: “De-fi-ni-ção!”
No dia 4 de outubro, Jango enviou ao Congresso um requerimento de decretação do estado de sítio. As organizações agrupadas na Frente de Mobilização Popular (FMP) manifestaram oposição. O mesmo fez o governador Miguel Arraes, que não ignorava a intenção presidencial de alijá-lo junto com a deposição de Lacerda. Ao constatar a falta de apoio parlamentar, o governo federal retirou o requerimento no dia 7.
O crédito de Jango junto às forças conservadoras estava esgotado, uma vez que não conseguira coibir o crescimento do movimento reformista nem deter a inflação. O presidente decidiu-se, finalmente, por uma posição clara em favor das reformas de base, sempre com a expectativa de que abrisse o caminho para um segundo mandato, o que necessitaria de emenda constitucional. Tomando o novo rumo, ordenou a regulamentação da lei sobre remessa de lucros do capital estrangeiro e prestigiou a Superintendência de Política Agrária (Supra), comparecendo a um ato de entrega de títulos de propriedade da terra a lavradores do estado do Rio. Ao mesmo tempo, encarregou San Tiago Dantas de articular uma Frente Ampla, que viabilizasse a aprovação parlamentar das reformas de base.
A ambição continuísta do chefe da Nação era particularmente incentivada pelos comunistas. Embora desprovidos de registro legal partidário no Tribunal Eleitoral, os comunistas constituíam, então, uma corrente de esquerda influente. Em repetidas manifestações, Luiz Carlos Prestes defendeu o segundo mandato para Jango e propôs publicamente a iniciativa de emenda constitucional que o permitisse. Semelhante proposta esquentava ainda mais a temperatura já bastante acalorada do clima político.
No entanto, repetiam-se os incidentes conflituosos. Programadas para discursar em faculdades e outros recintos, personalidades como Lacerda, Brizola, Clemente Mariani e João Pinheiro Neto foram barradas pelos adversários. Só com muita dificuldade e com a proteção da Polícia Militar, conseguiu Arraes discursar em Juiz de Fora.
Na tarde de 13 de março de 1964, o comício na praça da Central do Brasil reuniu meio milhão de pessoas. Após pronunciamentos de líderes políticos, sindicais e estudantis, Jango valeu-se de dois trunfos no discurso de encerramento do comício: o decreto de encampação das refinarias particulares de derivados de petróleo e o decreto da Supra, que declarava sujeitas a desapropriação as propriedades rurais superiores a 500 hectares marginais de vias federais numa faixa de 10 quilômetros e as propriedades superiores a 30 hectares marginais de açudes e obras de irrigação com financiamento governamental. A legislação que permitiria tais atos já se encontrava em preparação para envio ao Congresso.
Enquanto o comício do dia 13 se realizava, os apartamentos na Zona Sul do Rio de Janeiro mantinham as luzes acesas e exibiam lençóis brancos nas janelas. Uma demonstração explícita de oposição da classe média carioca ao comício da Central do Brasil.
No dia 19 de março, meio milhão de pessoas se reuniu, em São Paulo, na primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade, desfilando da Praça da República à Praça da Sé. Organizada por entidades da direita política e com o apoio do clero católico, era uma clara manifestação antigovernamental da classe média. A sociedade estava nitidamente cindida. Irritada pelas numerosas greves, pela carestia, pelo desabastecimento de gêneros alimentícios e pela inoperância oficial, a classe média se passou maciçamente para o campo dos opositores do governo Jango.
Simultaneamente, o apoio do presidente aos marinheiros reunidos em assembléia no Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro, e sua aliança com os sargentos nacionalistas jogaram a oficialidade em massa também na oposição. A oficialidade sentia gravemente abalados os princípios da hierarquia e da disciplina, fundamentais nas corporações militares.
Na noite de 30 de março, Jango discursou numa solenidade promovida pela Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, no salão do Automóvel Clube, no centro do Rio de Janeiro. Foi o que bastou para detonar o golpe, já em franco andamento nos bastidores conspirativos.
No dia 31 de março, as tropas do Exército aquarteladas em Minas Gerais, sob o comando do general Olympio Mourão Filho, com o apoio do governador Magalhães Pinto, se insurgiram e marcharam em direção ao Rio de Janeiro. Um após outro, os comandos militares, supostamente fiéis a Jango, mudaram de posição e, sob a coordenação do general Odilo Denys, adotaram o rumo do golpe. O dispositivo militar, garantido pelo general Assis Brasil, chefe do Gabinete Militar, revelou extrema fragilidade.
Jango podia contar, no primeiro momento, com uma esquadrilha de oficiais nacionalistas da Aeronáutica, que se dispunha a despejar bombas sobre a coluna do general Mourão. Os fuzileiros navais, sob o comando do almirante nacionalista Cândido Aragão, tinham a possibilidade, também no primeiro momento, de assaltar o Palácio Guanabara e prender Lacerda, o que alcançaria grande repercussão nacional em favor do governo.
Jango preferiu capitular. Desautorizou as ações dos oficiais da Aeronáutica e dos fuzileiros navais. No dia 1º de abril, retirou-se do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, e voou para Brasília. Dali, partiu depressa para o Rio Grande do Sul, donde, finalmente, sairia do país.
Em Brasília, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso, declarou a Presidência da República vacante. No dia 9, o primeiro Ato Institucional deu início às cassações de mandatos e direitos políticos. O general Castelo Branco assumiu a chefia do governo, inaugurando a sucessão de generais-presidentes, que se prolongaria por 21 anos.
No dia 3 de abril, 1 milhão de pessoas desfilou, no Rio de Janeiro, na segunda Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A sociedade estava claramente cindida. De um lado, a favor do rumo progressista e democrático, os trabalhadores. No lado contrário, a classe média em peso. O que chamamos de golpe militar teve inequívoco e poderoso apoio social. Funcionou como contra-revolução preventiva.
Trabalhadores e classe média iriam fazer a amarga experiência de dois decênios ditatoriais. Ao contrário de muitos países latino-americanos, era a primeira vez, em sua história, que o povo brasileiro se via sob o jugo de uma ditadura militar. Dessa experiência, que custou tantos sacrifícios aos melhores patriotas, surgiu finalmente a democracia difícil, que hoje molda a vida política nacional.

*Jacob Gorender é historiador, autor de "Combate nas Trevas" (Ática) 


Nota de Jorge Lobo: "Combate nas Trevas" é um livro fundamental para se entender a ditadura militar no Brasil.






domingo, 10 de outubro de 2010

A ARTE DO CONTO DE MURILO RUBIÃO

Murilo Rubião
Fábio Lucas

O Estado de São Paulo, 21 de agosto de 1983

Fábio Lucas faz aqui uma análise da obra de Murilo Rubião. Para ele, o autor de “O Convidado” denuncia a farsa da burocracia e mostra a fragilidade do poder inautêntico.


O recente lançamento da 3ª edição de O Convidado (S. Paulo, Ed. Ática, 1983) convida a nova reflexão sobre os processos narrativos do contista mineiro, assim como a um rebuscamento de seus veios temáticos. Apesar da variada bibliografia acerca da prosa de Murilo Rubião, muitos recantos permanecem não visitados.

Jorge Schwartz, um dos mais autorizados intérpretes da obra do autor de O Convidado, devassou com método e acuidade as principais riquezas em Murilo Rubião: A Poética do Uroboro (S. Paulo, Ed. Ática, 1981), mas recusou-se a levar sua investigação até a área psicanalítica, talvez receoso de incorrer nas simplificações e automatismos que a moda da interpretação psicanalítica tem suscitado.

Foi pena, pois o analista, altamente capacitado, deixa entrever o tecido inconsciente da ficção de Murilo Rubião, embora não tenha desejado radicalizar conclusões.

O inesperado da linha narrativa do autor de O Ex-Mágico (Rio, Universal, 1947), solitária experiência no após-guerra, encaminhou a crítica a aplicar-lhe designativos já gastos, que acabam por não determinar exatamente a natureza de seu relato. Assim, falou-se do uso do “imaginário” por parte do contista, de seu desvio da prosa realista, do “fantástico”, do “sobrenatural” e do “maravilhoso”, etiquetas aplicadas a uma família muito grande de ficcionistas contemporâneos.

O leitor habitual dos contos de Murilo Rubião percebe certo descompromisso com a causalidade espaço/temporal da tradição novelesca. Acontecem prodígios na fabulação dos episódios. Mas, perante o estatuto da ficção, estabelece-se um convênio entre o escritor e o leitor, pois este haverá sempre de creditar uma dose de credibilidade ao que se narra. Desde Homero até os Surrealistas, estamos condicionados a aceitar as fantasias na escala do possível. Caso contrário, toda ficção significaria um relatório.

Ora, para que se realize a esfera narrativa, é necessário que o leitor entre na jogada do narrador, adira à lógica proposta pelo texto, concorde com a instância fantasiosa e faça da crença um compromisso de apreensão da atmosfera ficta.

Ademais, ao expor a trajetória de suas personagens, Murilo Rubião administra um campo de estranhamento que tem algo com a paisagem onírica, algo elaborado no interior de um sonho. Quer isto dizer que as funções oníricas de deslocamento e de condensação habitam o espaço altamente aglutinado de símbolos. Por entre as frestas desta nova lógica – a lógica da descontinuidade racional – se revelam espessas propriedades inconscientes.
Quando se menciona o fantástico ou o maravilhoso, pressupõe-se a libertação ilimitada da imaginação, numa gratuita expansão criativa. Mas os desmandos da fantasia em Murilo Rubião mostram-se contidos por dois limites: a função do consciente e a força do fator social. Daí o caráter dramático dos contos.
A cada momento, o leitor se defronta com o alargamento da fantasia imaginária, como, por exemplo: “Pelos meus olhos entravam estrelas, luzes cujas cores ignorava, triângulos absurdos, cones e esferas de marfim, rosas negras, cravos em forma de lírios, lírios transformados em mãos”.” (cf. “O Pirotécnico Zacarias”, em O Pirotécnico Zacarias, S. Paulo, Ed. Ática, 1976, p. 18).

Já se estudaram, no contista, o zoomorfismo, o cromatismo, inúmeras aparências de metamorfose. Mas está por se catalogar o uso persistente de cláusulas restritivas com que o poder do mágico é contido. E é por essa circunstância que a ficção de Murilo Rubião deixa de se categorizar como o uso gratuito do devaneio, uma articulação de quimeras. É por aquela via que penetra na sua descrição do maravilhoso o lado contingente das personagens, sua mundidade, seu realismo terrenal, sua limitação temporal.

Dá-se, então, o ingresso do estranho dentro do estranho. Apenas para ilustrar, invoquemos o conto “Os Comensais”, de O Convidado. A personagem, Jadon, intriga-se com os companheiros de refeição num restaurante: todos sempre se encontravam no mesmo lugar, indiferentes à comida servida. Novos mistérios vão sendo observados pela personagem atônita. A repetição do cenário, a multiplicação dos convivas, seu alheiamento de tudo. “Após essa experiência” – diz o conto -, “seguiu-se um período em que Jadon desistiu de penetrar na intimidade daqueles cavalheiros taciturnos que, apesar de manifestarem evidente desinteresse pelos alimentos, apresentavam-se saudáveis e tranqüilos”.

Depois de assinalarmos que Jadon “desistiu de penetrar na intimidade daqueles cavalheiros” e que, “apesar de”, etc, aparece adiante que “algo de anormal o surpreendeu: em sítios diversos, encontravam-se pessoas cujas fisionomias lhe eram inteiramente estranhas”. Colecionamos, então, “algo de anormal” e “fisionomias estranhas”. Passamos, a seguir, a “à medida que aumentava a sua perplexidade” (...) “do seu íntimo emergia a desconfiança de que tudo aquilo poderia ser peoposito”, um recurso para “quebrar-lhe a resistência pelo mistério”. E a personagem, já revoltada, sente que “na ocupação das mesas havia uma fraude a ser desmoralizada”.

Outras formas intensificadoras da perplexidade vão-se acumulando na consciência da personagem, já em estado de indignação. É sobre isto que gostaríamos de chamar a atenção: o choque, dentro do próprio quadro ficcional, do raro e do grotesco contra aquilo que, sendo igualmente extraordinário, se manifesta como o normal.

“Os Comensais”, na verdade, desenvolve uma fábula sedutora: o processo compulsório de sociabilização da personagem, de seu ingresso entre os convivas, todos distantes e alheios. E, afinal, quando Jadon tenta regressar ao refeitório, aí, então, é que se depara com o salão vazio, isto é, com a sua mais completa solidão. Havia regressado aos 20 anos.

Jorge Schwartz observa, pertinentemente, a esterilidade das personagens do contista, seu relacionamento infecundo. Carregadas de atributos quantitativos, permanecem sem evidenciação de seus traços psicológicos.

Quer parecer que o fantástico em Murilo Rubião nada tem de encantatório, pois, como vimos, submete-se a cláusulas restritivas. E o maravilhoso, considerado como monopólio do sobrenatural, é contido na sua função hipnótica por uma substancial camada ideológica. Em todas as circunstâncias, o exercício dos poderes mágicos é limitado. Por isto, surpreendemos sempre no contista mineiro a tensão entre o prodígio e a frustração, entre a transcendência e a contingência, e, às vezes, entre a onipotência e a mera impotência.

O próprio conto “O Ex-mágico da Taberna Minhota”, um clássico de Murilo Rubião, ilustra o encontro de duas culturas: aquela em que tudo é possível e a outra, na qual nada é permitido.

Na verdade, não podemos descartar, na interpretação do contista, a herança surreal, não de todo explorada. Condimentada, é verdade, pelo veio satírico de Machado de Assis e seus ácidos comentários ao poder dos impotentes. Sente-se, no jogo muriliano, um antagonismo entre metamorfose e conservação. E, também, não devidamente explorado pela crítica, um jogo espirituoso entre cultura e natureza.

Apontamos acima os fatores de moderação do surto da visão imaginativa. Há, em Murilo Rubião, um florescimento de signos recorrentes que talvez sejam indicadores de tendências ocultas e irreveladas.

Na primeira camada de significados, o erotismo, por exemplo, mal se divisa. Mas se insinua atrás de uma cortina de símbolos. Que poder de sugestões o contista extrai, por exemplo, da flor com as suas pétalas (às vezes metonimicamente jungidas ao sintagma “ferida”), especificamente do girassol, que acaba por configurar no título de um conto e de uma coleção, agora apresentado iconicamente na capa, em vibrante vermelho. Como a estrela vermelha do conto “Bruma”.

Nas relações domésticas das personagens, poderíamos falar de uma estética do interdito, tais as formas latentes de incesto que se manifestam em proibições ou tais os impulsos amorosos reduzidos pela incompletude da realização do desejo.


O homem não se livra de seu passado

É recorrente na ficção de Murilo Rubião o confronto entre irmãos. E as irmãs adotivas se tornam apetecidas: Bruma, Dora... Ao mesmo tempo, nota-se uma rebelião constante contra a figura paterna: “A Casa do Girassol Vermelho” e “O Bloqueio”. Em “Petúnia”, a personagem é condenada a cuidar da memória das entidades mortas: as filhas, a mulher, a sogra. O homem não se livra de seu passado. No outro, “A Casa do Girassol Vermelho”, a figura do pai encarna-se no velho Simeão: “Pisávamos na memória do velho Simeão, escarrando no passado” (A Casa do Girassol Vermelho, S. Paulo, Ed. Ática, 1978, p. 14).
Loucos, mentecaptos, clientes de consultórios psiquiátricos abundam na ficção do contista. A chave do interdito nem sempre se revela expressamente, antes se desnunda por detrás dos símbolos. Que é “Bárbara” se não é retrato do desejo contido?


A veia humorística do escritor

Sintomático é o conto “O Lobo”: sátira à clínica psiquiátrica, sonho premonitório, a presença da irmã, que se acompanha de “um menino com a aparência de retardado mental”. Este, denominado Zeus, é ainda tratado como “debilóide”, “mentecapto”, fazendo “cara de idiota”. A personagem não consegue livrar-se nem do médico, nem do sonho, nem da irmã, nem do mentecapto. E, na extrema enfermidade, moribundo, quando o bisturi limpa as pétalas de sua ferida, “esboçava imperceptível gesto de asco”.

Curioso o diagnóstico do médico, no início da narrativa: “E, repreensivo, assegurou que o paciente carregava dentro de si imenso lodaçal. Exigia que falasse da infância, do relacionamento com os pais”.
Os quatro primeiros contos de O convidado – “O Convidado”, “A Fila”, “Epidólia” e “Botão-de-Rosa” – podem classificar-se como variantes de um desejo irrealizado. Assim como “A Casa do Girassol Vermelho”, “Bruma” e “Alfredo” disfarçam um confronto entre irmãos, no volume A Casa do Girassol Vermelho.

O solo do incesto e das punições é imenso na ficção de Murilo Rubião. A recorrência simbólica é facilmente assinalável. Mas a sondagem de valores inconscientes não esgota o significado dos contos. Deve-se considerar também a crítica às pressões sociais, principalmente às práticas que se tornaram rotina. A burocracia é um dos alvos prediletos do escritor.

Por isto, ele extrai certo humor amargo da mecanização dos atos humanos. É o caso de “A Fila”. A repetição está gravada quer na construção – “O Edifício”, por exemplo -, quer na destruição – veja-se “O Bloqueio”; ou, mesmo, no mero ato da reprodução, como em “Botão-de-Rosa” e “Aglaia”.
Cremos não se ter investigado devidamente este lado machadiano, ou bem mineiro, de Murilo Rubião: o gosto da ironia. Um capítulo à parte deveria ser destinado às revelações onomásticas. Como, então, chamar de Zeus a um pequeno mentecapto? Como denominar dr. Pink (pink, o correspondente, em inglês, a “cor-de-rosa”) a um analista argentário? Por detrás da transparência de alguns nomes da mitologia greco-latina, ainda resta uma camada de grotesco como propósito satírico. No conto “Botão-de-Rosa”, além da personagem-título, acusada de engravidar “meninas de oito anos e matronas de oitenta anos”, temos os seus companheiros do conjunto de guitarras: Molinete, Zelote, Judô, Pedro Taguatinga, Simonete, Bacamarte, André-Tripa-Miúda, Íon, Mataqueus, Pisca, Filipeto e Bartô. Não haveria uma galhofa mordaz no apelativo de muitos protagonistas dos contos?

A veia humorística se prova em inúmeras fantasias do escritor. E há todo um jogo na organização de suas coletâneas de contos, desde 1947. O contínuo reordenamento não fará parte de uma função lúdica?

Por fim, mencionemos, na ficção de Murilo Rubião, um dado bastante explícito, que já atraiu alguns analistas, especialmente Jorge Schwartz: o uso invariável de epígrafes buscadas à Bíblia.

Nota-se na coletânea O Convidado o teor profético delas, mas de um profetismo em que predomina a negatividade.

Que vem a ser a profecia? A desautorização do mistério futuro, a claridade para os dias de hoje, algo que somente pertence aos deuses. Elas não se cumprem literalmente na ficção de Murilo Rubião. Daí a tensão que se tira entre o prometido e o outorgado. Toda dramaticidade do contista provém da negação das promessas. Cada personagem se atira no palco dos acontecimentos carregada de alternativas. E geralmente dele sai sem opção alguma. Ou melhor: com uma única alternativa, subjugado por forças que o limitam e cativam. De determinante, a personagem passa a determinada. A crítica de Murilo Rubião é uma crítica do superego. Ele vê fundo a farsa da burocracia e do poder inautêntico.


Nota de Jorge Lobo: leiam "Contos Reunidos"( editora Ática ), livro que contém as últimas versões de cada conto, pois Rubião tinha o hábito de reescrever insistentemente seus contos. Esse livro contém todos os contos de Rubião, inclusive um inédito: "A Diáspora". Rubião morreu em 1991 e a edição que tenho em mãos é de 2005. Vale a pena ler, Rubião era um grande contista.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

ATENUAÇÃO E AGRAVAMENTO


 

Ao receber uma mensagem, o receptor lhe atribui valores como: importância, gravidade, aceitação/reprovação, além de uma resposta emocional. Esta valoração e a resposta emocional, bastante subjetivas e contextualizadas, podem ser atenuadas ou agravadas pelas características do discurso que veicula a mensagem. Isso decorre de transferências icônicas, convenções editoriais, de entoação e gestual, manipulação psicológica e ênfase.

Há meios de atenuar ou agravar nos diversos níveis do discurso. Vejamos:

·         Ordem de emissão. O que é recebido antes, convencionalmente é considerado mais importante.

·         Corpo tipográfico relativamente maior está associado, por convenção, à maior importância do que se veicula.

·         Volume de texto maior está associado à maior importância.

·         Destaques gráficos (cor diferenciada, moldura, tipografia diferenciada, etc.) podem sugerir importância.

·         Ordem temática:

·         Ordens gradativas, ascendentes ou descendentes, podem agravar ou atenuar conforme o caso.

·         Iconias: podem atenuar ou agravar conforme o caso.

·         Repetição: agrava se repete o que agrava, atenua se repete o que atenua.

·         Ênfase: atenua ou agrava conforme enfatize o que atenua ou o que agrava.

·         Entoação e gestual expressivos: uma entoação expressiva, conforme ao que suscita a mensagem, pode agravar o impacto psicológico. Uma entoação e um gestual que tendem para a neutralidade emocional atenuam.

·         Sintáticos: apostos, adjuntos adverbiais e adnominais podem agravar ou atenuar conforme o caso.

·         Lítotes atenua. Ex.: 'Sou bela?' 'Não és feia'.

·         Metonímias atenuam ou agravam conforme o caso.

·         Comparações idem. Um caso notável de comparação que intensifica: 'Inteligente como um jumento'. 'Bonito como um dragão'. Nessas comparações não se pode dizer que temos ironia, pois, o jumento não é de todo destituído de inteligência, mas o grau de inteligência nele é considerado muito baixo comparativamente a outros seres.

·         Metáforas, em especial as hipérboles, atenuam ou agravam conforme o caso.

·         Ironia agrava.

·         Precisão atenua ou agrava conforme o caso.

·         Antíteses agravam.

·         Conotação pode agravar ou atenuar.

·         Avaliações subjetivas podem atenuar ou agravar.

·         Suspense agrava.

·         Presentificação agrava.

·         Empatia agrava.

·         Envolvimento agrava.

·         Imprevisibilidade agrava.

·         Dramatização agrava.

·         Paralelismo narrativo agrava.

·         Sumarização atenua.

·         Imparcialidade do narrador atenua.

·         Ponto de vista neutro atenua.

 

Fonte: "Elementos de Retórica", de Radamés Manosso.