sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A OBRA-PRIMA DRAMÁTICA

Podemos ou não concordar com os argumentos do autor deste texto, é claro, mas é interessante ler.


A Obra-prima Dramática

Murilo Dias César

10/6/2002

Os dez mandamentos para se criar uma obra-prima dramática

Como autor e professor de dramaturgia teatral e cinematográfica, recebo com relativa freqüência trabalhos de colegas autores e ex-alunos que me solicitam uma avaliação sobre suas obras. Se por um lado, esse tipo de solicitação me lisonjeia, por outro, cria-me sérios problemas. Como dizer ao colega autor, sem magoá-lo, de forma diplomática mas sincera, que aquela sua peça de teatro ou seu roteiro cinematográfico é, com o perdão da palavra, ruim? Ou então, medíocre?

Mas o problema de avaliar uma obra dramática é bem mais complexo e está longe de se resumir à fórmula "texto medíocre é medíocre, texto ruim é ruim"… A leitura de um bom texto dramático de um colega causa-me maior frustração do que a leitura de um texto ruim. Tento explicar: um texto ruim, regra geral, não tem salvação; um texto medíocre pode ser melhorado, mas e o texto bom? O autor de um texto bom, salvo raras exceções, conforma-se com o bom texto que escreveu e ponto final. É aí que surge o grande problema: um texto bom pode e deve sempre ser transformado num texto melhor ainda, num grande texto e até mesmo numa obra prima… Então, por que nós, autores, temos de nos conformar apenas com o nosso bom e, mesmo, com nosso ótimo texto? Por que não ousamos ir mais além, procurando fazer com que nosso trabalho atinja suas possibilidades máximas de qualidade e beleza estéticas? Por que não procuramos fazer como aqueles alpinistas que tentam chegar ao ponto mais alto do Himalaia? Numa palavra, por que não podemos ter como meta de nossa arte e até de nossa vida, como nosso último e definitivo objetivo, escrever pelo menos uma obra-prima?

Voltemos à imagem do alpinista atingindo o Himalaia. Já que outros chegaram ao seu cume, o alpinista tem a vantagem de contar com um roteiro ou um mapa que lhe indique o caminho. O mesmo acontece com autores dramáticos. Outros escritores, sem dúvida melhores que nós, escreveram obras-primas. Assim, temos um referencial, um "mapa da mina", um "caminho das pedras" para, árdua e pacientemente, atingirmos o pico do nosso Himalaia. Autores, ensaístas e críticos já desenharam esse mapa, esse caminho das pedras… Em outras palavras, já definiram o que seja — ou o que imaginam ser — uma obra-prima. Assim como Moisés recebeu o decálogo (e fez o povo cumpri-lo a ferro e a fogo), os ditos escritores, ensaístas e críticos estabeleceram os dez seguintes "mandamentos" que toda obra dramática para ser considerada como "obra-prima" deve conter ou obedecer. Antes de apresentá-los, deixemos claro que tais mandamentos são, em regra, específicos para a nossa arte.

1º Mandamento: A obra dramática tem que conseguir captar um momento extremamente significativo na história de um povo, de um país, de uma região, de uma cidade, de uma aldeia, de um ser humano… Esse "momento significativo" deve estar, de algum modo, em sintonia com aquilo que ocorre no mundo.

2º Mandamento: A obra dramática terá necessariamente de estudar, ou melhor, refletir sobre um ou alguns dos grandes "problemas" da humanidade e do ser humano.

3º Mandamento: Apresentará um equilíbrio quase perfeito entre horizontalidade e verticalidade, ou seja, entre um excelente conteúdo e uma excelente forma. O "quase perfeito" vai por conta do fato de que a perfeição em arte, não existe.

4º Mandamento: Profunda identificação da obra de arte dramática com o leitor ou espectador. Em outras palavras, a obra não se esgota em si mesma, levando-nos para muito além dela mesma, fazendo-nos refletir sobre algo mais importante que a própria arte: a vida.

5º Mandamento: Trazer, de algum modo, uma revelação. Ou seja, "revelar" ao leitor ou espectador, de um modo aguçado e crítico, uma face ou mais faces de si próprio, da vida ou da sociedade de que ele não tinha consciência.

6º Mandamento: Perenidade. Uma obra-prima resiste às inovações, aos avanços tecnológicos, às mudanças sociais, culturais e filosóficas, ou seja, resiste ao tempo porque está muito além dele.

7º Mandamento: A obra-prima provoca uma revolução em determinada área artística, podendo ou não criar uma nova "escola". Ou seja, depois dessa obra, a arte que ela "revoluciona" passa por uma transformação e nunca mais será a mesma.

8º Mandamento: A obra captará, de algum modo, na feliz expressão de Émile Zolà, "um momento da consciência humana" e trará dentro de si o espírito, ou melhor, a essência das palavras do poeta e filósofo inglês John Donne: "Nenhum homem é uma ilha. Por isso nunca perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram por ti."

9º Mandamento: A obra dramática tem de ser crítica, assentar suas raízes na vivência e na história de um povo e se opor ao poder e aos poderosos.

10º Mandamento: a obra dramática não pode ser estática, "descrever" ou "refletir" sobre a história e a vida, mas, sim, essencialmente dinâmica, ou seja, ao refletir sobre a história e a vida, tem que dar sua contribuição para transformá-las.

Eis, portanto, o "decálogo", o "caminho das pedras", o instrumental de que o escritor necessita para atingir as culminâncias do Himalaia da escrita dramática, ou seja, para criar a sua obra-prima.

Alguém aí se candidata?

Murilo Dias César é formado em Educação Física, cursou Letras e Direção de Teatro. Além de autor, é professor de roteiro de teatro, cinema e televisão. É presidente da APART - Associação Paulista de Autores Teatrais.

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