terça-feira, 23 de agosto de 2011

A HISTÓRIA DE JOÃO DE FERRO


Era uma vez um rei que tinha, próximo de seu castelo, uma enorme floresta onde viviam animais selvagens de todos os tipos. Um dia ele mandou um caçador à floresta para caçar um veado, mas o homem não voltou. “Alguma coisa errada aconteceu ali”, disse o rei, e no dia seguinte mandou mais dois caçadores `a procura do primeiro, mas também eles não voltaram. No terceiro dia, chamou todos os seus caçadores e disse: “Busquem em toda a floresta, e só voltem quando tiverem encontrado os três homens.”
Nenhum desses caçadores jamais voltou e, além disso, também não voltou a matilha de cães que levaram com eles.
Ninguém ousou mais entrar na floresta, e deixou-a tranquila em seu profundo silêncio e solidão.Somente uma águia ou um gavião às vezes a sobrevoavam.
Essa situação perdurou durante anos, até que certo dia um estranho caçador apareceu,querendo trabalho, e ofereceu-se para penetrar na floresta perigosa.
O rei, porém, não permitiu, dizendo: “Não é seguro entrar ali.Tenho a sensação de que você acabará como os outros, e nunca mais o veremos.” O caçador respondeu: “Senhor, conheço perfeitamente o risco, e medo não tenho.”
O caçador chamou seu cachorro e entrou na floresta. Logo depois, o animal sentiu o cheiro de caça e saiu em sua perseguição. Mal deu, porém, três passadas, viu-se na beirada de um poço profundo e não pôde continuar. Um braço saiu da água, agarrou o cachorro e puxou-o para baixo.
Quando o caçador viu isso, voltou ao castelo, chamou três homens com baldes, e eles esgotaram a água do poço.Ao chegar ao fundo, viram ali um Homem Natural deitado, que tinha o corpo marrom como o ferro enferrujado. Seu cabelo ia desde a cabeça e o rosto por todo o corpo, até os joelhos. Amarraram-no com cordas e o levaram até o castelo.
Ali, houve grande espanto com esse Homem Natural, e o rei mandou trancá-lo numa jaula de ferro e colocá-lo no pátio, proibindo, sob pena de morte, que a porta da jaula fosse aberta. E confiou a guarda da chave `a rainha. Feito isso, as pessoas voltaram a entrar sem perigo na floresta.
O rei tinha um filho de oito anos, o garoto estava um dia brincando no pátio, quando sua bola dourada caiu dentro da jaula.O menino correu para a jaula e disse: “Devolve-me a minha bola dourada.” O homem respondeu: “Só se abrires a porta para mim.”Disse o menino: “Ah, não, isso eu não posso fazer. O rei proíbe”, e saiu correndo.No dia seguinte o menino voltou e pediu novamente a bola.O Homem Natural repetiu, “Se abrires a porta”, mas o menino não quis. No terceiro dia, tendo o rei saído para caçar, o menino voltou e disse: “Mesmo que eu quisesse não poderia abrir a porta, porque não tenho a chave.” O Homem Natural respondeu: “A chave está debaixo do travesseiro da tua mãe. Podes apanhá-la.”
O menino, que queria muito a sua bola de volta, esqueceu a cautela, entrou no castelo e apanhou a chave. Não foi fácil abrir a porta da jaula, e ele machucou o dedo. Quando a porta se abriu, o Homem Natural entregou a bola dourada ao menino e correu.
Súbito, o menino sentiu um grande medo. Chorou e saiu gritando atrás do fugitivo: “Homem Natural, se fores embora, eles vão me bater!” O Homem Natural voltou-se, colocou o menino nos ombros e dirigiu-se rapidamente para a floresta.
Quando o rei voltou, viu a jaula aberta e perguntou `a rainha como o Homem Natural pudera fugir. Ela de nada sabia, foi procurar a chave e viu que tinha desaparecido.Chamou o menino e ninguém respondeu. O rei mandou um grupo de homens procurar nos campos, mas ninguém o encontrou. Não foi difícil imaginar o que tinha acontecido, e um grande sofrimento e luto caiu sobre a casa real.

Quando o Homem Natural chegou novamente `a floresta escura, tirou o menino dos ombros, colocou-o no chão e disse: “ Nunca mais verás tua mãe nem teu pai, mas eu ficarei contigo, pois me libertaste e tenho pena de ti. Se fizeres tudo o que eu mandar, as coisas correrão bem. Tenho muito ouro e tesouros, mais do que qualquer outra pessoa no mundo”.
O Homem Natural preparou uma cama de folhas para o menino dormir, e pela manhã levou-o a uma fonte. “Estás vendo esta fonte dourada? É clara como cristal, e cheia de luz.Quero que fiques sentado junto dela e vigies para que nada caia dentro dela, pois se isso acontecer, a fonte será prejudicada. Voltarei todas as tardes para ver se me obedeceste.”
O menino ficou sentado à beira da fonte.Vez por outra, via um peixe ou uma cobra dourados, e vigiava para que nada caísse lá dentro. Mas seu dedo começou a doer muito e, sem pensar, ele o mergulhou na água. Retirou-o imediatamente, mas viu que o dedo ficara dourado, e por mais que o lavasse, o dourado não saía.
João de Ferro voltou naquela tarde e perguntou: “ Aconteceu hoje alguma coisa com a fonte?”
O menino escondeu o dedo `as costas para que João de Ferro não visse, e disse: “Não aconteceu nada.”
“Ah, mergulhaste o dedo na fonte!” observou o Homem Natural. “Deixaremos passar desta vez, mas não o faças de novo.”
Na manhã seguinte, bem cedo, o menino sentou-se junto “a fonte, vigiando-a. Seu dedo ainda doía ,e, depois de algum tempo, ele passou a mão pelos cabelos. Um fio, porém soltou-se e caiu na fonte. Abaixou-se imediatamente e apanhou-o, mas o fio de cabelo já ficara dourado.
Quando João de Ferro voltou, viu o que tinha acontecido. “Deixaste um cabelo cair na fonte. Vou lhe perdoar ainda, mas se acontecer uma terceira vez, a fonte estará arruinada e não poderás mais ficar comigo.”
No terceiro dia, sentado junto `a fonte, o menino decidiu que, por mais que seu dedo doesse, não o movimentaria. O tempo passava lentamente, e o menino começou a fitar o reflexo do seu rosto na água. Teve vontade de olhar nos próprios olhos,e, ao fazê-lo, inclinou-se cada vez mais. Seus longos cabelos caíram-lhe então sobre a testa e em seguida na água. Recuou, mas agora os seus cabelos, todos, estavam dourados e brilhavam como se fossem o próprio sol. O menino teve medo! Pegou um lenço e cobriu a cabeça para que o homem natural não visse o que tinha acontecido. Mas quando joão de Ferro chegou, percebeu imediatamente. “Tira o lenço da cabeça”, disse ele. A cabeleira dourada caiu sobre os ombros do menino, e ele se manteve calado.
“Não podes mais ficar aqui, porque não passaste na prova. Agora sai pelo mundo, onde aprenderás o que é a pobreza. Não vejo, porém, o mal no teu coração, e te desejo o bem, motivo pelo qual te concedo um dom: sempre que estiveres em dificuldades, vem à orla da floresta e grita: “João de Ferro, João de Ferro!” Eu virei ao teu encontro para te ajudar. Meu poder é grande, maior do que pensas, e tenho ouro e prata em abundância.”

O filho do rei deixou então a floresta e caminhou por trilhas abertas e por matas cerradas até finalmente chegar a uma grande cidade. Procurou trabalho, mas não encontrou- nada tinha aprendido que lhe pudesse ser útil. Por fim, foi ao palácio e perguntou se o aceitavam para algum serviço. A gente da corte não sabia o que fazer com ele, mas gostou do menino e permitiu que ficasse. O cozinheiro tomou-o a seu serviço, mandando-o carregar lenha e água, e varrer as cinzas.

Certa vez, não havendo mais ninguém para fazê-lo, o cozinheiro mandou o menino levar a comida `a mesa
real, mas como ele não queria que seu cabelo dourado fosse visto, não tirou o gorro. Isso jamais tinha acontecido na presença do rei, e este disse: “Quando você vier `a mesa real, tem de tirar o gorro.” O rapaz respondeu: “Ah!, senhor, não posso; tenho um ferimento na cabeça.” O rei chamou o cozinheiro, censurou-o e perguntou-lhe por que tomara aquele rapaz a seu serviço, e ordenou que o mandasse embora do castelo.

O cozinheiro, porém, teve pena dele, e trocou-o por um ajudante de jardineiro.
Agora o rapaz do cabelo dourado tinha de cuidar das plantas no jardim, regá-las, tratá-las com enxada e pá e deixar que o vento e o mau tempo fizessem o que lhes aprouvesse.
Certa vez, no verão, quando trabalhava no jardim sozinho, o calor aumentou tanto que ele tirou o gorro para que a brisa lhe refrescasse a cabeça. Quando o sol tocou seus cabelos, estes brilharam de tal modo que os raios se refletiram até o quarto da filha do rei, que foi olhar o que era. Viu o rapaz lá fora e o chamou: “Rapaz, traga-me um ramalhete de flores!”
Ele recolocou depressa o gorro, colheu flores silvestres para ela e amarrou-as num ramo. Quando ia subir as escadas com as flores, o jardineiro o viu e disse: “O que é isso, você está levando essas flores ordinárias para as filhas do rei? Anda, compõe outro buquê, com as melhores e mais belas flores que tivermos.”
“Não”, respondeu o rapaz, “as flores silvestres têm perfume mais forte e agradarão mais à filha do rei.”
Quando o rapaz entrou no quarto, a filha do rei disse: “Tire o gorro, não deves usá-lo na minha presença.”
Ele respondeu: “Não ouso fazer isso. Tenho sarna na cabeça.”A moça, porém, agarrou o gorro e o arrancou; os cabelos dourados caíram sobre os ombros do rapaz, num belo espetáculo: Ele correu para a porta, mas a moça segurou-o pelo braço e entregou-lhe um punhado de moedas de ouro. Apanhou-as e saiu, mas não lhes deu valor. Na verdade, entregou-as ao jardineiro, dizendo: “Leve-as para seus filhos – eles as usarão para brincar.”
No dia seguinte a filha do rei chamou novamente o rapaz ao seu quarto e ordenou-lhe que trouxesse mais flores silvestres. Ao chegar com elas, a princesa tentou arrancar-lhe o gorro, mas o rapaz o segurou com as duas mãos. Mais uma vez, a princesa deu-lhe um punhado de moedas de ouro, mas ele se recusou a guardá-las, dando-as ao jardineiro como brinquedos para seus filhos.
No terceiro dia, as coisas aconteceram do mesmo modo: a moça não conseguiu arrancar-lhe o gorro e ele não guardou as moedas de ouro.

Pouco depois, o país foi varrido pela guerra. O rei reuniu suas forças, embora duvidando que pudesse vencer o inimigo, que era poderoso e dispunha de enorme exército. O ajudante de jardineiro disse: “Eu agora estou crescido e irei para a guerra se me derem um cavalo.” Os homens mais velhos riram e disseram: “Quando tivermos partido, procure na cocheira. Vamos deixar um cavalo para você.”
Quando todos se foram, o rapaz foi à cocheira e tirou o cavalo: era manco de uma perna e capengava. Montou-o, e dirigiu-se à floresta escura.
Quando chegou à orla, gritou três vezes “João de Ferro”, tão alto que o grito ecoou pelas árvores.
Num momento o homem natural lhe apareceu e perguntou: “O que desejas?”
“Quero um cavalo de batalha bem forte, porque pretendo ir à guerra.”
“Tu o terás e mais ainda do que pediste.”
O Homem Natural voltou-se, retornou à floresta, e pouco depois um cavalariço saía de entre as árvores puxando um cavalo de batalha que soprava pelas ventas e era difícil de conter. Correndo atrás do cavalo vinha um grande grupo de guerreiros totalmente vestidos em armaduras, as espadas brilhando ao sol. O rapaz entregou ao cavalariço o seu cavalo manco, montou o novo animal e saiu cavalgando à frente dos soldados. Quando se aproximava do campo de batalha, uma grande parte dos homens do rei já tinha sido morta, e pouco faltava para que ele sofresse uma derrota total.
O rapaz e seus guerreiros galoparam sobre o inimigo como um furacão e derrubaram todos os seus adversários. O inimigo fugiu, mas o rapaz o perseguiu até o último homem. Depois, em vez de voltar para a presença do rei, levou seu grupo por caminhos pouco conhecidos de volta à floresta, e chamou João de Ferro.
“O que queres?”, perguntou o Homem Natural.
“Podes levar de volta o teu cavalo e teus homens, e devolve-me o meu cavalo manco.”
Tudo foi feito como ele pediu, e lá se foi o rapaz de volta ao castelo num animal que mancava.
Quando o rei voltou, sua filha congratulou-se com ele pela vitória.
“Não fui eu quem a conquistou, mas um cavaleiro estranho com seus guerreiros, que chegaram para me ajudar.”
A filha perguntou quem era esse estranho cavaleiro, mas o rei não sabia e acrescentou: “Ele galopou em perseguição do inimigo, e não o vi mais.” A moça procurou o jardineiro e perguntou pelo rapaz, mas ele riu e disse: “Acabou de chegar em seu cavalo de três pernas. Os ajudantes de jardinagem zombaram dele, indagando: “Adivinhe quem chegou? O manquitola.” Depois, disseram-lhe: “Você esteve escondiodo, hein?Que tal?” O rapaz respondeu: “Lutei, e muito bem; se não fosse por mim, quem sabe o que teria acontecido?” Eles quase morreram de rir.

O rei disse à filha: “Organizei um grande festival que durará três dias, e você vai jogar a maçã dourada. Talvez o cavaleiro misterioso apareça.”
Depois de anunciado o festival, o rapaz foi até a orla da floresta e chamou João de Ferro.
“Do que precisas?”, perguntou este.
“Quero pegar a maçã dourada que a filha do rei vai jogar.”
“Isso não é problema: já a tens praticamente em tuas mãos”, respondeu João de Ferro. “Vou dar-te mais: uma armadura vermelha para a ocasião, e um vigoroso cavalo castanho.”
O jovem galopou para a arena no momento adequado, juntou-se aos outros cavaleiros e ninguém o reconheceu. A filha do rei jogou a maçã dourada para o grupo de homens, e o jovem a apanhou. Mas, depois de apanhá-la, afastou-se a galope.
No segundo dia, João de Ferro deu-lhe uma armadura branca e um cavalo também branco. Ainda nessa ocasião a maçã caiu nas suas mãos; e mais uma vez , o jovem não ficou nem um instante mais, e fugiu a galope.
O rei ficou irritado e disse: “Esse comportamento não é permitido; ele deve dirigir-se a mim e informar o seu nome. Se ele pegar a maçã uma terceira vez e fugir, corram atrás desse cavaleiro”, disse aos seus homens. “E mais: se não quiser voltar, dêem-lhe um golpe; usem a espada.”
No terceiro dia do festival, João de Ferro levou ao moço uma armadura e um cavalo pretos. Naquela tarde ele também apanhou a maçã. Dessa vez, porém, quando se afastou com ela, os homens do rei o perseguiram e um deles se aproximou o bastante para ferí-lo na perna com a ponta da espada. O jovem escapou, mas o cavalo deu um salto tão grande para fugir que seu elmo caiu, e todos viram os cabelos dourados. Os homens do rei voltaram e contaram o que tinha acontecido.

No dia seguinte, a filha do rei perguntou ao jardineiro pelo seu ajudante. “Ele está de volta ao trabalho no jardim. Esse tipo estranho foi ao festival ontem, e só voltou à noite. E mostrou aos meus filhos as maçãs douradas que ganhou.”
O rei mandou chamar o rapaz, que compareceu com o gorro na cabeça. A filha do rei,porém, aproximou-se dele e lhe arrancou o gorro. O s cabelos dourados caíram sobre os ombros do moço; sua beleza era tanta que todos se espantaram.
O rei disse: “És tu o cavaleiro que apareceu todos os dias do festival com um cavalo de cor diferente, e apanhou a maçã dourada todos os dias?”
“Sou eu” respondeu ele, “e aqui estão as maçãs.” Tirando-as do bolso, entregou-as ao rei. “Se precisar de outra prova, queira olhar o ferimento que seus homens me fizeram ao me perseguir. E mais, sou também o cavaleiro que ajudou a derrotar o inimigo.”
“Se podes realizar feitos dessa magnitude, evidentemente não és um ajudante de jardineiro. Quem é o teu pai?”
“Meu pai é um rei notável, e tenho muito ouro, todo o ouro que possa precisar.”
“É claro”, disse o rei, “que tenho uma dívida contigo. Dar-te-ei o que estiver ao meu alcance e desejares.”
“Bem”, disse o rapaz, “quero sua filha por mulher.”
A filha do rei riu e disse: “Gosto da maneira como ele diz as coisas, sem rodeios. Eu já sabia, pelo seu cabelo dourado, que não era ajudante de jardinagem.” E aproximou-se dele e o beijou.
O pai e a mãe do rapaz foram convidados para o casamento e compareceram; estavam muito alegres porque já tinham perdido a esperança de rever o filho querido.
Quando todos os convidados estavam sentados `a mesa do banquete de casamento, a música começou a tocar, e as grandes portas se abriram, deixando entrar um rei esplêndido, acompanhado por grande comitiva.
Dirigiu-se ao rapaz e o abraçou. O convidado disse “Eu sou João de Ferro, que um feitiço transformou num Homem Natural. Quebraste o encantamento. A partir de agora, todos os tesouros que tenho são teus.”

Segundo a tradução inglesa de Robert Bly da história de Jacob e Willelm Grimms, em Grimms Marchen(1946).

“Embora tivesse sido recolhido pelos irmãos Grimm por volta de 1820, esse conto pode ter 10 ou 20 mil anos.” – Robert Bly

Fonte: João de Ferro, um livro sobre homens - Editora Campus
Autor: Robert Bly   

O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO

Texto colhido no site PROJETO RELEITURAS: http://www.releituras.com/


O homem de cabeça de papelão
João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital,  composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio é uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.


João do Rio foi o pseudônimo mais constante de João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor e jornalista carioca, que também usou como disfarce os nomes de Godofredo de Alencar, José Antônio José, Joe, Claude, etc., nada ou quase nada escrevendo e publicando sob o seu próprio nome. Foi redator de jornais importantes, como "O País" e "Gazeta de Notícias", fundando depois um diário que dirigiu até o dia de sua morte, "A Pátria". Contista, romancista, autor teatral (condição em que exerceu a presidência da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito na vaga de Guimarães Passos. Entre outros livros deixou "Dentro da Noite", "A Mulher e os Espelhos", "Crônicas e Frases de Godofredo de Alencar", "A Alma Encantadora das Ruas", "Vida Vertiginosa", "Os Dias Passam", "As religiões no Rio" e "Rosário da Ilusão", que contém como primeiro conto a admirável sátira "O homem da cabeça de papelão". Nascido no Rio de Janeiro a 05 de agosto de 1881, faleceu repentinamente na mesma cidade a 23 de junho de 1921.

O texto acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 196.



Comentários de Jorge Lobo: sem comentários!

domingo, 21 de agosto de 2011

"HOMEM PRIMATA... CAPITALISMO SELVAGEM..."

Quino, Autor da “Mafalda”, desiludido com o rumo da nossa realidade, deixou impresso nos cartoons o seu sentimento.









sábado, 9 de julho de 2011

DICAS LITERÁRIAS

Para o roteirista ou escritor que quer se aprimorar, acho relevante que ele se aprofunde. Para auxiliar quem queira, eis aqui algumas dicas:

LIVROS DE TEORIA - OS MAIS IMPORTANTES - ORDEM CRESCENTE DE DIFICULDADE

1)"INTRODUÇÃO À ANÁLISE DA NARRATIVA" - BENJAMIN ABDALA JÚNIOR
2)"A ARTE DA FICÇÃO" - DAVID LODGE
3)"ASPECTOS DO ROMANCE" - EDWARD M. FORSTER
4)"AS ESTRUTURAS NARRATIVAS" - TZVETAN TODOROV

OUTROS LIVROS RECOMENDÁVEIS MAS PORÉM NÃO TÃO IMPORTANTES (NA MODESTA OPINIÃO DESTE ESCRIBA):
"OS ARQUÉTIPOS LITERÁRIOS" - E. M. MELETÍNSKI
"A TÉCNICA DA FICÇÃO MODERNA" - ASSIS BRASIL
"O INCONSCIENTE POLÍTICO - A NARRATIVA COMO ATO SOCIALMENTE SIMBÓLICO" - FREDRIC JAMESON
"AS MARCAS DO VISÍVEL" - FREDRIC JAMESON
"ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA" - ROLAND BARTHES, UMBERTO ECO E OUTROS
"O REALISMO MARAVILHOSO" - IRLEMAR CHIAMPI
"MITOS DO INDIVIDUALISMO MODERNO" - IAN WATT
"BORGES: UMA POÉTICA DA LEITURA" - EMIR R. MONEGAL
"LITERATURA E SOCIEDADE" - ANTONIO CANDIDO
"O HERÓI DE MIL FACES" - JOSEPH CAMPBELL
"STORY" - ROBERT MCKEE
"O ROTEIRO DE CINEMA" - MICHEL CHION
"OS SEGREDOS DA FICÇÃO" - RAIMUNDO CARRERO
"SEIS PASSEIOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO" - UMBERTO ECO
"O FANTÁSTICO" - SELMA CALASANS RODRIGUES
"FORMAS BREVES" - RICARDO PIGLIA
"A ARTE DA FICÇÃO" - HENRY JAMES
"O QUE É RETÓRICA" - TEREZA LÚCIA HALLIDAY
"INTRODUÇÃO À RETÓRICA - A RETÓRICA COMO CRÍTICA LITERÁRIA" - DANTE TRINGALI
"ARTE RETÓRICA E ARTE POÉTICA"- ARISTÓTELES (2 LIVROS EM 1 - EDITORA EDIOURO)
AS PRINCIPAIS TEORIAS DO CINEMA - J. DUDLEY ANDREY
A IMAGEM MOVIMENTO - GILLES DELEUZE
A IMAGEM TEMPO - GILLES DELEUZE
"VALISE DE CRONÓPIO" - JULIO CORTÁZAR
"O ROMANCE POLICIAL" - BOILEAU-NARCEJAC
"DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS" - HERDER LEXICON

OBS.: PARA ENTENDER MELHOR CERTOS LIVROS, É RECOMENDÁVEL LER ANTES OUTROS. CITO COMO EXEMPLOS "O QUE É LINGUÍSTICA", DE ENI PULCINELI ORLANDI (COLEÇÃO PRIMEIROS PASSOS, ED. BRASILENSE) E "DICIONÁRIO DE TEORIA DA NARRATIVA", DE CARLOS REIS E ANA CRISTINA M. LOPES - PARA ENTENDER MELHOR OS LIVROS "ÄS ESTRUTURAS NARRATIVAS" E "ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA". NESSA MESMA LINHA, CITO COMO IMPORTANTES LIVROS DE ARNALDO SPINDEL: "O QUE É SOCIALISMO", "O QUE É COMUNISMO" E "O QUE É CAPITALISMO", ALÉM DE "CONHEÇA MARX", DE RIUS, "MANIFESTO COMUNISTA EM QUADRINHOS", DE KARL MARX/FRIEDRICH ENGELS, ILUSTRAÇÕES DE RO MARCENARO - PARA ENTENDER MELHOR OS LIVROS DE FREDRIC JAMESON.

É CLARO QUE É FUNDAMENTAL LER OS LIVROS/AUTORES DE FICÇÃO QUE SÃO CITADOS NESSAS OBRAS TEÓRICAS E ATÉ MESMO OUTROS QUE NÃO SÃO CITADOS MAS QUE SÃO IMPORTANTES: "DECAMERÃO", DE BOCCACCIO, CONTOS E ROMANCES POLICIAIS DE DASHIELL HAMMETT E RAYMOND CHANDLER, A DESPREZADA (?) AGATHA CHRISTIE, EDGAR ALLAN POE, JORGE LUIS BORGES, VOLTAIRE, HERMANN HESSE, "CONTOS FANTÁSTICOS DO SÉCULO XIX ESCOLHIDOS POR ITALO CALVINO", "O LIVRO DE OURO DA MITOLOGIA", DE THOMAS BULFINCH, CARLOS FUENTES, JUAN CARLOS ONETTI, GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, AMBROSE BIERCE, H.P. LOVECRAFT, FREDRIC BROWN, CHARLES BUKOWSKI, CÉLINE, GEORGE ORWELL, ALDOUS HUXLEY, ALAIN ROBBE-GRILLET, JULIO CORTÁZAR, MURILO RUBIÃO, JACK KEROUAC, MARIO VARGAS LLOSA, GUSTAVE FLAUBERT, JOSÉ J. VEIGA, GUIMARÃES ROSA, RICARDO RAMOS, JOÃO ANTÔNIO, OS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS (VÁRIAS EDITORAS LANÇARAM VOLUMES COM CONTOS DE MACHADO, MAS EU INDICO A EDIÇÃO DA CULTRIX, COM ORGANIZAÇÃO DE MASSAUD MOISÉS), HENRY JAMES, HENRY GREEN, MURIEL SPARK, MILAN KUNDERA, PAUL AUSTER, JOHN UPDIKE, JOHN BARTH, ANTHONY BURGESS, LEONORA CARRINGTON, WILLIAM GOLDING, JANE AUSTEN, ETC.

Existe um velho slogan que diz: "nada substitui o talento!" Pensem nisso. Pensem também que não existe informação que tenha dito (pelo menos até onde eu sei) até hoje que o (na minha opinião) grande escritor Charles Bukowski tenha lido teoria literária, mas é fato comprovado que ele leu muitas obras de ficção. Pensem que a técnica e a inspiração podem se complementar, consciente ou inconscientemente. Pensem o que quiserem.

terça-feira, 28 de junho de 2011

UMA AMOSTRA DO MEU TRABALHO COMO ROTEIRISTA


                    QUE PAÍS É ESTE?



Um roteiro de Jorge Lobo, adaptado de um conto de Medeiros e Albuquerque (em domínio público)

Obra registrada na Ministério da Cultura – No. Registro: 379.606 ; Livro: 704; Folha: 266

 

PERSONAGENS

JONAS (PROTAGONISTA)

PRESIDENTE DA REPÚBLICA (ANTAGONISTA)

GAROTO MENDIGO

MARCELO

HOMEM ENGRAVATADO (EMISSÁRIO DO GOVERNO)

CABOCLO JOÃO FRANCISCO

FRANZ

HOMEM ALTO (AGENTE DO GOVERNO)

FIGURANTES
                                                                ROTEIRO

QUE PAÍS É ESTE?

PRÓLOGO


NARRAÇÃO E LETREIRO: fundo preto, letras brancas

Em 2030, o Brasil assiste ao governo de um novo presidente da república.Eleito pelo povo, faz uma  política de forte alinhamento aos Estados Unidos. Nessa nova ordem, ele torna o Rio de Janeiro novamente a capital do país(“para dar mais transparência ao governo”, foi o que ele disse. Bem, isso foi o que ele disse...) e chega até a contaminar os reservatórios de água com substâncias que emburrecem as pessoas para minar as resistências ao seu governo, prática já usada pelos americanos em sua própria população e cuja tecnologia cederam ao Brasil. Poucos são os que sabem disso, como os comunistas(nesse ponto da narração, há uma CENA – um COMUNISTA, homem jovem, de ROUPAS VERMELHAS APARECE NA TELA EM FUSÃO COM OS LETREIROS E GRITA: “quem acreditaria?”, fim da CENA), que anseiam pela chegada ao poder.Jonas, nossa personagem principal é um desses comunistas insatisfeitos.


FADE IN:


 1 – INTERIOR – APARTAMENTO  DE JONAS – DIA


Aparece um CARTAZ com uma  FOTO do PRESIDENTE DA REPÚBLICA colada numa porta.O cartaz é mostrado de cima pra baixo, isto é, vemos a foto, onde, em cima  dela, no cartaz, está escrito: o nosso presidente. Um dardo acerta o rosto do presidente.Uma MÃO escreve, então, com um pincel atômico, no espaço em branco do cartaz, abaixo da foto, a seguinte frase: o idiota do ano.

JONAS, personagem principal, homem de 40 anos, branco, cabelos curtos e morenos, pega um copo na cozinha, vai até a garrafa(tipo garrafão) de água mineral e bebe.

JONAS
Ahh!


 2 – EXTERIOR – DIA

JONAS caminha pelas ruas do centro do Rio de Janeiro(Ao largo do PALÁCIO TIRADENTES).


JONAS
(ANDANDO, VOICE OFF)

Ninguém compreendera por que eu fora nomeado ministro...

Um GAROTO MENDIGO, vestido com roupas simples e um pouco rasgadas, aborda Jonas.

GAROTO MENDIGO

  Moço, o senhor pode me arranjar um trocado, com todo o respeito?

JONAS

Com todo o respeito?Que país é esse?Pelo amor de deus!Hum! como se eu acreditasse nele!Ah !Quer saber de uma coisa?Não vou te dar trocado nenhum, não vale a pena, não!

 GAROTO MENDIGO

Ô moço!Quê isso?!Tudo vale a pena se a alma não é pequena!

JONAS

                   Hum!Isso, dito por um idiota, fica mais idiota!Tá bom, já me convenceu!Toma o seu trocadinho aí e não enche o saco!


                    
Jonas tira do bolso uns  trocadinhos e entrega ao garoto mendigo.


3 - INTERIOR – PALÁCIO DO CATETE – SALA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA – DIA

Vemos uma FOTO do presidente da república(com os dizeres“o nosso presidente”) e o ângulo abre para revelar o PRESIDENTE DA REPÚBLICA, que está sentado à sua mesa, fumando um charuto, com uma cara de contentamento, e o resto de seu gabinete. Na sala do presidente há duas cadeiras postadas em frente `a MESA na qual ele se apóia, vários PAPÉIS sua mesa, um TELEFONE, uma pequena BANDEIRA DO BRASIL e alguns QUADROS na parede, alguns de pintores, outros de fotos do presidente apertando a mão de autoridades na inauguração de obras, uma OUTRA MESA mais a frente com mais duas cadeiras em volta.Alguém BATE à porta.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Pode entrar!

  Um ASSESSOR ENTRA, com um ENVELOPE de CARTA na mão.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

                Fala, Marcelo!


MARCELO
(colocando a o envelope na mesa)
                   
Presidente, pro senhor!

O presidente da república tira a carta do envelope, começa a ler e, pouco a pouco, vai estampando um sorriso, ao mesmo tempo em que entra a voz over.

JONAS(VOICE OVER)

Um belo dia, o presidente havia recebido uma carta anônima.

4 – EXTERIOR – PRAIA - DIA


JONAS está na praia, parado, olhando pro mar.

JONAS(V. OFF)

Ela lhe dizia que o autor queria que ele nomeasse para o cargo de ministro da fazenda um dos nomes da lista que se seguia. E vinha, por ordem alfabética, uma série de vinte e cinco nomes.Entre eles estava o meu: o único aceitável.Os outros eram de operários comunistas, de tipos sem compostura, de inimigos pessoais do presidente.Eu era aí uma espécie de “carta forçada”. A ter de de se fazer a escolha naquele menu, não havia remédio senão engolir-me.

Jonas caminha pela praia olhando as ondas.

 5 – INTERIOR DE UM RESTAURANTE – DIA


JONAS, num RESTAURANTE, têm seu prato servido por um GARÇOM, que bota um lenço em volta de seu pescoço.

JONAS(V.OFF)
Você vai ter que me engolir!
           


 6 – INTERIOR – PALÁCIO DO CATETE – SALA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA - DIA


O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, fumando UM CHARUTO, lê a CARTA sorrindo.


JONAS(V.OVER)
        
O missivista prevenia o presidente que, a partir daquele dia até que ele fizesse a nomeação, iria matando várias pessoas gradas.Para que ele visse que essa ameaça não era vã, prevenilo-ia sempre com antecedência de que alguém ia morrer.Começaria por homens notáveis, indiferentes ou inimigos do chefe do Estado, passaria a parentes desse e acabaria, se fosse preciso, por ele mesmo.Chamava-lhe a atenção para que a sua demora em ceder à intimação custaria um número de vidas cada vez maior.E acabava anunciando:  hoje mesmo ou amanhã morrerá o senador Eustorgio.

O presidente da república, sorrindo e continuando a fumar o charuto, amassa a carta e a coloca em cima da mesa.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA
(fumando o charuto)

Mais um engraçadinho!

 O presidente da república faz menção de atirar a carta ao cesto mas pára, hesitante e começa a discar um número ao telefone.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA
(fumando o charuto)

Alô!Senador Zé Maria!?É o presidente! Como que presidente?Acorda, Zé Maria! Não quer nada com a hora do Brasil, é? (áudio: começo do primeiro trecho de O Guarani, de Carlos Gomes) Escuta!O sr. sabe me dizer, com todo o respeito, se o Senador Eustorgio esteve aí hoje?(áudio: fim do trecho de O Guarani) ... esteve?Ele estava bem? Ok, muito obrigado!

O presidente da república atira a carta no cesto de lixo.

FUSÃO PARA:

7 – INTERIOR – PALÁCIO DO CATETE – SALA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA - DIA

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA está sentado à mesa brincando com uma faca, passando uma FACA entre os dedos até que acerta um dos dedos sem querer.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

 Aii!Droga!Maldita faca!

O telefone toca e o presidente da república atende.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA
                  
                   Alô?!O quê!?Morreu?De quê?Abafar o caso?O quê?

O presidente da república desliga o telefone com força, levanta de sua mesa, anda rapidamente até o cesto de lixo e pega a carta que tinha amassado e jogado fora, a desamassa e fica olhando pra ela com olhar de preocupação.



 8 – INTERIOR – PALÁCIO DO CATETE – SALA DO PRESIDENTE – DIA

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA está sentado à sua mesa, olhando para Marcelo, que está em pé.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

E Então?

MARCELO

O chefe de polícia já deu ordem pra vigiarem de perto todos os nomes da lista e grampearem todos os telefones.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Ótimo!


 9 – INTERIOR DE UMA CELA – NOITE


Um homem alto, encapuzado,  numa sala iluminada por apenas um pequeno lustre, anda de um lado para o outro e olha para um HOMEM amarrado à uma cadeira.

HOMEM ALTO
(dando um “telefone” no homem amarrado)

Fala desgraçado!Comunista de merda!

 10 - EXTERIOR

JONAS, andando na rua, dá um leve olhar pra trás, onde um HOMEM de JAQUETA MARROM o segue a 20 metros de distância.O homem de jaqueta marrom disfarça quando vê que Jonas o olha e anda em outra direção.Jonas ENTRA numa CASA( onde se lê na sua porta de entrada: ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA), abrindo a porta com uma chave.

JONAS(V.OFF)

Não foi difícil perceber que estava sendo vigiado. Sabia também que meu telefone estava grampeado... Mas eu era um cidadão acima de qualquer suspeita...


 11 – PALÁCIO DO CATETE  - GABINETE DO ASSESSOR MARCELO – DIA

MARCELO está sentado à sua mesa em sua sala e atende ao telefone.

MARCELO

Alô?

VOZ AO TELEFONE

                           Diga a S. Exa. que hoje morrerá um Deputado.

Marcelo levanta rapidamente de sua cadeira, SAI e VEMOS a sala vazia e o ângulo fecha na pequena bandeira do Brasil tremulando levemente.


12 – INTERIOR – APARTAMENTO DE JONAS -  DIA

JONAS, de PIJAMA, deitado em seu SOFÁ, lê um jornal em que se lê na MANCHETE: SELEÇÃO PARTE FIRME PARA DERROTAR “LOS HERMANOS” ARGENTINOS, abaixo se lê: MORRE O DEPUTADO MALTA DE COMPLICAÇÕES CARDÍACAS e mais abaixo diversas fotos de jogadores de futebol.

A campainha toca, Jonas joga o jornal no sofá, se levanta e abre a porta.

Ao abrir a porta, Jonas se depara com um homem engravatado.

HOMEM ENGRAVATADO

Bom dia, sr. Jonas!O excelentíssimo presidente da república mandou entregar isso ao sr., com todo o respeito.

 O homem engravatado entrega um envelope a Jonas.

 13 – INTERIOR – PALÁCIO DO CATETE – SALA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA – DIA

Jonas está sentado na cadeira em frente ao presidente e sua mesa.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

O sr. sabe provavelmente para que o mandei convidar.

JONAS

Absolutamente, não. Se o Cardeal-Arcebispo me mandasse convidar, eu não teria maior surpresa.

JUMP CUT PARA:

14 – INTERIOR – PALÁCIO DO CATETE – SALA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA - DIA

JONAS está jogando XADRÊS com o presidente em sua sala. Cada um faz seus movimentos.

JONAS(V. OFF)

O presidente me disse então do que se tratava : convidava-me para ministro da fazenda e prometia-me toda a autonomia.Era isso o que mais lhe pesava. Porque a carta cominatória exigia que ele desse ao ministro o máximo de autonomia, aprovando todos os seus atos, sem discutir.E isso não podia deixar de repugnar ao seu caráter dominador e autoritário.Objetei a minha incompetência, tive a dose precisa de modéstia, mas acabei aceitando.E nessa mesma noite a notícia da estranha nomeação encheu de espanto a cidade.

Jonas coloca em xeque o REI do presidente.

JONAS

Xeque-mate

15 – INTERIOR – APARTAMENTO DE JONAS – NOITE


Jonas, sentado numa POLTRONA, dá um leve sorriso, levanta, se dirige à cozinha, pega um copo, bebe um copo de água mineral e sorri novamente.Anda pela cozinha até chegar à janela e olhar pro horizonte.


16 – INTERIOR – CASA DO CABOCLO JOÃO FRANCISCO - DIA


Um CABOCLO, com uma cobra nas mãos, espreme com as mãos, pressionando um dente de cobra, o veneno dentro de um pequeno frasco.

JONAS(V. OVER)


Anos antes, viajando no interior, eu estivera em relações com um velho caboclo que se especializara em curar dentaduras de cobras.Ele manifestava especial predileção por um frasquinho, que dizia conter o veneno de uma cobra e sei lá mais eu que diabos de substâncias que, dizia ele,  não havia ainda sido descoberto pela ciência e que mantinha cuidadosamente fechado.O vidro teria umas trinta gramas de capacidade.Mas o caboclo freqüentemente o apontava, dizendo: 

CABOCLO
(com o frasquinho nas mãos)

         Com isto se poderia matar todo homem vivente criado por esse mundo inteiro.

Jonas

Qualé, João Francisco!Você está exagerando.

              CABOCLO JOÃO FRANCISCO
(FALANDO COM A VOZ DE JONAS, VÊ-SE JOÃO FRANCISCO ABRINDO A BOCA MAS É A VOZ DE JONAS QUE SAI DE SEUS LÁBIOS)

          Ele sustentava, porém o contrário – e era quem tinha razão.


 17 – INTERIOR – CASA DO CABOCLO – NOITE


O CABOCLO JOÃO FRANCISCO geme em sua cama, ao lado de duas mulheres, uma mais velha e outra jovem, que olham pra ele com cara de tristeza. Cada uma das mulheres segura uma mão do caboclo.Jonas observa a cena postado, em pé, perto do pé da cama. Caboclo João Francisco dá seu último suspiro e morre.As duas mulheres se agacham e choram de encontro ao peito de caboclo João Francisco.JONAS se dirige à saída quando vê o FRASQUINHO COM VENENO numa ESTANTE.

 JONAS(V.OFF)

Meti-o no bolso do colete e...

Jonas bota o frasquinho no bolso do colete e SAI.


 18 – INTERIOR – APARTAMENTO DE JONAS - DIA


A voz off cobre a cena em que JONAS fala com FRANZ,  operário polaco.Franz tem uma bengala nas mãos. Os dois sorriem mas não há áudio, excetuando-se a voz off. Na mesma sala, Franz mostra uma bengala para Jonas, abre ela, aponta para o cano, para uma MOLA, Jonas pega a bengala, Franz pega ela de volta, atira numa tábua e aponta para o lugar.


JONAS(V. OFF)

Muito depois eu vim a conhecer um operário polaco, muito hábil, mas já velho, que empreguei em minha casa.Era hábil, inteligente e cheio de idéias revolucionárias.Foi ele que me construiu uma espécie de espingarda com ar de comprimido, cujo tubo não excedia o diâmetro de um milímetro e o comprimento de um metro.Tinha o formato de uma bengala, uma bengala simples, que não chamava em nada a atenção.Vi que se lhe poderia pôr como projétil um pedaço de agulha das que se usam nas seringas de injeções hipodérmicas – dois centímetros apenas.

 19 – EXTERIOR - DIA


A voz off cobre a cena. JONAS observa um cavalo, atrelado à uma carroça, a poucos metros de distância.Quando o condutor desmonta e se afasta da carroça, Jonas acende um cigarro e atira com a bengala.

JONAS(V.OFF)

Fui ao haras de um conhecido e postei-me ao lado de um cavalo que puxava uma carroça, parei naturalmente e, quando fingia acender um cigarro, calquei a mola e a agulha partiu, enterrando-se no animal, que fez enrugar o pêlo, como para espantar alguma mosca.Menos de dez minutos após o animal deixou-se cair.Aproximei-me então cuidadosamente e quando o vieram buscar ele já estava morto.Por quê?Ninguém sabia.


 20 – INTERIOR – APARTAMENTO DE JONAS - DIA

JONAS está sentado em frente a FRANZ, que também está sentado em uma cadeira.

JONAS(V. OFF)

Só então me abri com Franz e disse-lhe o que tinha a fazer.Ele se mudaria e eu lhe dei o necessário para alugar casa.Dei-lhe uma lista dos que deviam ser eliminados: nunca mais de um por dia.

Franz se ajeita na cadeira.

JONAS

O ministério da fazenda é o ministério mais poderoso. Convém começar por ele.Depois, eu farei, pelo mesmo processo, com que o presidente se bata pela minha candidatura para seu sucessor, e elimino, se for preciso, os meus competidores.


Franz

Como atacá-los?


 21 – EXTERIOR – CENTRO DO RIO - DIA

Franz segue um congressista(Senador Eustorgio), que tem 2 seguranças às suas costas e a 2 metros de distância, com a bengala carregada na mão horizontalmente, apóia na mola, que ficava no meio e a agulha enterra-se nas costas da vítima.Franz se afasta para o lado contrário caminhando com a bengala sem que os seguranças o vejam e segue andando pela rua.

FRANZ(V.OFF)

Eu matei ele sim mas foi com todo o respeito!


  22 – INTERIOR – CASA DE JONAS – NOITE

A voz off cobre a cena em que JONAS E FRANZ se abraçam.

JONAS (V.OFF)

Franz era inteligente. Compreendeu tudo muito bem. Porém, no dia da minha nomeação ele me apareceu, bêbado, e isso me deu a noção do perigo daquele cúmplice que podia comprometer-me.Vi que era preciso elimina-lo.

JONAS
(entregando uma garrafa de vodka a Franz)

              Beba, Franz, hoje é dia de festa!Estamos comemorando o primeiro passo da revolução!


23 – EXTERIOR – APARTAMENTO DE JONAS -  NOITE


No pequeno quintal de Jonas, Franz dorme numa poltrona. Jonas aplica-lhe uma agulhada. No sono, sentindo a picada, FRANZ leva a mão para coçar o ponto machucado.


 24 – INTERIOR – PALÁCIO DO CATETE – SALA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA - NOITE

JONAS entrega papéis ao PRESIDENTE DA REPÚBLICA. O presidente da república lê, se mexe pra trás na cadeira e faz uma cara de horror.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA
(com a voz desanimada)

O que o sr. quiser... O que o sr. quiser...

O presidente da república assina os papéis.O presidente da república estende a mão para Jonas e se despede dele.


JONAS sai da sala do presidente da república e anda pelos corredores do palácio do Catete.

JONAS (V.OFF)

Eu via perfeitamente o que se passava no seu espírito. A medida lhe repugnava profundamente, mas ele tinha medo de negar a assinatura e tornar-se assim responsável por alguma nova morte.


 25 – EXTERIOR – RUA - DIA – ÁUDIO EM TODA A CENA: SOM DO ASSOBIO DE UMA VENTANIA

Num PLANO EM MOVIMENTO, nos dirigimos pela rua até PARARMOS em uma MANCHETE DE JORNAL com os dizeres:

O FIM DE UM HOMEM DE BEM: PRESIDENTE MORRE DE ATAQUE CARDÍACO(ABAIXO A FOTO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA SORRINDO)

VICE-PRESIDENTE ASSUME E PROMETE RENOVAR TODO O MINISTÉRIO(ABAIXO, A FOTO DO VICE-PRESIDENTE, DE GRAVATA)


 26 – INTERIOR – APARTAMENTO DE JONAS – FINAL DA TARDE

Aparece um cartaz com uma foto do presidente da república colada numa porta. O cartaz é mostrado de cima pra baixo, isto é, vemos a foto, onde, em cima dela, no cartaz, está escrito: o nosso presidente. Embaixo, a inscrição em pincel atômico com os dizeres: o idiota do ano.

JONAS

 Bom, pelo menos...

 JONAS pega um DARDO numa MESA ao seu lado, joga o dardo e acerta a foto com o rosto do presidente.
JONAS

HÁ HÁ HÁ HÁ!HUM?!(SURPRESO)

POV(POINT OF VIEW, PONTO DE VISTA) DE JONAS

Na porta, a foto que agora está colada é a do próprio Jonas com os dizeres de o idiota do ano.

VOLTA À CENA

JONAS(V. OFF)
(parado em pé, desanimado)

O que fazer?Recomeçar?Achar outro cúmplice?

Jonas caminha até uma estante, abre uma gaveta, pega o FRASQUINHO DE VENENO, vai até o banheiro e entorna o conteúdo na privada.

JONAS(V. OFF)

         Tive medo de mim mesmo.Acabo de entornar o frasco de veneno.A tentação podia voltar.

Num PLANO EM MOVIMENTO, saímos do banheiro, caminhamos pelo corredor e vamos em direção à janela, vemos a paisagem da janela durante alguns segundos.Voltamos em PLANO EM MOVIMENTO e a luz da sala onde está a janela se apaga, ainda em PLANO EM MOVIMENTO A CÂMERA SEGUE, passa pelo corredor, a luz do corredor se apaga e seguimos até à cozinha onde vemos Jonas pegar um copo, abrir o filtro e tomar água do filtro. A luz da cozinha se apaga

FADE OUT

FIM


JUSTIFICATIVA



  • Baseado em um conto de Medeiros e Albuquerque, membro da Academia Brasileira de Letras no começo do século 20, autor cuja obra na qual baseou-se o roteiro se encontra em domínio público, QUE PAÍS É ESTE? é uma mistura de policial com ficção política. O resgate de um autor como Medeiros e Albuquerque (que não têm nenhum livro atualmente disponível nas livrarias em catálogo) é importante e mostra que a literatura nacional ainda tem muitas contribuições a fazer ao cinema brasileiro. Sua habilidade no manejo da história policial e, mais do que isso, na mistura habilidosa da história policial com a trama política faz do conto de Medeiros uma pérola esquecida. À volta de um governo ditatorial, disfarçado de democrático, se contrapõe a figura de Jonas, um comunista muito engenhoso que prepara um plano para tomar o poder. Num mundo em que as utopias comunistas perderam muito de sua força do passado, Jonas é um cavaleiro solitário em 2030, um homem que trabalha praticamente sozinho e não mede esforços para que seu plano dê certo. A crítica às práticas ditatoriais (mesmo em se tratando de um governo eleito) e ao alinhamento aos Estados Unidos acaba justificando a atitude de Jonas, que certamente não é irretocável do ponto de vista ético, aliás, prática política maquiavélica bem atual, isto é, “os fins justificam os meios”, mas há que se ressalvar no entanto, que essa idéia de Maquiavel era descritiva e não prescritiva e Jonas é um homem que acredita em um sonho e não vê outra alternativa senão usar toda a sua inteligência na armação de um plano para “destronar” o presidente. Acrescentei, na minha versão, um toque de ficção científica - a água que emburrece as pessoas. É um alerta, pois até que ponto não somos dominados pela manipulação das informações e por uma postura passiva e crédula forjadas pela ideologia dominante e, em verdade, capitalista?Até quando iremos agüentar a falta de um sistema de comunicação democrático e pluralista no Brasil? A destacar, também, o uso da expressão “com todo o respeito”,  praticamente um mantra que mostra, por oposição, que o respeito está ausente das atitudes dos que dizem a expressão. O conto de Medeiros e Albuquerque pode ser encontrado na antologia “OS 100 MELHORES CONTOS DE CRIME E MISTÉRIO DA LITERATURA UNIVERSAL” (org. de Flávio Moreira da Costa, Ediouro).


Uma observação “pretensiosa” de Jorge Lobo: a adaptação de um texto literário para cinema tem que ser livre. A partir do momento em que o roteirista decide fazer uma adaptação para cinema a história passa a ser dele. As linguagens literária e cinematográfica, apesar de terem pontos em comum, são diferentes. Não devem existir preocupações como manter a atmosfera ou ser fiel ao texto literário adaptado. O roteirista tem que dar asas á sua imaginação e ponto final.

 SINOPSE

 N
o Brasil de 2030, Jonas, personagem principal, quer dar um golpe no governo brasileiro. Fortemente alinhado aos americanos e contaminando a água com substâncias que emburrecem as pessoas, fato conhecido por poucas pessoas, Jonas sendo um dos que sabem,  esse governo desagrada profundamente a Jonas. Comunista e insatisfeito, ele trama o golpe mandando para o presidente uma lista com vinte e cinco nomes para ele escolher um e nomeá-lo para o ministério da fazenda, caso contrário, mortes de pessoas ligadas ao presidente aconteceriam. Essa lista, propositalmente contém vinte e quatro nomes inaceitáveis e só um que não é: o próprio Jonas, que não é comunista declarado. A carta exige, também,  que ele dê ao ministro o máximo de autonomia, aprovando todos os seus atos, sem discutir. Quando a primeira morte anunciada acontece, o presidente multiplica os interrogatórios, visando interrogar, principalmente, os comunistas, mas não obtêm êxito, já que Jonas trabalha praticamente sozinho. Ele coloca, também, homens vigiando os nomes da lista mas Jonas não demonstra ser suspeito de nada. As mortes acontecem e o presidente, pressionado, acaba nomeando Jonas para o ministério.Como Jonas preparou seu plano?Ele conseguiu veneno de cobra com um caboclo, melhor dizendo, roubou o veneno,  e arranjou um cúmplice também comunista para matar suas vítimas de forma sorrateira, usando uma arma discreta: uma bengala que na verdade é uma arma que dispara uma agulha cheia de veneno de cobra. Quando esse cúmplice, devido à embriaguês, se revela uma ameaça aos planos dele, Jonas o elimina. Jonas propõe uma medida ousada ao presidente, que se sente obrigado a aceitar, temendo uma nova morte.Transtornado, porém, pela medida que acabava de aprovar, o presidente acaba morrendo de ataque cardíaco e frustrando os planos de Jonas, já que o vice-presidente assume e renova todos os ministérios. Sem ânimo para arranjar um novo cúmplice, Jonas acaba, devido a esse desânimo, achando melhor beber água do filtro para emburrecer.



AGUARDO COMENTÁRIOS, SEJAM POSITIVOS OU NEGATIVOS.

Att.

Jorge Lobo