quinta-feira, 19 de agosto de 2010
CRÍTICA DO FILME "MEMÓRIAS DO CÁRCERE"( ATENÇÃO: SPOILERS )
MEMÓRIAS DO CÁRCERE, DE NÉLSON PEREIRA DOS SANTOS
POR JORGE LOBO
“O cárcere em meu filme é uma metáfora da sociedade brasileira. No espaço exíguo da prisão a dinâmica de cada um é mais clara: a classe média militar, o jovem, a mulher, o negro, o nordestino, o sulista. O encontro com o prisioneiro comum, o ladrão, o assaltante, o homossexual.
Graciliano retratou tudo isso, lutando contra os próprios preconceitos e conseguiu nos deixar um testemunho generoso, aberto. Gostaria de transmitir, como era desejo de Graciliano, a sensação de liberdade. Sair da cadeia para sempre, para nunca mais voltar. A cadeia no sentido mais amplo, a cadeia das relações sociais e políticas que aprisionam o povo brasileiro.” – Nélson Pereirea dos Santos, maio, 1984
1) Um filme bastante longo, mas que se sustenta plenamente, graças, principalmente, ao ótimo roteiro de Nélson. A direção é boa também, sutil, seca* ; Porém, já ficou provado que quando Nélson não tem um bom roteiro, ele não realiza bons filmes, como em Jubiabá e Cinema de Lágrimas.
* Poucos movimentos de câmera, aliás, John ford, falando sobre agilidade já dizia: “não é necessário haver muitos movimentos de câmera pra fazer um filme ágil. Deixe sua câmera parada e depois resolva o problema com os cortes e na montagem” (é uma forma de fazer cinema, uma visão sobre cinema, existem outras válidas, mas essa é uma interessante) e assim faz Nélson, a câmera só se move quando é necessário, como na hora de mostrar a solidariedade entre os presos (as aulas de política, matemática, inglês, etc) ou na saída de Ramos de casa para o alojamento militar onde há um bonito enquadramento; valoriza a interpretação dos atores mostrando suas expressões, usando muito o plano americano e o primeiro plano; é importante frisar que o filme têm muito pouco daquela música chamada não diegética (aquela música que não faz parte da ação, ela é colocada pelo diretor em comum acordo com o autor da trilha sonora), mas muita música diegética (isto é, a música que faz parte da ação propriamente dita; no caso desse filme não temos nenhuma personagem tocando instrumentos musicais, mas temos muitas delas cantando, fruto do roteiro ou da improvisação dos atores e da escolha do diretor). Esses dados sobre a música são interessantes, pois o filme é de 1984, bem antes de existir o movimento DOGMA 95; este, prega que o filme não deve conter essa música não diegética, a música deve ser cantada ou tocada pelas personagens. Nélson foi, portanto, discretamente “dogmático” em MEMÓRIAS DO CÁRCERE.
2) O filme conta com um grande elenco, tanto em termos de quantidade quanto em termos de qualidade: Carlos Vereza (ótimo no papel de Graciliano), Glória Pires, José Dumont, Wilson Grey, Jofre Soares, Nildo Parente, Tonico Pereira, Paulo Porto, Marcos Palmeira e Cássia Kiss, em início de carreira, fazem pontas, etc.
3) Apesar de ser produzido por Luiz Carlos Barreto, o filme custou, segundo o livro HISTÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO, apenas 550 mil dólares.
4) ”Por que você proibiu o hino nacional?”, é o que uma amiga (será?) da esposa de Ramos pergunta a ele. Depois, ela o chama de comunista e vai embora.É interessante esse contraste (essa antítese) entre o começo do filme, quando ouvimos o hino nacional e essa proibição de Ramos. Mostra que quando o hino não está a serviço de um governo fascista que quer usar demagogicamente o hino nacional (vem daí a atitude de Ramos), ele pode, sim, ser tocado ou cantado (como sempre fazem os presos do primeiro presídio em que Ramos é “hospedado”).
5) “O sr. Vai ser preso!”
Mas Ramos não quer fugir: “não vale a pena...” , diz ele. E quando o sentimentalismo ameaça se instaurar, no diálogo entre Graciliano e sua esposa, Nélson Pereira entra na boca de sua personagem e diz à Heloísa e ao espectador : “pare com essa tortura!” (“sai pra lá, sentimentalismo!”, diz Nélson).
“Ainda bem que me verei livre dessa prisão!”, diz o protagonista, e ele está indo justamente para a prisão. Essa é a ironia (no sentido de contraste que parece um escárnio) do destino da personagem. E ele vai esperar os oficiais; e quando eles aparecem, já o encontram de malas prontas: “vocês demoraram...”
6) Na transição casa-presídio-segundo presídio, Nélson usa o humor, a irreverência e a ironia, num filme que vai ficar mais pesado depois, aparecendo, nesse percurso o uso da gradação. Há a personagem Mota, há depois o português que imita uma galinha, há a personagem Soares: “Senhores! Estejam à vontade! Vão ter aqui o que sempre a burguesia deu ao proletariado! Muita merda, muito mijo e uma comida filha-da-puta de ruim!”; aí entra em cena o Nildo Parente com um comportamento burguês dizendo: “eu sou o presidente da aliança!” e “quer vender a sua rede?”, essa última frase ele diz pra um figurante que estava deitado numa rede, a primeira ele diz pra Soares. Uma ironia interessante. Tem mais: o “capanga” de Nildo Parente coça o saco; e essa caracterização da personagem interpretada por Nildo como burguês fica mais clara ainda quando ele diz que mandou buscar uma comida na primeira classe e Soares cospe, em sinal de desprezo.
7) “Será longa a nossa luta contra o imperialismo e o latifúndio! Mas venceremos!”, diz Mota. O ano de realização do filme é 1984 e o filme é ambientado nos anos 30, portanto é como se Nélson dissesse: “a luta continuou depois disso, nós não vencemos e ela continua agora!”
8) A deportação de Olga Benário Prestes e de Elisa. Nesse momento, fica bastante clara a ingenuidade e a ilusão (importante pra eles) dos presos, estes achando que teriam poder pra negociar com os poderosos. Aparece aí, o uso da inversão lógica, pois o diretor dá às presas (sim, havia mulheres no presídio) um tempo pra pensar em sua proposta (duas detentas poderiam acompanhar Olga e Elisa, como se isso garantisse a não-deportação delas...) e depois de dizer isso, aparecem os guardas batendo nas mulheres, levando as duas presas embora e afugentando os presos do sexo masculino. Depois disso, vemos a rádio libertadora (rádio criada pelos presidiários, na base da voz e hino da internacional cantado no gogó) quase sem conseguir falar, refletindo todo o desânimo da moçada. O português, sentindo esse desânimo, resolve recitar um poema e todos, apesar de não gostarem de suas irreverentes brincadeiras, aplaudem.
9) Nesse primeiro presídio, depois de muita solidariedade, começam os conflitos entre os presos. Isso é desencadeado pela chegada dos militares (presos) revoltosos: o espanhol não quer mais dar suas conferências sobre política, Emanoel (Nildo Parente), não quer pegar o prato de comida para Ramos e numa cena posterior aparece dizendo: “aqui está o prato que você me pediu”**, o militar, que diz que vai trocar a sobremesa pra Ramos e depois não troca**...
**inversões lógicas. Em ambas as situações, Ramos se enfurece com as inversões, que concientemente (o militar) ou inconscientemente (Emanoel) fazem seus algozes naquele momento. Para o militar, diz: “enfia a banana no cu, fascista!”; já para Emanoel, a resposta vêm com o prato jogado no chão. Depois que Graciliano faz isso, Emanoel comenta: “alma de usineiro!”, fala que mostra a projeção (esta, ocorre quando alguém atribui à outra pessoa uma coisa que, na verdade, é um atributo da pessoa que disse essa coisa) dessa personagem: como ficou provado pelas cenas anteriores, quem tem alma de usineiro é ele, Emanoel.
10) Emanoel: “eu só queria saber por que é que eu estou preso. Por que é que eu estou preso?” Nessas declarações injuriadas de Emanoel, parece que temos aí, um erro de roteiro, mas só parece. Por que a impressão de erro e por que, na verdade, ele não ocorre? Por que numa cena lá atrás, esse personagem falou que era presidente da aliança. Que aliança, seria essa? Está claro que ele se refere à ANL, aliança ampla que compreendia burgueses como Emanoel, intelectuais como Ramos (apesar deste não ser formalmente vinculado à ANL, suas atitudes o vinculavam a esse movimento, tanto que foi preso), pessoas mais simples como Soares e comunistas convictos. O erro parece vir da seguinte pergunta: como é que ele pode fazer uma pergunta dessas (perguntar “por que é que eu estou preso?”) se ele é presidente da aliança? Porque, naquele momento (no navio), isso pra ele era uma grife, era motivo de orgulho. Já no segundo presídio, diante das dificuldades que se apresentam, ele muda de posição e nega ser um “comunista”, atacando Ramos e fazendo a pergunta citada.
11)O discurso hipócrita do diretor do presídio da Ilha Grande (Nélson Dantas), durante a constrangedora festa de aniversário dele: “vocês são meus hóspedes”. Aí, temos de novo a presença da inversão lógica, é quando o capataz do diretor diz a cada um dos presos: “descruze os braços!”. Eles descruzam e imediatamente depois cruzam de novo, demonstrando revolta. Ainda que tímida, mas, uma revolta, a revolta que eles podiam demonstrar naquele momento.
12)Uma sequência forte, boa e que caracteriza bem como o filme é mais pesado em sua metade final: o caso da cama, que graciliano compra de Gaúcho (Wilson Grey). Depois, Soares se aproxima e diz que há outros companheiros mais necessitados que precisam da cama. Ramos, inicialmente, lhe diz que vai ceder a cama, mas como Soares continua falando e lhe enchendo a paciência dizendo, inclusive, que não está pedindo por ele, Soares, mas sim pra outros companheiros e que Ramos está tendo um comportamento burguês, o escritor se enche e diz, raivoso: “essa cama é minha! Eu sou um proprietário!”
13) Ramos diz ao diretor que vai contar à todos, por meio de seu livro, o que acontece naquele presídio. Esse ato dele, pode ser classificado como um erro de estratégia, pois ele diz isso e acaba ficando sem os textos que ele escreveu ao longo do tempo que ficou na prisão. Não é uma falha de roteiro, claro, mas é uma falha da personagem (a do filme e a histórica) Ramos, quer dizer faltou aquele tradicional “boca fechada não entra mosquito”.
Um filme que emocionou muita gente e continua emocionando. Por quê isso? O filme, ao mesmo tempo que surpreende e cativa o espectador com a inversão lógica, com o humor, a ironia, a antítese, toca em pontos muito importantes da vida brasileira, de uma maneira que não pretende ser neutra (apesar da direção sutil, com poucos movimentos de câmera), o que contribui para o envolvimento, fazendo dele muito mais que um filme sobre um passado longínquo. Que pontos seriam esses? A ditadura, que marcou a geração que o filme enfoca e as seguintes, que tiveram que conviver com um regime militar opressor (esta, atingiu seu auge no governo Médici) durante um bom tempo e deixou marcas profundas na vida das pessoas envolvidas na luta contra ela, o conflito de classes, a precariedade do sistema carcerário, o papel do intelectual na sociedade, a inserção do Brasil na política mundial; todos esses assuntos são abordados e bem amarrados pelo roteiro, que não se perde em momento algum, fazendo desse um filme complexo mas que não têm ponto de vista neutro ou que aparenta ser neutro. Tudo isso contribui para o envolvimento emocional de quem viveu a época (em 1984, muitas pessoas que viveram esse período estavam vivas) e também de quem não viveu.
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