quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O QUE É O MITO( 3 )

                                            O Negrinho do Pastoreio, mito brasileiro

“SUCEDE POR VEZES, MUITO RARAMENTE, PODERMOS TESTEMUNHAR A TRANSFORMAÇÃO DE UM ACONTECIMENTO EM MITO. POUCO ANTES DA ÚLTIMA GUERRA, O ETNÓGRAFO ROMENO CONSTANTIN BRAILOIU TEVE OCASIÃO DE REGISTRAR UMA ADMIRÁVEL BALADA NUMA ALDEIA DE MARAMURESH. TRATAVA-SE DE UM AMOR TRÁGICO; O NOIVO FORA ENFEITIÇADO POR UMA FADA DAS MONTANHAS E, ALGUNS DIAS ANTES DO CASAMENTO, ESSA FADA CIUMENTA ATIRARA-O DO ALTO DE UM ROCHEDO. NO DIA SEGUINTE, UNS PASTORES ENCONTRARAM O CORPO E, NUMA ÁRVORE, O CHAPÉU. TROUXERAM O CORPO PARA A ALDEIA E A NOIVA APROXIMOU-SE: AO VER O NOIVO INANIMADO, ENTOOU UM LAMENTO FÚNEBRE CHEIO DE ALUSÕES MITOLÓGICAS, TEXTO LITÚRGICO DE UMA BELEZA RUDE. ESTA ERA A HISTÓRIA DA BALADA. AO REGISTRAR AS VARIANTES QUE CONSEGUIU OBTER, O ETNÓGRAFO PROCUROU INFORMAR-SE DA ÉPOCA EM QUE A TRAGÉDIA OCORRERA: RESPONDERAM-LHE QUE SE TRATAVA DE UMA HISTÓRIA MUITO ANTIGA, QUE SE PASSARA “HÁ MUITO TEMPO”. MAS, AO PROSSEGUIR A SUA INVESTIGAÇÃO, O ETNÓGRAFO APUROU QUE O ACONTECIMENTO SE PASSARA HÁ APENAS QUARENTA ANOS. ACABOU MESMO POR DESCOBRIR QUE A HEROÍNA AINDA ERA VIVA. FOI VISITÁ-LA E OUVIU A HISTÓRIA DA SUA PRÓPRIA BOCA. TRATAVA-SE DE UM DRAMA BASTANTE VULGAR: POR DESCUIDO, O NOIVO ESCORREGARA NUM PRECIPÍCIO, NÃO TENDO MORRIDO IMEDIATAMENTE; OS SEUS GRITOS FORAM OUVIDOS PELOS MONTANHESES, QUE O TRANSPORTARAM PARA A ALDEIA, ONDE VEIO A MORRER POUCO DEPOIS. NO ENTERRO, A NOIVA E AS OUTRAS MULHERES DA ALDEIA REPETIRAM AS HABITUAIS LAMENTAÇÕES RITUAIS, SEM FAZER QUALQUER ALUSÃO À FADA DAS MONTANHAS.


ASSIM, APESAR DA PRESENÇA DA PRINCIPAL TESTEMUNHA, BASTARAM ALGUNS ANOS PARA DESPOJAR O ACONTECIMENTO DE QUALQUER VERDADE HISTÓRICA E O TRANSFORMAR NUMA LENDA: A FADA CIUMENTA, O ASSASSINATO DO NOIVO, A DESCOBERTA DO CORPO, O LAMENTO DA NOIVA, CHEIO DE TEMAS MITOLÓGICOS. QUASE TODA A ALDEIA ERA CONTEMPORÂNEA DO FATO AUTÊNTICO, HISTÓRICO; MAS ESSE FATO, EM SI, ERA INSUFICIENTE: A MORTE TRÁGICA DE UM NOIVO NA VÉSPERA DO CASAMENTO SIGNIFICAVA MAIS DO QUE UMA SIMPLES MORTE ACIDENTAL; ERA UMA MORTE COM UM SIGNIFICADO OCULTO, QUE SÓ PODIA SER REVELADO UMA VEZ INTEGRADO NA CATEGORIA MÍTICA. A MITIFICAÇÃO DO ACIDENTE NÃO SE LIMITOU À CRIAÇÃO DE UMA BALADA; FALAVA-SE DA FADA CIUMENTA MESMO EM CONVERSAS VULGARES, “PROSAICAS”, SOBRE A MORTE DO NOIVO. QUANDO O ETNÓGRAFO CHAMOU A ATENÇÃO DOS ALDEÃOS PARA A VERSÃO AUTÊNTICA, RESPONDERAM QUE A VELHA JÁ TINHA ESQUECIDO, QUE O DESGOSTO A TINHA TORNADO QUASE LOUCA. O MITO É QUE FALAVA A VERDADE: A VERDADEIRA HISTÓRIA JÁ ERA POUCO MAIS DO QUE MENTIRA. O MITO TORNAVA-SE MAIS VERDADEIRO NA MEDIDA EM QUE CONFERIA À HISTÓRIA UM SENTIDO MAIS PROFUNDO E RICO: ELE REVELAVA UM DESTINO TRÁGICO.” - Mircea Eliade, “O Mito do Eterno Retorno”


O TEMPO DO SONHO(AUSTRÁLIA)


No começo a Terra era uma planície nua. Tudo era escuro. Não havia vida nem morte. O sol, a lua e as estrelas dormiam embaixo da terra. Todos os ancestrais eternos também dormiam, até que eles acordaram de sua própria eternidade e saíram à superfície.

Quando os ancestrais eternos se levantaram, vagaram pela terra, às vezes sob a forma de animais – como cangurus, emas ou lagartos - , às vezes com forma humana, às vezes meio animal e meio humano, às vezes meio humano e meio planta.

Dois desses seres, autocriados a partir do nada eram os Ungambikula. Vagando pelo mundo, encontraram pessoas feitas pela metade. Tinham sido criadas a partir de animais e plantas, mas não passavam de montes informes, jogados e amontoados perto do local onde poços de água e lagos salgados podiam ser feitos. Essas pessoas estavam todas emboladas, sem membros ou rostos.

Com suas grandes facas de pedra, os Ungambikula esculpiram cabeças, corpos, pernas e braços. Fizeram os rostos, as mãos e os pés. E finalmente os seres humanos foram terminados. Cada homem ou mulher foi feito a partir de uma planta ou animal, e, cada pessoa deve fidelidade ao totem do animal ou da planta do qual foram feitos – a ameixeira, a semente do pasto, os pequenos e grandes lagartos, o papagaio, o rato.

Quando terminaram seu trabalho sagrado, os ancestrais voltaram a dormir. Alguns voltaram para suas casas subterrâneas, outros se transformaram em rochedos ou árvores.

Os caminhos percorridos pelos ancestrais são caminhos sagrados. Em cada lugar por onde o ancestral passou, deixou o traço sagrado de sua presença – um rochedo, um poço, uma árvore.

Pois o Tempo do Sonho não está somente no passado, pois é o eterno Agora. Entre cada batida do coração, o Tempo do Sonho pode voltar.


O SUOR DE SUA TESTA(SÉRVIO)


No começo não havia nada a não ser Deus, e Deus dormia e sonhava.
Por muitas eras, Deus sonhou. Mas finalmente despertou.
Deus olhou ao redor de si, e cada olhar se transformou numa estrela.
Deus ficou maravilhado.Começou a viajar, para ver o universo que criara.Viajou e viajou, mas onde quer que chegasse, não havia fim nem limite.
Finalmente chegou à terra.
Estava cansado e o suor escorria por sua testa.
Uma gota caiu no chão e criou vida; assim foi feito o primeiro homem.
Ele é parente de Deus, mas não foi criado para o prazer.
Foi produzido com o suor e, desde o começo,
foi condenado a uma vida de labores.

CONTO DO DISFARCE (ÁFRICA OCIDENTAL)

Um dia, Exu* vinha caminhando por uma trilha entre dois campos. Ele viu, em cada um dos campos, um fazendeiro trabalhando e resolveu fazer uma brincadeira com eles. Pegou um chapéu vermelho de um lado, branco do outro, verde na frente e preto atrás; assim, quando os dois fazendeiros amigos voltaram para casa e um deles disse: “Você viu o velho que passou hoje de chapéu branco?”, o outro replicou: “Ora, mas o chapéu era vermelho”. O primeiro retorquiu: “Nada disso, era branco”. “Mas era vermelho”, insistiu o amigo, “eu o vi com meus próprios olhos.” “Bem, você deve estar cego”, declarou o primeiro. “Você deve estar bêbado”, afirmou o outro. E assim a discussão continuou e os dois chegaram às vias de fato. Quando começaram a se ferir, foram levados pelos vizinhos para serem julgados. Exu estava entre a multidão na hora do julgamento e, quando o juiz já não sabia o que fazer, o velho trapaceiro se revelou, disse o que fizera e mostrou o chapéu. “Eles só podiam mesmo brigar”, disse ele. “Eu queria que isso acontecesse. Criar confusão é o que eu mais gosto.”

*Divindade da discórdia


A ÁRVORE DA VIDA(NÓRDICO)

ODIN, o PAI DE TUDO, às vezes passeava por Midgard, a terra do meio, entre os homens. Ia disfarçado de velho, apoiado numa bengala, e retribuía a gentileza com riquezas, cortesia com sabedoria, e o mau trato com vingança. A cada manhã seus dois corvos, Huginn e Munnin, voavam pelo mundo, lhe trazendo notícias da humanidade. O próprio Odin podia mudar sua aparência, e viajava sob forma de pássaro ou animal. Contam-se muitas histórias sobre como o Pai de Tudo conseguiu sua grande sabedoria e poderes mágicos. Para cada conquista houve um preço a pagar.

A Árvore do Mundo, Yggdrasil, é um freixo gigante que se eleva por cima do mundo. Uma raiz está no horrível mundo de Niflheim, onde a serpente Nidhogg se alimenta dos cadáveres, e morde a própria Yggdrasil. Uma Segunda raiz está no reino divino de Asgard, e lá moram as Norns, três velhas que governam o destino dos homens. Seus nomes são: Destino, Ser e Necessidade, e elas mantêm Yggdrasil viva, regando a raiz com a água pura da fonte do destino. A terceira raiz está em Jotunheim, a terra dos gigantes. Por baixo dessa raiz está a fonte, onde a cabeça cortada de Mimir diz palavras duras. Odin pagou com um de seus olhos para beber percepção e conhecimento dessa fonte. Mas foi da própria Yggdrasil que o Altíssimo, o Pai de Tudo, o Encapuzado, o terrível lanceiro, Odin de muitos nomes, obteve o segredo das runas, símbolos mágicos com os quais os homens podem registrar e compreender suas vidas. Durante nove longas noites Odin ficou pendurado na árvore açoitada do vento, vazado por uma lança, oferecendo a si mesmo como sacrifício. Nem mesmo Ratatosk, o esquilo que sobe e desce a árvore transmitindo insultos da águia, no topo, para a serpente Nidhogg, no fundo, ofereceu-lhe comida ou bebida. No final de seu sofrimento, Odin soltou um enorme grito e, agarrando as runas, caiu da árvore.

Quando levantou-se da morte, Odin sabia de muitas coisas escondidas do homem. Sabia como curar os doentes, sabia como cegar a espada de seus inimigos e como agarrar uma flecha em pleno vôo. Deus dos deuses, deus das batalhas, Odin cuida da humanidade. Aos poetas ele dá goles do orvalho da poesia, fermentando há tempos pelos anões; aos guerreiros mortos em batalha, ele oferece uma recepção suntuosa nos salões dourados de Valhalla.


LOKI, O TRAPACEIRO(NÓRDICO)

Os deuses nórdicos estavam com problemas no alto reino de Asgard. A casa onde moravam não tinha muros para protegê-la dos inimigos. Assim, quando um cavaleiro passou e se ofereceu para construir um muro, eles escutaram com atenção.

"Será um grande muro", ele disse, "uma barreira para todos os inimigos. De hoje a dezoito meses, todas as suas preocupações se acabarão".

"E qual é seu preço?", perguntou Odin, o sábio.

"Nada menos que a deusa Freyja como esposa", respondeu o estrangeiro. "E o sol e a lua também".

Os deuses ficaram furiosos e quiseram expulsar de Asgard o homem que tinha ousado pensar que a bela Freyja poderia ser negociada Mas o esperto Loki disse: "Se você puder construir o muro em seis meses, o negócio está fechado!”. Aos outros deuses, sussurrou: "Em seis meses, ele só construirá meio muro, mas pelo menos essa parte será de graça." O homem olhou Freyja mais uma vez, enquanto ela chorava lágrimas de ouro, e concordou, se seu cavalo pudesse ajudá-lo.

Durante todo o inverno o estrangeiro trabalhou. Com ajuda de seu cavalo, ele conseguiu juntar pedras para um muro maciço em volta de Asgard. Quando o verão se aproximou, o desastre esperava pelos deuses. Pois, contra todos os prognósticos, o construtor tinha quase terminado o muro.

"Você se julga tão esperto, Loki", disse Odin. "Você nos meteu nisso; agora você tem que nos tirar disso. Não podemos deixar Freyja se casar com este estrangeiro, que pode ser um gigante disfarçado. E, sem o sol e a lua, a vida não valerá a pena. Faça alguma coisa!"

Loki pensou muito e disse: "Sem o cavalo o construtor não poderá trazer as pedras que faltam." Como Loki era capaz de se transformar, naquela noite ele se disfarçou em uma bela égua e atraiu para longe o cavalo do estrangeiro. Vendo que não poderia terminar o muro no prazo, o construtor ficou furioso. Seu disfarce caiu, revelando que ele era um gigante, um dos inimigos dos deuses. Os deuses chamaram Thor, o mais forte deles. Com seu martelo, Miollnir, Thor pagou ao construtor seu salário: não com o sol nem com a lua, mas com um tremendo golpe na cabeça. Quanto a Loki, quando achou que seria seguro voltar a Asgard, ele chegou com um cavalo de oito patas, cujo nome era Sleipnir. Loki deu Sleipnir para Odin, dizendo: "Nenhum cavalo jamais poderá competir com este. Ele o levará através dos mares e do ar, e para a terra dos mortos e de lá de volta." Como Loki prometeu, Sleipnir nunca falhou com seu novo senhor, Odin.

Mas nem todos os descendentes de Loki são como Sleipnir. Loki é meio gigante e tem três filhos com uma giganta. O primeiro é Fenris-lobo, que no fim do mundo irá devorar Odin. O segundo é a serpente Midgard, e a terceira é a senhora da morte, Hel, que festeja com a fome e se alegra com a doença.

Quando Odin viu que essas terríveis crianças estavam soltas no mundo, fez com que viessem até ele. A serpente ele jogou no oceano; ela era tão grande que circundou o mundo e mordeu seu próprio rabo. Hel, ele expulsou para Niflheim, a Terra dos Mortos, e lhe deu poder sobre tudo que morre de doença ou de velhice.

Mas o Fenris-lobo não era fácil de controlar. Só o deus Tyr era suficientemente corajoso para alimentá-lo, e até ele podia ver que o Fenris-lobo logo ficaria forte o bastante, para fazer muito mal. Assim, os deuses fizeram uma corrente muito forte e o prenderam com ela. Mas com uma patada ele partiu a corrente. Eles tentaram outra vez com uma corrente ainda mais forte. E outra vez o lobo se soltou. Odin pediu ajuda aos anões, e eles fizeram o grilhão chamado Gleipnir. Macio como seda, Gleipnir era feito de ingredientes especiais: o som de um passo de gato; uma barba de mulher; as raízes de uma montanha; os tendões de um urso; a respiração de um peixe; e o cuspe de um pássaro. Os deuses levaram o Fenris-lobo para uma ilha deserta e o desafiaram a quebrar Gleipnir. Percebendo a armadilha, o lobo concordou em ser amarrado só se um dos deuses pusesse uma mão em sua boca, como sinal de boa fé. Assim, o bravo Tyr enfiou sua mão entre as mandíbulas do terrível lobo.

Eles amarraram o lobo com os grilhões macios mas, dessa vez, quando ele esperneou o grilhão apenas se apertou mais. Furioso, o Fenris-lobo fechou suas enormes mandíbulas e decepou a mão direita do deus Tyr.

Mesmo sabendo que chegaria o tempo em que o Fenris-lobo se libertaria e traria morte e destruição a todos eles, os deuses não o mataram.

"O que tem de ser, será", disseram.

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