quinta-feira, 19 de agosto de 2010

CRÍTICA DO FILME "TERRA EM TRANSE"( ATENÇÃO: SPOILERS )

Terra em Transe, de Glauber Rocha


Por Jorge Lobo

“Impossível Grandeza". Essas palavras, ditas pela personagem Paulo Martins, protagonista do filme de Glauber, resumem o filme, considerado um dos ícones máximos, se não o máximo representante do cinema novo.Outra referência a essa impossível grandeza é a tomada aérea do começo da película, a nos mostrar a imensidão do mar e nos preparar para o que virá a seguir: o pensamento confuso, contraditório, complexo, enfim, da personagem Paulo e do cineasta Glauber Rocha.

O filme é propositalmente confuso e complexo.Não era intenção do cineasta tornar as coisas fáceis para o espectador e, fazendo isso, Rocha legou um filme de difícil digestão, quando podia ter feito um filme mais linear e também belo como sua obra anterior, Deus e o Diabo na Terra do sol, que aliás, terminava mostrando a imensidão do mar.A consistência do filme é garantida pelo domínio da técnica cinematográfica(enquadramentos, fotografia, mise em scene), da trilha musical( variada e que também expressa a complexidade, trazendo o jazz, o samba, a música clássica e a mpb), pelo desempenho dos atores e pelo roteiro, que, como já foi dito, expressa uma visão complexa.É claro que o filme não é perfeito, mas existem poucas restrições que se podem fazer.Uma delas, é a movimentação dos atores Jardel Filho e Paulo Autran na cena em que os dois brigam, briga mal encenada onde vemos Jardel bater em Autran sem nem ao menos encostar nele.Outra, é o som do filme.Fica difícil, muitas vezes, ouvir o que as personagens estão dizendo, ainda mais quando a música é colocada junto com as falas. Esse problema do som, que foi menosprezado, segundo a crítica, pelo pessoal do “udigrudi”, designação pejorativa criada por Glauber para definir a essência do movimento marginal capitaneado por Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, aparece em outros filmes feitos nessa época e prejudica a fluidez do filme.

A alegoria do Brasil é evidente.O cineasta situa a ação no fictício país Eldorado e mostra a idealista personagem de Paulo Martins às voltas com problemas de consciência e em luta contra conceitos e práticas arraigadas em nosso país como a corrupção, o coronelismo, o populismo, a religiosidade, a alienação e a ingenuidade do povo.Paulo, poeta e jornalista, quer mudar as estruturas e pensa encontrar em Vieira(José Lewgoy) um líder político forte e capaz de romper com a politicagem, mas o próprio Paulo acaba caindo na armadilha populista de Vieira, personagem comprometida com as estruturas vigentes e que hesita em romper com elas. A tentativa de associar Vieira a João Goulart aparece logo no começo, quando Vieira diz que quer evitar o derramamento de sangue, mesma posição de Goulart na época do golpe militar de 1964.Julio Fuentes (Paulo Gracindo) é outra personagem interessante.Oportunista até a medula, sua busca pelo dinheiro e pelo poder inicialmente o leva a auxiliar Paulo, lhe dando plenos poderes para difamar a personagem de Diaz(Paulo Autran), mas não resiste à oferta tentadora desse mesmo Diaz, que lhe oferece dinheiro e poder para trair Paulo.Paulo, personagem emblemática do intelectual brasileiro, é um poeta e um idealista cujos sonhos não o impedem de sentir raiva de si mesmo e de optar, muitas vezes, por uma atitude autodestrutiva.Sua visão poética é incompatível com o tipo de comportamento das pessoas em quem ele insiste em confiar e sua decepção é inevitável.Paulo é uma personagem tão cheia de inquietações e dúvidas que chega a sentir remorso por ter feito a campanha difamatória contra Diaz.É certo que Diaz era praticamente um padrinho, um pai pra ele, mas é certo também que Diaz simboliza as práticas mais torpes da política e da elite brasileiras.

Glauber faz um aceno à luta armada(prática vigente na época) ao mostrar a sedutora personagem de Paulo disposta a resistir até o fim mas logo transforma esse aceno em adeus ao mostrar a morte de Paulo, cena que mostra a fraqueza de um idealismo que encontrou pouquíssimo apoio das classes mais baixas diante de poderes muito mais fortes e arraigados que qualquer idealismo.A visão crítica de Glauber permeia o filme todo mas sua visão nada condescendente com o povo, isto é, as classes mais baixas, aparece explicitamente quando a voz é dada à personagens que simbolizam o povo, mostrando esse povo como imbecil e ignorante. Aí está, de novo, a “impossível grandeza” de Terra em Transe, tendo em vista que ele não hesita em externar seu pensamento de forma explícita.Se Glauber pecou, foi pelo excesso, mas nunca pela falta.

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