segunda-feira, 27 de setembro de 2010

ANÁLISE INTERPRETATIVA DO FILME "UMA LIÇÃO DE TANGO"( ATENÇÃO: SPOILERS )



UMA LIÇÃO DE TANGO( "THE TANGO LESSON" )

POR JORGE LOBO

FILME ESCRITO E DIRIGIDO POR SALLY POTTER

O FILME é composto de 12 aulas mais a introdução

INTRODUÇÃO

1)A MOÇA LIMPA UMA MESA E COMEÇA A ESCREVER(IMAGENS DE SEU FILME SE ALTERNAM COM A IMAGEM DELA ESCREVENDO – O FILME APRESENTA 1 DOS PROTAGONISTAS( PROTAGONISTA MAIOR).

*O FILME FAZ UMA DIVISÃO CLARA(COLORIDO X PRETO E BRANCO) ENTRE O QUE A PERSONAGEM ROTEIRISTA IMAGINA E A “REALIDADE”, DEIXANDO AS FRONTEIRAS CLARAS PARA O ESPECTADOR. ASSIM, TODA VEZ QUE A ROTEIRISTA ESTÁ IMAGINANDO AS CENAS DO SEU FILME, ESSAS CENAS SÃO MOSTRADAS EM CORES E TODA VEZ QUE A “REALIDADE” ESTÁ EM FOCO, ESSA “REALIDADE” É MOSTRADA EM PB.

2)ELA VÊ UM ESPETÁCULO DE DANÇA DE TANGO

APRESENTAÇÃO DA OUTRA PROTAGONISTA(PROTAGONISTA MENOR) - OBS: O FILME PRATICAMENTE SÓ ENFOCA 2 PERSONAGENS

·CONTINUA A INFORMAR SOBRE O QUE VAI SER O FILME

3)CONVERSA ENTRE AS 2 PERSONAGENS(CONTINUA A APRESENTAR O ASSUNTO DO FILME )

*A INTRODUÇÃO INFORMA SOBRE O QUE VAI SER O FILME, INFORMANDO MAIS, DE FORMA EXPLÍCITA, NO ENTANTO, SOBRE OS ASSUNTOS(CINEMA E TANGO, ENCONTRO AMOROSO E PROFISSIONAL ENTRE OS PROTAGONISTAS) DO QUE SOBRE TEMÁTICA. APESAR DISSO, EXISTE REFERÊNCIA TEMÁTICA, EMBORA DISFARÇADA(O ESTILISTA SEM PERNAS, OS ATENTADOS `AS SUAS MODELOS - A FALTA DE RAÍZES, A QUESTÃO DA DIFERENÇA, A MORTE DE MODELOS INTERIORES DA PROTAGONISTA, QUER DIZER, SUA MANEIRA DE ENCARAR O MUNDO). A DIRETORA JÁ COLOCA UM ENIGMA PARA O ESPECTADOR REFLETIR, PROCESSAR EM SUA MENTE, EMBORA NÃO O FAÇA DE FORMA EXPLÍCITA: O QUE QUER DIZER ISSO? UM ESTILISTA SEM PERNAS, ESSAS MODELOS MORRENDO?

*A INTRODUÇÃO CUMPRE BEM SUA FUNÇÃO SEGUINDO UMA LINHA DE INTRODUÇÃO EM QUE A AMBIÇÃO É APRESENTAR TEMAS E PERSONAGENS DANDO INFORMAÇÕES QUE DÃO UMA AMOSTRA DO CONTEÚDO DO RESTANTE DO FILME.

PRIMEIRA AULA:

-OS 2 SE ENCONTRAM PARA A PRIMEIRA AULA DA MOÇA.

SEGUNDA AULA

-ELA VAI PARA O SALÃO DE DANÇA E DEPOIS PENSA SOBRE O ROTEIRO
-APARECE UMA RACHADURA NO PISO(ELEMENTO SIMBÓLICO)

TERCEIRA AULA

- O PISO ESTÁ RUIM

ACREDITO QUE O PRETEXTO PARA A VIAGEM DA PERSONAGEM NÃO SEJA MUITO CONVINCENTE, APESAR DE SEMPRE PODER EXISTIR A JUSTIFICATIVA DO ELEMENTO SIMBÓLICO(A METÁFORA DA RECONSTRUÇÃO).NO CASO, ESSE ELEMENTO É UM POUCO FORÇADO, TENDO-SE EM VISTA A DISCUTÍVEL PLAUSIBILIDADE EXISTENTE NO FATO DA PERSONAGEM VIAJAR POR CAUSA DISSO:
O ARAUTO, UMA ESPÉCIE DE PEDREIRO(O FILME NÃO EXPLICA QUEM É ), PERGUNTA SE ELA PODE VIAJAR POR ALGUMAS SEMANAS.

-ELA ESTÁ EM BUENOS AIRES, COMPRA SAPATOS E TEM AULAS COM 2 INSTRUTORES.

*PODE-SE COMPARAR OS SAPATOS DE SALLY COM OS APETRECHOS DE PERSEU(O CAPACETE DA INVISIBILIDADE, O ESCUDO), NECESSÁRIOS ‘A SUA JORNADA , COMO OS SAPATOS O SÃO PARA SALLY.

QUARTA AULA

VOLTA A TER AULA COM VERÓN, QUE LHE DIZ: “SABE DE UMA COISA? EU SEMPRE QUIS SER ATOR”
RESPOSTA: “EU SEMPRE QUIS SER DANÇARINA” E OS 2 DANÇAM EM UMA PAISAGEM DE CARTÃO POSTAL.
INTERSECÇÃO E ENCANTO ENTRE OS 2 PROTAGONISTAS

QUINTA E SEXTA AULAS

OS 2 CONVERSAM SOBRE ACASO E DESTINO, HÁ UMA DANÇA NA ESCADA ROLANTE E ELA VIAJA PARA HOLLYWOOD.

– O ESTILISTA NÃO TEM PERNAS

SALLY DIZ QUE DESISTIU DO FILME PORQUE ESCREVEU SOBRE UMA COISA QUE NÃO TEM VONTADE DE FILMAR, TALVEZ FILME SOBRE UMA COISA MAIS PESSOAL, COMO TANGO. ESSA AFIRMAÇÃO MARCA A TRANSIÇÃO, A TRANSFORMAÇÃO DA PERSONAGEM, POIS SUA MUDANÇA DE PROJETO ESTÁ COINCIDINDO COM SUA TRANSFORMAÇÃO PESSOAL. APESAR DA PROTAGONISTA AFIRMAR QUERER FILMAR ALGO MAIS PESSOAL, ESSA AFIRMAÇÃO É DISCUTÍVEL POIS ELA JÁ ESTAVA TRABALHANDO EM UM PROJETO PESSOAL(LER CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTRODUÇÃO E SOBRE A DÉCIMA SEGUNDA AULA), EMBORA SEU POSICIONAMENTO COM RELAÇÃO AO PROJETO ANTERIOR FOSSE MAIS AMARGO, POSIÇÃO QUE ,AGORA, ELA EVITA ASSUMIR - HÁ UM ELOGIO `A CAPACIDADE DE LIBERTAÇÃO DE AMARRAS PESSOAIS ATRAVÉS DA DANÇA. EXISTE, TAMBÉM,
UMA PERGUNTA INTERESSANTE, FEITA POR UM PRODUTOR DE HOLLYWOOD, QUE É JOGADA, DEIXADA NO AR PARA O ESPECTADOR : POR QUE O ESTILISTA NÃO TEM PERNAS? O ENIGMA DA INTRODUÇÃO É RETOMADO, AGORA DE FORMA MAIS EXPLÍCITA.

*O FILME COLOCA UMA DIALÉTICA INTERESSANTE ENTRE EXPERIÊNCIA PESSOAL E PROJETO ARTÍSTICO, NA MEDIDA EM QUE PROPÕE E MOSTRA A INTERSECÇÃO EXISTENTE ENTRE ESSAS EXPERIÊNCIAS, HAVENDO TAMBÉM, DE FORMA MAIS OU MENOS EXPLÍCITA, A VALORIZAÇÃO DESSA INTERSECÇÃO.

SÉTIMA AULA

ELES MARCAM ENCONTRO E ELE FALTA - COMEÇAM OS DESENTENDIMENTOS ENTRE OS DOIS, ELES CONVERSAM SOBRE REDEFINIÇÃO DE RELACIONAMENTO.

OITAVA AULA

DESENTENDIMENTOS CONTINUAM, EVOLUEM:
PABLO DIZ: “ISSO(A MISTURA ENTRE ASSUNTOS PESSOAIS E PROFISSIONAIS) PODE DESTRUIR TUDO”
ELE RESPONDE `A DISCRETA AGRESSÃO DE SALLY EM INGLÊS.

ELE PERGUNTA SE ELA ENTENDEU.
OS DESENTENDIMENTOS E A TEMÁTICA DA CENA(ASSUNTOS PROFISSIONAIS X PESSOAIS) SÃO MARCADAS, TAMBÉM, POR ESSE ELEMENTO, ISTO É, A ALTERNÂNCIA DE IDIOMAS.

NONA AULA

DESENTENDIMENTOS SE ACENTUAM:
ELES DANÇAM E FALAM SOBRE CIÚME

OS DESENTENDIMENTOS CHEGAM AO ÁPICE, HAVENDO TROCA DE ACUSAÇÕES E REVELAÇÕES SOBRE OS MOTIVOS OCULTOS DAS PERSONAGENS:

PABLO

-VOCÊ ME USOU PARA REALIZAR SUA PEQUENA FANTASIA!

SALLY
-VOCÊ ME USOU PORQUE QUERIA APARECER NO FILME E VIRAR UM ASTRO!

ESSAS SÃO VERDADES RELATIVAS QUE SÃO EXAGERADAS PELA EMOÇÃO DAS PERSONAGENS, QUE AS DIZEM EM TOM DE ACUSAÇÃO.

DÉCIMA AULA

COMEÇAM AS REFERÊNCIAS MÍTICAS
EXISTE UMA REFERÊNCIA MÍTICA(TAMBÉM PARALELISMO) NA HISTÓRIA CONTADA POR SALLY PARA PABLO(ELA MANDA UMA CARTA PARA PABLO E NARRA UMA HISTÓRIA BÍBLICA EM VOZ OVER), QUE COINCIDE COM A RECONCILIAÇÃO ENTRE OS 2, FORNECENDO UM INTERESSANTE CONTRASTE “MÁGICO”ENTRE AS 2 SITUAÇÕES - BRIGA X RECONCILIAÇÃO - QUE VALORIZA A SITUAÇÃO DE RECONCILIAÇÃO. DEPOIS DISSO, UM CHAMADO `A AVENTURA FEITO POR SALLY A PABLO: “EU SEGUI VOCÊ NO TANGO. NO FILME VOCÊ PRECISA ME SEGUIR”.
HÁ TAMBÉM UMA ESPÉCIE DE BATISMO NA ÁGUA : OS DOIS ESTÃO EM UMA FONTE, OS 2 PASSAM AS MÃOS NA ÁGUA E PABLO SUBMERGE. SALLY TAMBÉM ESTÁ ENTRANDO EM UMA AVENTURA, PORÉM, É UMA AVENTURA PELA QUAL ELA JÁ PASSOU OUTRAS VEZES, ENQUANTO PABLO ESTÁ COMEÇANDO A VIVÊ-LA, DAÍ O ENFOQUE MAIOR À PERSONAGEM PABLO.
(TODA ESSA SEQUÊNCIA CONTÉM ESSA IDÉIA DE VALORIZAÇÃO MÁGICA EXPLICADA ACIMA, QUE SERVE, TAMBÉM, PARA VALORIZAR A TRANSIÇÃO DA NARRATIVA E A DIFERENCIA DO SIMPLES "PRESENTE MÁGICO", RECURSO QUE CORRESPONDERIA APENAS À CARTA CONTENDO A HISTÓRIA BÍBLICA).

DÉCIMA-PRIMEIRA AULA

OS 2 BRIGAM E HÁ UM CONFLITO DE PODER
ELE COMO MESTRE DE TANGO, NÃO ACEITA A LIDERANÇA DE SALLY(RECUSA DO CHAMADO À AVENTURA).

DÉCIMA-SEGUNDA AULA

“PRECISAMOS CUIDAR DE NOSSA RAINHA”, ESSA FRASE, ALÉM DE MARCAR MAIS UMA REFERÊNCIA MÍTICA, MARCA A ACEITAÇÃO DA LIDERANÇA DE SALLY POR PARTE DE PABLO.NOTE-SE QUE ESSA FRASE É DITA POR UM DOS INSTRUTORES DE TANGO(AMIGO DE PABLO E SALLY-VER TERCEIRA AULA)E NÃO PELO PRÓPRIO PABLO.OCORRE AQUI UMA TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADO: UMA PERSONAGEM (PLANA) CUJO ATO SE REFERE A
UM SIGNIFICADO PERTENCENTE A OUTRA(PABLO): A BUSCA DE SOLUÇÕES MENOS ÓBVIAS E DE MAIOR CONCISÃO.

AGORA, OS 2 ESTÃO EM UMA IGREJA JUDAICA.SAEM E PASSEIAM POR UMA PAISAGEM

REFERÊNCIAS MÍTICAS: O SIGNIFICADO E A ORIGEM

POR QUE OS 2 SE CONHECERAM(?) : “QUERO SABER PORQUE NOS CONHECEMOS.NÃO ME SINTO EM CASA NEM AQUI NEM NA FRANÇA. TENHO MEDO DE DESAPARECER SEM DEIXAR RASTRO”.

EXISTE UMA GRANDE IDENTIFICAÇÃO(ATENTE PARA A ÚLTIMA FRASE DE SALLY) ENTRE OS PERSONAGENS E UM CARÁTER DE DESENRAIZAMENTO CONTIDO NESSA FRASE QUE ASSOCIA A SITUAÇÃO DOS DOIS `A SUA ORIGEM JUDAICA(REFERÊNCIA `A DIASPÓRA, ESSA CONDIÇÃO/SENSAÇÃO,EMBORA EXISTA HOJE UM ESTADO NACIONAL JUDEU, OCORREU DURANTE MUITO TEMPO E MESMO APÓS A CRIAÇÃO DESSE ESTADO ESSA SENSAÇÃO DE DESENRAIZAMENTO PERSISTE ENTRE MUITOS JUDEUS. ESSE ELEMENTO JÁ APARECE COMO ÍNDICE OCULTO NA PRESENÇA DOS TRÊS IDIOMAS QUE ENVOLVEM A COMUNICAÇÃO DOS PROTAGONISTAS.

*METALINGUAGEM – O AUTOR REFLETE SOBRE A PRÓPRIA OBRA: EM ALGUNS MOMENTOS DO FILME, A DIRETORA/ ATRIZ/ ROTEIRISTA REALIZA ESSE COMENTÁRIO, CONSCIENTIZANDO OS ESPECTADORES. PRIMEIRO NA CENA DOS SAPATOS(TERCEIRA AULA): SALLY DÁ UM SORRISO QUANDO SEUS MESTRES(E TAMBÉM GUARDIÃES DE LIMIAR) NAQUELE MOMENTO, LHE DIZEM QUE ELA TEM QUE COMPRAR SAPATOS NOVOS(REFERÊNCIA SIMBÓLICA À SITUAÇÃO MOSTRADA NA AULA ANTERIOR); SEGUNDO, QUANDO O AMIGO DE PABLO E SALLY DIZ: “PRECISAMOS CUIDAR DE NOSSA RAINHA”: ELES SORRIEM E OLHAM PARA A CÂMERA DE SOSLAIO.
TERCEIRO, QUANDO ELA ESTÁ FALANDO COM PABLO, JÁ NO FINAL DO FILME. ELA DIZ: “ESTAMOS FAZENDO ASSIM MESMO”(COM REFERÊNCIA À REALIZAÇÃO DO FILME DENTRO DO FILME) E SORRI.

QUAL É O PROBLEMA DO FILME? APESAR DE A ROTEIRISTA DEMONSTRAR DOMÍNIO SOBRE AS TÉCNICAS DE ROTEIRO, JÁ QUE FAZ USO HÁBIL DOS ELEMENTOS DE RETÓRICA(COMO EXEMPLOS, CITO A ANTÍTESE QUE APARECE LOGO NO INÍCIO - IMAGINAÇÃO X REALIDADE E O CONTRASTE MÁGICO),
ASSIM COMO DE REFERÊNCIAS MÍTICAS E DE DIÁLOGOS CONCISOS, É A PREVISIBILIDADE QUE MARCA O FILME.PARADOXALMENTE,
APESAR DESSA PREVISIBILIDADE, PRESENTE AO LONGO DO FILME, ELA GUARDA A SURPRESA DE SEU FINAL OCULTO, QUE NÃO É PERCEBIDO POR TODOS MAS QUE SE FAZ PRESENTE NO ENIGMA DO COMEÇO, NA REITERAÇÃO DO ENIGMA E NA REVELAÇÃO FINAL: A DIÁSPORA.

domingo, 26 de setembro de 2010

CRÍTICA DO FILME "A NOITE AMERICANA"

A Noite Americana, de François Truffaut


Por Jorge Lobo

 


“A Noite Americana”, filme de François Truffaut, nega a essência de seu próprio cinema.Um cinema voltado para o prazer foi o que Truffaut buscou ao longo de quase toda a sua obra, com exceção de poucos filmes e A Noite Americana é uma dessas exceções.

O filme conta a história de uma filmagem, isto é, o filme dentro do filme, e é competente.Só isso.E só competente é muito pouco para um filme de Truffaut. Os pequenos dramas vividos pelas personagens do filme são incapazes de cativar os espectadores que se acostumaram a assistir filmes melhores, mais densos ou com humor muito mais bem dosado do cineasta francês.Pode-se citar vários filmes dele muito mais bem estruturados do que A Noite Americana: a Mulher do Lado, O Amor em Fuga, Atire no Pianista, O Último Metrô, Beijos Proibidos, etc. O dia a dia de uma filmagem, os problemas com os atores, com o cronograma de filmagem, com os imprevistos de várias ordens, é muito pouco para cativar o interesse do espectador, e ainda mais do espectador comum, quer dizer, o espectador que não é cineasta ou estudante de cinema.Excepcionalmente bem filmado, A Noite Americana prova que só virtuosismo não é garantia de um bom filme.O desempenho dos atores é muito bom mas o roteiro decepciona. Truffaut interpreta a si mesmo: um cineasta na luta para concluir seu filme.Para isso, conta com uma equipe de maquiadores, atores, contra-regras, dublês, fotógrafos, etc. A personagem interpretada por Jacqueline Bisset interpreta a protagonista do filme dentro do filme.Uma história trágica é contada: a namorada do filho acaba se apaixonando pelo pai de seu namorado, “uma pálida sombra de seu pai.”. Amargurado, a personagem interpretada por Jean Pierre Leaud decide matar seu pai.O ator que interpreta o pai acaba morrendo também na “vida real”, o que traz problemas sérios para Bertrand, o diretor. Já a personagem de Leaud, vive agarrado com a contra-regra, sua namorada que acaba abandonando Leaud por causa de um dublê inglês do filme, o que provoca o desespero de Leaud e sua tentativa de abandonar as filmagens.Julie(Bisset) decide consolá-lo e transa com ele para impedi-lo de abandonar o filme. Aí, quem acaba sofrendo é Bisset, pois o marido dela descobre tudo, trazendo o remorso para a alma de Julie. Enfim, nada de muito interessante. Truffaut chega a mostrar a repetição de várias tomadas de uma mesma cena.Fica a pergunta: o que isso traz de interessante para o espectador?Pra quem se interessa pelo processo de feitura de um filme é interessante mas e o resto dos espectadores?Truffaut nos nega o prazer e o prazer de um bom filme não está somente nas comédias.Histórias agri-doces, quando são bem contadas, trazem muito prazer.Tragédias trazem muito prazer através da catarse, a purificação dos sofrimentos.Enfim, qualquer filme, quando conta ao menos com um bom roteiro e um bom diretor, acaba dando prazer. Negar a essência de seu próprio cinema para mostrar virtuosismo e o processo de feitura de um filme só faz com que A Noite Americana seja decepcionante.

domingo, 19 de setembro de 2010

O QUE É CRIATIVIDADE?


"Criatividade é um atributo dos sistemas sociais que fazem julgamento sobre os indivíduos. A criatividade é o produto da interação entre três subsistemas: o domínio, a pessoa e o campo. O domínio representa a cultura onde um determinado comportamento tem lugar. O campo é composto por indivíduos que conhecem as regras do domínio e que decidem se o desempenho do indivíduo é criativo ou não. A pessoa é o indivíduo que assimilou as regras do domínio, encontrando-se pronto para imprimir no campo suas variações individuais." (Czikszentmihalyi, 1988)


"Criatividade é o processo de fazer e comunicar conexões significativas e novas para nos ajudar a pensar muitas possibilidades; para nos ajudar a pensar e experienciar de várias formas, usando diferentes pontos de vista; para nos ajudar a pensar novas e inusitadas possibilidades; e para nos guiar no processo de gerar e selecionar alternativas." (Isaksen & Treffinger, 1985)

FORMA E CONTEÚDO


O sr. K observava uma pintura na qual alguns objetos tinham uma forma bem arbitrária. Ele disse:
“A alguns artistas acontece, quando observam o mundo, o mesmo que aos filósofos. Na preocupação com a forma se perde o conteúdo.Certa vez trabalhei com um jardineiro. Ele me passou uma tesoura e me disse para cortar um loureiro. A árvore ficava num vaso e era alugada para festas. Por isso tinha que ter a forma de uma bola.Comecei imediatamente a cortar os brotos selvagens, mas não conseguia atingir a forma de uma bola, por mais que me esforçasse.Uma vez tirava demais de um lado, outra vez de outro. Quando finalmente ela havia se tornado uma bola, esta era pequena demais. O jardineiro falou, decepcionado: “Certo, isto é uma bola, mas onde está o loureiro?”.

Bertolt brecht, "Histórias do Sr. Keuner"

CENA DE PREPARAÇÃO E CONSEQUÊNCIA POR CONTRASTE

CENA DE PREPARAÇÃO E CONSEQUÊNCIA POR CONTRASTE


Neste tipo de cena, você vai instilando ao espectador uma expectativa emocional oposta aos efeitos que a próxima cena dramática provocará. Por exemplo em "KRAMER vs KRAMER", Ted Kramer chega em casa depois de "uns dos cinco melhores dias de sua vida" e encontra a mulher pronta para abandoná-lo e deixá-lo com o filho.

Fonte: "Teoria e prática do roteiro", David Howard e Edward Mabley

ARGUMENTO DO FILME "AMNÉSIA", DE CHRISTOPHER NOLAN

Guy Pearce em AMNÉSIA, de Christopher Nolan
ARGUMENTO DO FILME "AMNÉSIA"( "MEMENTO" ), DE CHRISTOPHER NOLAN

MEMENTO MORI(“LEMBRA QUE MORRERÁS”)

POR JONATHAN NOLAN

"O QUE COMO UMA BALA PODE DESENGANAR!"
- HERMAN MELVILLE

SUA MULHER SEMPRE COSTUMAVA DIZER QUE VOCÊ CHEGARIA ATRASADO A SEU PRÓPRIO FUNERAL. LEMBRA-SE DISSO? A PIADINHA DELA POR VOCÊ SER TÃO LERDO -SEMPRE ATRASADO, SEMPRE ESQUECENDO COISAS, MESMO ANTES DO INCIDENTE.
NESTE MOMENTO VOCÊ PROVAVELMENTE SE INDAGA SE CHEGOU ATRASADO AO DELA.
VOCÊ ESTEVE LÁ, DISSO PODE TER CERTEZA. É PARA ISSO QUE SERVE A FOTO -AQUELA, PREGADA À PAREDE AO LADO DA PORTA. NÃO É USUAL TIRAR FOTOS EM UM FUNERAL, MAS ALGUÉM, SEUS MÉDICOS, SUPONHO, SABIAM QUE VOCÊ NÃO SE LEMBRARIA. ELES A AMPLIARAM BASTANTE E A PUSERAM BEM AÍ, PRÓXIMA À PORTA, DE FORMA QUE VOCÊ NÃO PUDESSE DEIXAR DE OLHÁ-LA SEMPRE QUE SE LEVANTASSE PARA PROCURÁ-LA.
O CARA NA FOTO, ESSE COM AS FLORES? É VOCÊ. E O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO? ESTÁ LENDO A LÁPIDE, TENTANDO DESCOBRIR DE QUEM É O FUNERAL EM QUE ESTÁ, DA MESMA FORMA QUE VOCÊ A ESTÁ LENDO AGORA, TENTANDO DESCOBRIR POR QUE ALGUÉM PÔS A FOTO PRÓXIMA À PORTA. MAS POR QUE SE PREOCUPAR EM LER ALGO DE QUE VOCÊ NÃO LEMBRARÁ?
ELA SE FOI, FOI PARA SEMPRE, E VOCÊ DEVE ESTAR SOFRENDO NESTE INSTANTE, AO OUVIR A NOTÍCIA. ACREDITE EM MIM, SEI COMO VOCÊ SE SENTE. VOCÊ DEVE ESTAR UM DESASTRE. MAS DÊ UNS CINCO MINUTOS, TALVEZ DEZ. TALVEZ VOCÊ POSSA SEGUIR POR TODA UMA MEIA HORA ANTES DE ESQUECER.
MAS VOCÊ ESQUECERÁ -EU GARANTO. MAIS ALGUNS MINUTOS E VOCÊ SE DIRIGIRÁ À PORTA PROCURANDO-A NOVAMENTE, DESABANDO QUANDO ENCONTRAR A FOTO. QUANTAS VEZES VOCÊ PRECISA OUVIR A NOTÍCIA ATÉ QUE ALGUMA OUTRA PARTE DE SEU CORPO QUE NÃO ESSE SEU CÉREBRO ARREBENTADO COMECE A LEMBRAR?
DESGOSTO INFINITO, RAIVA INFINITA. INÚTEIS SEM DIREÇÃO. TALVEZ VOCÊ NÃO POSSA ENTENDER O QUE ACONTECEU. NÃO POSSO DIZER QUE ENTENDO, TAMBÉM. AMNÉSIA REVERSA. É ISSO QUE DIZ O AVISO. DOENÇA DE CRS. SEU CHUTE VALE TANTO QUANTO O MEU.
TALVEZ VOCÊ NÃO POSSA ENTENDER O QUE LHE ACONTECEU. MAS VOCÊ SE LEMBRA DO QUE ACONTECEU COM ELA, NÃO? OS MÉDICOS NÃO QUEREM FALAR A RESPEITO. NÃO RESPONDEM ÀS MINHAS PERGUNTAS. NÃO ACHAM CERTO QUE UM HOMEM EM SUAS CONDIÇÕES OUÇA ESSAS COISAS. MAS VOCÊ SE LEMBRA DO SUFICIENTE, NÃO? LEMBRA-SE DO ROSTO DELA.
É POR ISSO QUE ESTOU ESCREVENDO A VOCÊ. FÚTIL, TALVEZ. NÃO SEI QUANTAS VEZES VOCÊ TERÁ QUE LER ISSO ANTES DE ME ESCUTAR. NÃO SEI NEM MESMO HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ ESTÁ TRANCADO NESSE QUARTO. VOCÊ TAMBÉM NÃO SABE. MAS A SUA VANTAGEM EM ESQUECER É QUE VOCÊ SE ESQUECERÁ DE SE ASSUMIR COMO UMA CAUSA PERDIDA.
MAIS CEDO OU MAIS TARDE VOCÊ VAI QUERER FAZER ALGO A RESPEITO. E, QUANDO O FIZER, TERÁ DE CONFIAR EM MIM, PORQUE SOU O ÚNICO QUE PODE AJUDÁ-LO.
EARL ABRE UM OLHO DEPOIS DO OUTRO PARA VER UMA FAIXA DE AZULEJOS BRANCOS NO TETO, INTERROMPIDA POR UM AVISO ESCRITO À MÃO COLADO BEM SOBRE A SUA CABEÇA, GRANDE O SUFICIENTE PARA QUE ELE POSSA LÊ-LO DA CAMA.
UM RÁDIO-RELÓGIO ESTÁ TOCANDO EM ALGUM LUGAR. ELE LÊ O AVISO, PISCA, LÊ NOVAMENTE E ENTÃO DÁ UMA OLHADA NO QUARTO. É BRANCO, AVASSALADORAMENTE BRANCO, DESDE AS PAREDES E CORTINAS AO MOBILIÁRIO INSTITUCIONAL E AOS LENÇÓIS. O RÁDIO-RELÓGIO TOCA DE CIMA DA MESA BRANCA SOB A JANELA COM CORTINAS BRANCAS. NESTE MOMENTO, EARL PROVAVELMENTE PERCEBE QUE ESTÁ DEITADO SOBRE SEU EDREDOM BRANCO. ELE JÁ ESTÁ USANDO SEU ROUPÃO E CHINELOS.
ELE SE DEITA E LÊ NOVAMENTE O AVISO COLADO AO TETO. ELE DIZ, EM MAIÚSCULAS CRUAS: "ESTE É O SEU QUARTO. É UM QUARTO EM UM HOSPITAL. É AQUI QUE VOCÊ MORA, AGORA".
EARL SE LEVANTA E OLHA EM VOLTA. O QUARTO É GRANDE PARA UM QUARTO DE HOSPITAL -UM LINÓLEO VAZIO SE ESTENDE DA CAMA EM TRÊS DIREÇÕES. DUAS PORTAS E UMA JANELA. A VISTA TAMBÉM NÃO AJUDA MUITO -ALGUMAS ÁRVORES NO CENTRO DE UM GRAMADO BEM APARADO QUE TERMINA EM UMA BIFURCAÇÃO DE ASFALTO COM DUAS FAIXAS DE LARGURA. AS ÁRVORES, À EXCEÇÃO DOS PINHEIROS, ESTÃO NUAS -COMEÇO DA PRIMAVERA OU FINAL DO OUTONO OU UM OU OUTRO.
CADA CENTÍMETRO DA MESA ESTÁ COBERTO COM "POST-ITS", BLOCOS DE PAPEL, LISTAS BASTANTE ORGANIZADAS, MANUAIS DE REFERÊNCIA DE PSICOLOGIA, FOTOS EMOLDURADAS. EM CIMA DA BAGUNÇA HÁ ALGUMAS PALAVRAS CRUZADAS FEITAS PELA METADE. O RÁDIO-RELÓGIO CAVALGA UMA PILHA DE JORNAIS DOBRADOS. EARL BATE NO BOTÃO "SNOOZE" E PEGA UM CIGARRO DO MAÇO COLADO COM FITA ADESIVA À MANGA DE SEU ROUPÃO. ELE APALPA OS BOLSOS VAZIOS DE SEU PIJAMA À PROCURA DE FOGO. VASCULHA PAPÉIS SOBRE A MESA, OLHA RAPIDAMENTE DENTRO DAS GAVETAS. FINALMENTE ENCONTRA UMA CAIXA DE FÓSFOROS COLADA À PAREDE AO LADO DA JANELA. OUTRO AVISO ESTÁ COLADO LOGO ACIMA DA CAIXA DE FÓSFOROS.
ELE DIZ, EM LETRAS AMARELAS BERRANTES: "CIGARRO? PROCURE ALGUM ACESO ANTES, ESTÚPIDO".
EARL RI DO AVISO, ACENDE O CIGARRO E DÁ UMA LONGA TRAGADA. COLADA À JANELA DIANTE DELE ESTÁ OUTRA FOLHA DE FICHÁRIO INTITULADA "SEU HORÁRIO".
O HORÁRIO PLANEJA AS HORAS, CADA HORA, EM BLOCOS: DAS 22H ÀS 8H DIZ "VOLTE A DORMIR". EARL OLHA O RÁDIO-RELÓGIO: 8H15. PELA LUZ LÁ FORA, DEVE SER DE MANHÃ. ELE CHECA O RELÓGIO DE PULSO: 10H30. ENCOSTA O RELÓGIO NO OUVIDO E ESCUTA. DÁ DUAS OU TRÊS VOLTAS DE CORDA E O AJUSTA COM O RÁDIO-RELÓGIO.
DE ACORDO COM O HORÁRIO, TODO O BLOCO DAS 8H ÀS 8H30 DIZ "ESCOVE OS DENTES". EARL RI NOVAMENTE E CAMINHA ATÉ O BANHEIRO.
A JANELA DO BANHEIRO ESTÁ ABERTA. ENQUANTO SACODE OS BRAÇOS PARA SE AQUECER, ELE NOTA O CINZEIRO NO PARAPEITO. UM CIGARRO ESTÁ APOIADO NO CINZEIRO, QUEIMANDO CONTINUAMENTE E DEIXANDO UM LONGO DEDO DE CINZA. ELE FRANZE A TESTA, APAGA A BITUCA VELHA E A SUBSTITUI PELO NOVO CIGARRO.
A ESCOVA DE DENTES JÁ ESTÁ COM UMA PASTA BRANCA. A TORNEIRA É DE APERTAR -UMA DOSE DE ÁGUA A CADA PRESSÃO. EARL EMPURRA A ESCOVA CONTRA A BOCHECHA E A MEXE PARA A FRENTE E PARA TRÁS ENQUANTO ABRE O ARMÁRIO DO ESPELHO. AS PRATELEIRAS ESTÃO PLENAS DE EMBALAGENS DE DOSE ÚNICA DE VITAMINAS, ASPIRINAS, ANTIDIURÉTICOS. O COLUTÓRIO TAMBÉM É EM DOSE ÚNICA, UMA DOSE DE LÍQUIDO AZUL EM UMA GARRAFA PLÁSTICA LACRADA. SÓ A PASTA DE DENTES É DE TAMANHO NORMAL. EARL COSPE A PASTA DA BOCA E A SUBSTITUI PELO COLUTÓRIO. AO GUARDAR A ESCOVA AO LADO DA PASTA, ELE PERCEBE UM PEQUENINO PAPEL COLOCADO ENTRE A PRATELEIRA DE VIDRO E O FUNDO METÁLICO DO ARMÁRIO. ELE COSPE O FLUIDO AZUL AGUADO NA PIA E PRESSIONA O BOTÃO PARA ENXAGUÁ-LO. ELE FECHA O ARMÁRIO E SORRI PARA SEU REFLEXO NO ESPELHO.
"QUEM PRECISA DE MEIA HORA PARA ESCOVAR OS DENTES?"
O PAPEL FOI DOBRADO E REDUZIDO A UM TAMANHO MINÚSCULO COM TODA A PRECISÃO DE UM BILHETE DE AMOR DE UMA CRIANÇA DA SEXTA SÉRIE. NELE ESTÁ ESCRITO:
"SE VOCÊ AINDA PODE LER ISTO, ENTÃO VOCÊ É UMA PORRA DE UM COVARDE".
EARL FITA PERPLEXO O PAPEL E ENTÃO O LÊ NOVAMENTE. ELE O VIRA. ATRÁS ESTÁ ESCRITO:
"PS: DEPOIS DE LER ISTO, ESCONDA-O NOVAMENTE".
EARL LÊ AMBOS OS LADOS NOVAMENTE E ENTÃO DOBRA-O NOVAMENTE E O GUARDA SOB A PASTA DE DENTES.
TALVEZ ENTÃO ELE PERCEBA A CICATRIZ. ELA COMEÇA LOGO ABAIXO DA ORELHA, SINUOSA E GROSSA, E DESAPARECE ABRUPTAMENTE SOB O SEU CABELO. EARL VIRA A CABEÇA E ACOMPANHA COM O CANTO DO OLHO O AVANÇO DA CICATRIZ. ELE A SEGUE COM A PONTA DO DEDO E ENTÃO OLHA PARA BAIXO, PARA O CIGARRO QUEIMANDO NO CINZEIRO. UM PENSAMENTO O DOMINA E ELE CORRE PARA FORA DO BANHEIRO.
ELE É PEGO NA PORTA DE SEU QUARTO, UMA MÃO SOBRE A MAÇANETA. DUAS FOTOS ESTÃO COLADAS À PAREDE AO LADO DA PORTA. O QUE CHAMA PRIMEIRO A ATENÇÃO DE EARL É A RESSONÂNCIA MAGNÉTICA, UMA MOLDURA PRETA BRILHANTE PARA QUATRO JANELAS NO CRÂNIO DE ALGUÉM. COM CANETA MARCA-TEXTO A FIGURA FOI INTITULADA "SEU CÉREBRO". EARL A FITA. CÍRCULOS CONCÊNTRICOS DE DIFERENTES CORES. ELE CONSEGUE DISTINGUIR OS GRANDES GLOBOS QUE SÃO SEUS OLHOS E, ATRÁS DELES, OS DOIS LOBOS DE SEU CÉREBRO. RUGAS MACIAS, CÍRCULOS, SEMICÍRCULOS. MAS BEM LÁ NO MEIO DE SUA CABEÇA, CIRCULADO COM MARCA-TEXTO, SE AFUNILANDO DESDE SUA NUCA COMO UM VERME EM UM DAMASCO, ESTÁ ALGO DIFERENTE. DEFORMADO, QUEBRADO, MAS INEQUÍVOCO. UMA MANCHA ESCURA, NO FORMATO DE UMA FLOR, BEM NO MEIO DE SEU CÉREBRO.
ELE SE ABAIXA PARA OLHAR A OUTRA FOTO. É A FOTO DE UM HOMEM SEGURANDO FLORES, EM PÉ AO LADO DE UM TÚMULO RECENTE. O HOMEM ESTÁ ABAIXADO, LENDO A LÁPIDE. POR UM MOMENTO ISSO PARECE UMA SALA DE ESPELHOS OU O COMEÇO DE UM DESENHO DO INFINITO: UM HOMEM ABAIXADO, OLHANDO PARA O HOMEM MENOR, ABAIXADO, LENDO A LÁPIDE. EARL OLHA A FOTO POR UM LONGO TEMPO. TALVEZ ELE COMECE A CHORAR. TALVEZ ELE SÓ ENCARE SILENCIOSAMENTE A FOTO. POR FIM ELE VOLTA À CAMA, SE JOGA, FECHA BEM OS OLHOS, TENTA DORMIR.
O CIGARRO QUEIMA CONTINUAMENTE NO BANHEIRO. UM CIRCUITO NO RÁDIO-RELÓGIO TERMINA DE CONTAR ATÉ DEZ E ELE COMEÇA A TOCAR DE NOVO.
EARL ABRE UM OLHO DEPOIS DO OUTRO PARA VER UMA FAIXA DE AZULEJOS BRANCOS NO TETO, INTERROMPIDA POR UM AVISO ESCRITO À MÃO COLADO BEM SOBRE A SUA CABEÇA, GRANDE O SUFICIENTE PARA QUE ELE POSSA LÊ-LO DA CAMA.
VOCÊ NÃO PODE MAIS TER UMA VIDA NORMAL. VOCÊ PRECISA SABER DISSO. COMO VOCÊ PODE TER UMA NAMORADA, SE NÃO PUDER LEMBRAR O NOME DELA? TAMBÉM NÃO PODE TER FILHOS, SE NÃO QUISER QUE ELES CRESÇAM COM UM PAI QUE NÃO OS RECONHECE. COM CERTEZA NÃO PODE TER UM EMPREGO. NÃO HÁ MUITAS PROFISSÕES POR AÍ QUE VALORIZEM O ESQUECIMENTO. PROSTITUIÇÃO, TALVEZ. POLÍTICA, COM CERTEZA.
NÃO. SUA VIDA ACABOU. VOCÊ É UM HOMEM MORTO. A ÚNICA COISA QUE OS MÉDICOS ESPERAM FAZER É ENSINÁ-LO A SER MENOS ONEROSO AOS ENFERMEIROS. E PROVAVELMENTE NUNCA O DEIXARÃO IR PARA CASA, ONDE QUER QUE ISSO SEJA.
ENTÃO A PERGUNTA NÃO É "SER OU NÃO SER", PORQUE VOCÊ NÃO É. A PERGUNTA É SE VOCÊ QUER FAZER ALGO A RESPEITO. SE VINGANÇA IMPORTA PARA VOCÊ.
IMPORTA PARA A MAIORIA DAS PESSOAS. POR ALGUMAS SEMANAS ELAS PLANEJAM, ESQUEMATIZAM, FAZEM O NECESSÁRIO PARA IGUALAR O PLACAR. MAS A PASSAGEM DO TEMPO É TUDO O QUE É NECESSÁRIO PARA ERODIR ESSE IMPULSO INICIAL. TEMPO É FURTO, NÃO É O QUE DIZEM? E O TEMPO EVENTUALMENTE CONVENCE A MAIORIA DE NÓS DE QUE O PERDÃO É UMA VIRTUDE. CONVENIENTEMENTE, A COVARDIA E O PERDÃO PARECEM IDÊNTICOS DE UMA CERTA DISTÂNCIA. O TEMPO ROUBA A SUA CORAGEM.
SE O TEMPO E O MEDO NÃO SÃO SUFICIENTES PARA DISSUADIR AS PESSOAS DA VINGANÇA DELAS, ENTÃO SEMPRE HÁ A AUTORIDADE, BALANÇANDO A CABEÇA LEVEMENTE E DIZENDO: "NÓS ENTENDEMOS, MAS VOCÊ É SUPERIOR POR DEIXAR ISSO PARA LÁ. POR SE ERGUER ACIMA DISSO. POR NÃO AFUNDAR AO NÍVEL DELES". "E ALÉM DISSO", DIZ A AUTORIDADE, "SE VOCÊ TENTAR ALGUMA COISA ESTÚPIDA, NÓS O TRANCAREMOS EM UM QUARTINHO".
MAS ELES JÁ O PUSERAM EM UM QUARTINHO, NÃO É? SÓ QUE NÃO TRANCARAM DE VERDADE NEM O VIGIAM MUITO CUIDADOSAMENTE, PORQUE VOCÊ É ALEIJADO. UM CADÁVER. UM VEGETAL QUE PROVAVELMENTE NÃO SE LEMBRARIA DE COMER OU DE CAGAR SE NÃO HOUVESSE ALGUÉM PARA RECORDÁ-LO. E, QUANTO À PASSAGEM DO TEMPO, BEM, ISSO NÃO SE APLICA MAIS A VOCÊ REALMENTE, NÃO É? SÓ OS MESMOS DEZ MINUTOS, DE NOVO E DE NOVO. ENTÃO COMO VOCÊ PODE PERDOAR, SE NÃO CONSEGUE SE LEMBRAR DE ESQUECER?
VOCÊ DEVIA SER DO TIPO QUE DEIXARIA ISSO PARA TRÁS, NÃO? ANTES. MAS VOCÊ NÃO É O HOMEM QUE COSTUMAVA SER. NEM METADE. VOCÊ É UMA FRAÇÃO. É O HOMEM DEZ-MINUTOS.
É CLARO, A FRAQUEZA É FORTE. É O IMPULSO PRIMÁRIO. VOCÊ PROVAVELMENTE PREFERIRIA SENTAR EM SEU QUARTINHO E CHORAR. VIVER EM SUA FINITA COLEÇÃO DE MEMÓRIAS, POLINDO CADA UMA DELAS CUIDADOSAMENTE. MEIA VIDA PASSADA, ATRÁS DO VIDRO E PREGADA EM CORTIÇA COMO UMA COLEÇÃO DE INSETOS EXÓTICOS. VOCÊ GOSTARIA DE VIVER ATRÁS DESSE VIDRO, NÃO GOSTARIA? PRESERVADO EM FORMOL.
VOCÊ GOSTARIA, MAS NÃO PODE, PODE? NÃO PODE POR CAUSA DA ÚLTIMA PEÇA DE SUA COLEÇÃO. A ÚLTIMA COISA DE QUE VOCÊ SE LEMBRA. O ROSTO DELE. O ROSTO DELE E SUA MULHER, PEDINDO-LHE SUA AJUDA COM OS OLHOS.
E TALVEZ VOCÊ POSSA FICAR COM ISSO QUANDO ACABAR. SUA PEQUENA COLEÇÃO. ELES PODEM TRANCÁ-LO NOVAMENTE EM OUTRO QUARTINHO E VOCÊ PODE VIVER O RESTO DE SUA VIDA NO PASSADO. MAS APENAS SE VOCÊ POSSUIR UM PEDACINHO DE PAPEL EM SUA MÃO QUE DIGA QUE VOCÊ O PEGOU.
VOCÊ SABE QUE ESTOU CERTO. SABE QUE HÁ UM MONTE DE TRABALHO A SER FEITO. PODE PARECER IMPOSSÍVEL, MAS, SE TODOS FIZERMOS A NOSSA PARTE, DESCOBRIREMOS ALGUMA COISA. MAS VOCÊ NÃO TEM MUITO TEMPO. TEM CERCA DE DEZ MINUTOS, NA VERDADE. ENTÃO TUDO RECOMEÇA. PORTANTO, FAÇA ALGO COM O TEMPO QUE TEM.
EARL ABRE OS OLHOS E PISCA NA ESCURIDÃO. O RÁDIO-RELÓGIO ESTÁ TOCANDO. ELE DIZ 3H20, E O LUAR ATRAVÉS DA JANELA SIGNIFICA QUE DEVE SER DE MADRUGADA. EARL TATEIA EM BUSCA DO ABAJUR, QUASE DERRUBANDO-O. UMA LUZ INCANDESCENTE PREENCHE O QUARTO, PINTANDO OS MÓVEIS DE METAL DE AMARELO, AS PAREDES DE AMARELO, TAMBÉM OS LENÇÓIS. ELE SE DEITA E OLHA PARA A FAIXA DE AZULEJOS AMARELOS NO TETO EM CIMA DELE, INTERROMPIDA POR UM AVISO ESCRITO À MÃO COLADO NO TETO. ELE LÊ O AVISO DUAS, TALVEZ TRÊS VEZES E ENTÃO PISCA E OLHA PARA O QUARTO À SUA VOLTA.
É UM QUARTO DESPOJADO. INSTITUCIONAL, TALVEZ. HÁ UMA MESA EMBAIXO DA JANELA. A MESA ESTÁ VAZIA COM EXCEÇÃO DO BARULHENTO RÁDIO-RELÓGIO. EARL PROVAVELMENTE SE DÁ CONTA, NESSE INSTANTE, DE QUE ESTÁ COMPLETAMENTE VESTIDO. ELE ESTÁ ATÉ USANDO SAPATOS, SOB O LENÇOL. ELE SAI DA CAMA E VAI ATÉ A MESA. NADA NA SALA SUGERE QUE ALGUÉM MORE LÁ OU QUE JAMAIS TENHA MORADO, EXCETO UM OU OUTRO PEDAÇO DE FITA ADESIVA COLADO NA PAREDE AQUI E ALI. NENHUMA FOTO, NENHUM LIVRO, NADA. ATRAVÉS DA JANELA ELE PODE VER A LUA CHEIA BRILHANDO NO GRAMADO BEM APARADO.
EARL BATE NO BOTÃO "SNOOZE" DO RÁDIO-RELÓGIO E OLHA POR UM MOMENTO PARA AS DUAS CHAVES PRESAS COM FITA ADESIVA NAS COSTAS DE SUA MÃO. ELE COÇA A FITA ENQUANTO PERSCRUTA DENTRO DAS GAVETAS VAZIAS. NO BOLSO ESQUERDO DO CASACO ELE ENCONTRA UM MAÇO DE NOTAS DE US$ 100 E UMA CARTA EM UM ENVELOPE LACRADO. ELE AVERIGUA O RESTANTE DO QUARTO E O BANHEIRO. PEDAÇOS DE FITA ADESIVA, BITUCAS DE CIGARRO. NADA MAIS.
EARL BRINCA DISTRAIDAMENTE COM O CALOMBO DA CICATRIZ EM SEU PESCOÇO E VOLTA À CAMA. DEITA-SE E OLHA PARA O TETO E PARA O AVISO NELE COLADO. O AVISO DIZ:"LEVANTE-SE, SAIA IMEDIATAMENTE. ESSAS PESSOAS ESTÃO TENTANDO MATÁ-LO". EARL FECHA OS OLHOS.
TENTARAM ENSINÁ-LO A FAZER LISTAS NO PRIMÁRIO, LEMBRA-SE? NA ÉPOCA EM QUE SUA AGENDA ERAM AS COSTAS DA SUA MÃO. E, SE OS SEUS COMPROMISSOS SAÍSSEM NO BANHO, BEM, ELES NÃO SE CUMPRIRIAM. SEM OBJETIVO, DISSERAM. SEM DISCIPLINA. ENTÃO ELES TENTARAM FAZER COM QUE VOCÊ ESCREVESSE TUDO EM UM LUGAR MAIS PERMANENTE.
É CLARO, SEUS PROFESSORES PRIMÁRIOS MOLHARIAM AS CALÇAS DE RIR SE PUDESSEM VÊ-LO AGORA. PORQUE VOCÊ SE TORNOU O PRODUTO EXATO DAS AULAS DE ORGANIZAÇÃO QUE ELES DAVAM. PORQUE VOCÊ NÃO CONSEGUE NEM MIJAR SEM CONSULTAR UMA DE SUAS LISTAS.
ELES TINHAM RAZÃO. LISTAS SÃO A ÚNICA SAÍDA DESSA BAGUNÇA.
EIS A VERDADE: AS PESSOAS, MESMO AS PESSOAS NORMAIS, NUNCA SÃO APENAS UMA PESSOA, COM ALGUMAS CARACTERÍSTICAS. NÃO É SIMPLES ASSIM. ESTAMOS TODOS À MERCÊ DO SISTEMA LÍMBICO, NUVENS DE ELETRICIDADE VAGANDO ATRAVÉS DO CÉREBRO. CADA HOMEM É QUEBRADO EM 24 FRAÇÕES DE UMA HORA E QUEBRADO DE NOVO DENTRO DESSAS 24 FRAÇÕES. É UMA PANTOMIMA DIÁRIA, UM HOMEM CEDENDO O CONTROLE AO PRÓXIMO: OS BASTIDORES LOTADOS DE MEDÍOCRES CLAMANDO POR SUA VEZ SOB OS HOLOFOTES. CADA SEMANA, CADA DIA. O HOMEM RAIVOSO PASSA O BASTÃO AO CALADO, QUE O PASSA AO VICIADO EM SEXO, AO INTROVERTIDO, AO CONVERSADOR. CADA HOMEM É UMA MULTIDÃO, UMA CORRENTE DE IDIOTAS.
ESSA É A TRAGÉDIA DA VIDA. PORQUE POR ALGUNS MINUTOS DE CADA DIA CADA HOMEM SE TORNA UM GÊNIO. MOMENTOS DE LUCIDEZ, INSIGHT, COMO QUISER CHAMAR. AS NUVENS SE ABREM, OS PLANETAS FICAM NUMA LINHAZINHA ORGANIZADA E TUDO SE TORNA ÓBVIO."EU DEVERIA PARAR DE FUMAR", TALVEZ, OU "VEJA SÓ COMO EU PODERIA GANHAR US$ 1 MILHÃO RAPIDAMENTE" OU "ISSO E AQUILO SÃO A CHAVE DA FELICIDADE ETERNA". ESSA É A MISERÁVEL VERDADE. POR ALGUNS INSTANTES, OS SEGREDOS DO UNIVERSO SE ABREM PARA NÓS. A VIDA É UM TRUQUE BARATO DE SALÃO.
MAS ENTÃO O GÊNIO, O "SAVANT”, TEM DE PASSAR OS CONTROLES PARA O PRÓXIMO CARA DA FILA, PROVAVELMENTE O CARA QUE QUER SÓ COMER BATATAS FRITAS, E INSIGHT E BRILHO E SALVAÇÃO SÃO CONFIADOS A UM IMBECIL OU A UM HEDONISTA OU A UM NARCOLÉPTICO.
O ÚNICO JEITO DE SAIR DESSA BAGUNÇA, OBVIAMENTE, É SE ASSEGURAR DE QUE VOCÊ CONTROLA OS IDIOTAS EM QUE VOCÊ SE TORNA. PEGAR A SUA CORRENTE, SEGURÁ-LOS PELA MÃO E OS LIDERAR. E O MELHOR MODO DE FAZÊ-LO É COM UMA LISTA.
É COMO UMA CARTA QUE VOCÊ ESCREVE A SI MESMO. UM PLANO GERAL, DESENHADO PELO CARA QUE PODE VER A LUZ, FEITO DE PASSOS SIMPLES O SUFICIENTE PARA QUE O RESTO DOS IDIOTAS COMPREENDA. SIGA OS PASSOS DE UM A CEM. REPITA O QUANTO FOR NECESSÁRIO.
SEU PROBLEMA É UM POUCO MAIS AGUDO, MAS FUNDAMENTALMENTE O MESMO.
É COMO AQUELA COISA DE COMPUTADOR, A "SALA CHINESA". LEMBRA-SE? UM CARA ESTÁ SENTADO EM UMA SALINHA, ESPALHANDO CARTAS EM QUE ESTÃO ESCRITAS LETRAS QUE ELE NÃO COMPREENDE, COLOCANDO-AS UMA DE CADA VEZ EM UMA SEQUÊNCIA DE ACORDO COM AS INSTRUÇÕES DE OUTRA PESSOA. ELAS DEVERIAM FORMAR UMA PIADA EM CHINÊS. O CARA NÃO FALA CHINÊS, É CLARO. ELE APENAS SEGUE AS INSTRUÇÕES.
HÁ ALGUMAS DIFERENÇAS EM SUA SITUAÇÃO, É CLARO: VOCÊ SAIU DA SALA EM QUE O PUSERAM, ENTÃO TODA A EMPREITADA TEM DE SER PORTÁTIL. E O CARA DANDO AS INSTRUÇÕES -ELE É VOCÊ, TAMBÉM, SÓ QUE UMA VERSÃO ANTERIOR DE VOCÊ. E A PIADA QUE VOCÊ ESTÁ CONTANDO, BEM, ELA TEM UM FINAL. SÓ QUE EU NÃO ACREDITO QUE ALGUÉM VÁ ACHÁ-LO MUITO ENGRAÇADO.
PORTANTO, ESSA É A IDÉIA. TUDO O QUE VOCÊ TEM DE FAZER É SEGUIR SUAS INSTRUÇÕES. COMO SUBIR UMA ESCADA OU DESCER OUTRA. UM PASSO DE CADA VEZ. DESCENDO PELOS ITENS DA LISTA. SIMPLES.
E O SEGREDO, É CLARO, DE QUALQUER LISTA É MANTÊ-LA EM UM LUGAR EM QUE VOCÊ TERÁ DE VÊ-LA.
ELE PODE OUVIR O RUÍDO ATRAVÉS DE SUAS PÁLPEBRAS. ELE TENTA ALCANÇAR O RÁDIO-RELÓGIO, MAS NÃO PODE MEXER SEU BRAÇO.
EARL ABRE SEUS OLHOS PARA VER UM HOMEM GRANDE ABAIXADO SOBRE ELE. O HOMEM O OLHA, INCOMODADO, E RETOMA SEU TRABALHO. EARL OLHA EM TORNO. ESCURO DEMAIS PARA UM CONSULTÓRIO MÉDICO.
ENTÃO A DOR INUNDA SEU CÉREBRO, BLOQUEANDO AS OUTRAS PERGUNTAS. ELE SE MOVE DE NOVO, TENTANDO PUXAR SEU ANTEBRAÇO PARA LONGE, AQUELE QUE PARECE QUE ESTÁ QUEIMANDO. O BRAÇO NÃO SE MOVE, MAS O HOMEM O OLHA OUTRA VEZ COM CENSURA. EARL SE ARRUMA NA CADEIRA PARA VER POR SOBRE O TOPO DA CABEÇA DO HOMEM.
O BARULHO E A DOR VÊM AMBOS DE UM REVÓLVER NA MÃO DO HOMEM -UM REVÓLVER COM UMA AGULHA ONDE DEVERIA HAVER UM CANO. A AGULHA ESTÁ CAVANDO A CARNE DO LADO INTERNO DO ANTEBRAÇO DE EARL, DEIXANDO UMA TRILHA DE LETRAS CHEIAS ATRÁS DELA.
EARL TENTA SE REPOSICIONAR PARA OBTER UMA VISÃO MELHOR, PARA LER AS LETRAS EM SEU BRAÇO, MAS NÃO CONSEGUE. ELE SE DEITA E OLHA PARA O TETO.
FINALMENTE O TATUADOR DESLIGA O BARULHO, LIMPA O ANTEBRAÇO DE EARL COM UM PEDAÇO DE GAZE E VAI ATÉ OS FUNDOS BUSCAR UM FOLHETO QUE DIZ COMO LIDAR COM UMA POSSÍVEL INFECÇÃO. TALVEZ MAIS TARDE ELE CONTE À SUA MULHER SOBRE AQUELE CARA E SEU PEQUENO BILHETE. TALVEZ SUA MULHER O CONVENÇA A CHAMAR A POLÍCIA.
EARL OLHA PARA O BRAÇO. AS LETRAS SOBEM PELA PELE, PINGANDO UM POUCO. ELAS VÃO DESDE LOGO ATRÁS DA PULSEIRA DO RELÓGIO DE EARL ATÉ A PARTE INTERNA DE SEU COTOVELO. EARL PISCA PARA A MENSAGEM E A LÊ NOVAMENTE.
ELA DIZ, EM MAIÚSCULAS CUIDADOSAS:"EU ESTUPREI E MATEI SUA MULHER".
HOJE É SEU ANIVERSÁRIO, POR ISSO LHE TROUXE UM PRESENTINHO. EU TERIA APENAS LHE COMPRADO UMA CERVEJA, MAS QUEM SABE ONDE ISSO TERMINARIA?
ENTÃO EM VEZ DISSO EU TROUXE UM SINO. EU ACHO QUE POSSO TER TIDO QUE PENHORAR SEU RELÓGIO PARA COMPRÁ-LO, MAS PARA QUE DIABOS VOCÊ PRECISAVA DE UM RELÓGIO?
VOCÊ DEVE ESTAR SE PERGUNTANDO:"POR QUE UM SINO?". NA VERDADE, EU ACREDITO QUE VOCÊ VÁ SE PERGUNTAR ISSO CADA VEZ QUE O ENCONTRAR EM SEU BOLSO. HÁ MUITAS DESSAS CARTAS, AGORA. CARTAS DEMAIS PARA QUE VOCÊ POSSA CAVÁ-LAS RETROSPECTIVAMENTE CADA VEZ QUE QUISER SABER A RESPOSTA A UMA PERGUNTA QUALQUER.
É UMA PIADA, EM REALIDADE. UMA PEÇA. MAS PENSE DESTE MODO: EU NÃO ESTOU TANTO RINDO DE VOCÊ QUANTO ESTOU RINDO COM VOCÊ.
GOSTO DE PENSAR QUE, CADA VEZ QUE VOCÊ O TIRAR DE SEU BOLSO E SE INDAGAR "POR QUE EU TENHO ESTE SINO?", UMA PEQUENA PARTE DE VOCÊ, UM PEDACINHO DE SEU CÉREBRO QUEBRADO, VAI LEMBRAR E RIR, COMO EU ESTOU RINDO AGORA.
ALÉM DISSO, VOCÊ SABE A RESPOSTA. ERA ALGO QUE VOCÊ APRENDEU ANTES. ENTÃO, SE PENSAR A RESPEITO, SABERÁ.
NOS VELHOS TEMPOS, AS PESSOAS ERAM OBCECADAS PELO MEDO DE SEREM ENTERRADAS VIVAS. LEMBRA-SE, AGORA?
NÃO SENDO A MEDICINA AQUILO QUE É HOJE, NÃO ERA INCOMUM AS PESSOAS ACORDAREM DE REPENTE EM UM CAIXÃO. ENTÃO OS RICOS FAZIAM COM QUE SEUS CAIXÕES TIVESSEM TUBOS PARA RESPIRAÇÃO. PEQUENOS TUBOS SAINDO PELA LAMA ACIMA PARA QUE, SE ALGUÉM ACORDASSE EM UM LUGAR ONDE NÃO DEVERIA ESTAR, NÃO FICASSE SEM OXIGÊNIO. SÓ QUE ELES DEVEM TER TESTADO O SISTEMA E PERCEBIDO QUE SE PODIA GRITAR ATÉ FICAR ROUCO PELO TUBO, MAS ELE ERA MUITO ESTREITO PARA PODER LEVAR O RUÍDO. NÃO ERA SUFICIENTE PARA CHAMAR A ATENÇÃO, PELO MENOS. ENTÃO UMA CORDINHA PASSAVA PELO TUBO ATÉ UM PEQUENO SINO PRESO À LÁPIDE. SE UM MORTO VOLTASSE À VIDA, TUDO O QUE TINHA QUE FAZER ERA TOCAR O SININHO ATÉ QUE ALGUÉM VIESSE E O CAVASSE NOVAMENTE.
ESTOU RINDO AGORA, AO IMAGINAR VOCÊ EM UM ÔNIBUS OU EM UM FAST FOOD, COLOCANDO A MÃO NO BOLSO E ENCONTRANDO SEU SININHO E SE INDAGANDO DE ONDE ELE VEIO, POR QUE VOCÊ O TEM. TALVEZ VOCÊ ATÉ O TOQUE.
FELIZ ANIVERSÁRIO, AMIGO.
EU NÃO LEMBRO QUEM DESCOBRIU A SOLUÇÃO DE NOSSO PROBLEMA MÚTUO, ENTÃO NÃO SEI SE DEVO PARABENIZAR A VOCÊ OU A MIM. UMA PEQUENA MUDANÇA NO ESTILO DE VIDA, ADMITO, MAS UMA SOLUÇÃO ELEGANTE, MESMO ASSIM.
PROCURE A RESPOSTA EM VOCÊ MESMO.
PARECE ALGO SAÍDO DE UM CARTÃO DE ANIVERSÁRIO. NÃO SEI QUANDO VOCÊ PENSOU NISSO, MAS EU LHE AGRADEÇO. NÃO QUE VOCÊ SAIBA DE QUE DIABOS EU FALO. MAS, HONESTAMENTE, FOI UM VERDADEIRO "BRAINSTORM". AFINAL, TODOS PRECISAM DE ESPELHOS PARA QUE SE LEMBREM DE QUEM SÃO. VOCÊ NÃO É DIFERENTE.
A VOZINHA MECÂNICA FAZ UMA PAUSA, DEPOIS SE REPETE. ELA DIZ: "SÃO 8H. ESTA É UMA CHAMADA DE CORTESIA". EARL ABRE SEUS OLHOS E PÕE O TELEFONE NO GANCHO. O TELEFONE SE APÓIA EM UMA CABECEIRA DE MADEIRA VAGABUNDA QUE SE ESTENDE POR TRÁS DA CAMA, FAZ UMA CURVA NO CANTO E TERMINA NO MINIBAR. A TV AINDA ESTÁ LIGADA, BOLHAS COR DE PELE SACUDINDO UMAS ÀS OUTRAS. EARL SE DEITA E SE SURPREENDE AO SE VER, MAIS VELHO, BRONZEADO, O CABELO SAINDO DA CABEÇA COMO CHAMAS SOLARES. O ESPELHO NO TETO ESTÁ RACHADO, A PRATA DESAPARECENDO EM MANCHAS. EARL CONTINUA A SE OBSERVAR, PERPLEXO COM O QUE VÊ. ESTÁ COMPLETAMENTE VESTIDO, MAS AS ROUPAS SÃO VELHAS, RASGADAS EM ALGUNS LUGARES.
EARL APALPA SEU PULSO ESQUERDO EM BUSCA DO RELÓGIO, MAS ELE NÃO ESTÁ LÁ. ELE PÁRA DE OLHAR O ESPELHO PARA OLHAR SEU BRAÇO. O PULSO ESTÁ DESCOBERTO E A PELE MUDOU PARA UM BRONZEADO CONTÍNUO, COMO SE ELE NUNCA HOUVESSE POSSUÍDO UM RELÓGIO. A PELE TEM UMA COR HOMOGÊNEA, COM EXCEÇÃO DA FLECHA PRETA SÓLIDA NA PARTE DE DENTRO DE SEU PULSO, APONTANDO PARA A MANGA DA CAMISA. ELE OLHA PARA A FLECHA POR UM MOMENTO. TALVEZ NÃO TENTE MAIS APAGÁ-LA, ESFREGANDO-A. ELE ENROLA A MANGA DE SUA CAMISA.
A FLECHA APONTA PARA UMA FRASE ESCRITA NA PARTE DE DENTRO DO BRAÇO DE EARL. EARL LÊ A FRASE UMA, TALVEZ DUAS VEZES. OUTRA FLECHA APARECE NO COMEÇO DA FRASE, APONTANDO MAIS PARA CIMA EM SEU BRAÇO, DESAPARECENDO SOB A MANGA ENROLADA. ELE DESABOTOA A CAMISA.

OLHANDO PARA SEU PEITO, ELE CONSEGUE VER AS FORMAS, MAS NÃO FOCALIZÁ-LAS, ENTÃO ELE OLHA PARA O ESPELHO EM CIMA DELE.
A FLECHA SEGUE PELO BRAÇO DE EARL, CRUZA SEU OMBRO, DESCE PELA PARTE DE CIMA DE SEU TRONCO, TERMINANDO EM UM RETRATO DE UM HOMEM QUE OCUPA A MAIOR PARTE DE SEU PEITO. É O ROSTO DE UM HOMEM GRANDE, QUE ESTÁ FICANDO CARECA, COM BIGODE E CAVANHAQUE. É UM ROSTO PARTICULAR, MAS, COMO UM RETRATO FALADO, TEM UMA CERTA QUALIDADE IRREAL.
O RESTO DA PARTE DE CIMA DE SEU TRONCO ESTÁ COBERTO DE PALAVRAS, FRASES, PEDAÇOS DE INFORMAÇÃO E INSTRUÇÕES, TODAS ESCRITAS PARA TRÁS EM EARL, E PARA A FRENTE NO ESPELHO.
ENFIM EARL SE ERGUE, ABOTOA A CAMISA E VAI ATÉ A MESA. ELE PEGA CANETA E UM PEDAÇO DE PAPEL DA GAVETA, SE SENTA E COMEÇA A ESCREVER.
NÃO SEI ONDE VOCÊ ESTARÁ QUANDO LER ISTO. NÃO SEI NEM SE VAI SE INCOMODAR EM LER ISTO. ACHO QUE NÃO PRECISA.
É UMA VERGONHA, NA VERDADE, QUE VOCÊ E EU NÃO NOS ENCONTRAREMOS NUNCA. MAS, COMO DIZ A CANÇÃO,"NO MOMENTO EM QUE VOCÊ LER ESTE BILHETE, EU TEREI PARTIDO".
ESTAMOS TÃO PERTO, AGORA. É ESSA A SENSAÇÃO. TANTAS PEÇAS ENCAIXADAS, ORGANIZADAS. ACHO QUE É SÓ QUESTÃO DE TEMPO ATÉ QUE VOCÊ O ENCONTRE.
QUEM SABE O QUE FIZEMOS PARA CHEGAR AQUI? DEVE SER UMA HISTÓRIA E TANTO, SE VOCÊ AO MENOS PUDESSE LEMBRAR ALGO DELA. ACHO QUE É MELHOR NÃO PODERMOS.
PENSEI NUMA COISA AGORA. TALVEZ VOCÊ ACHE ÚTIL.
TODOS ESPERAM O FIM CHEGAR, MAS E SE ELE JÁ HOUVER PASSADO POR NÓS? E SE A PIADA FINAL DO DIA DO JUÍZO FOR QUE ELE JÁ VEIO E JÁ PASSOU E NÃO NOS DEMOS CONTA? O APOCALIPSE CHEGA SILENCIOSO; OS ESCOLHIDOS SÃO PASTOREADOS AO PARAÍSO E O RESTO DE NÓS, AQUELES QUE NÃO PASSARAM NA PROVA, VÃO EM FRENTE, IGNORANDO. JÁ MORTOS, VAGANDO POR AÍ, BEM DEPOIS DE OS DEUSES PARAREM DE ANOTAR O PLACAR, AINDA OTIMISTAS COM RELAÇÃO AO FUTURO.
SE ISSO FOR VERDADE, ENTÃO NÃO IMPORTA O QUE VOCÊ FIZER. NÃO HÁ ESPERANÇA. SE VOCÊ NÃO PUDER ACHÁ-LO, ENTÃO NÃO IMPORTA, PORQUE NADA IMPORTA. E, SE VOCÊ O ACHAR, ENTÃO VOCÊ PODE MATÁ-LO SEM SE PREOCUPAR COM AS CONSEQUÊNCIAS. PORQUE NÃO HÁ CONSEQUÊNCIAS.
É NISSO QUE ESTOU PENSANDO AGORA, NESTE QUARTO PEQUENO E SUJO. FOTOS EMOLDURADAS DE BARCOS NA PAREDE. EU NÃO SEI, OBVIAMENTE, MAS, SE TIVESSE QUE CHUTAR, DIRIA QUE ESTAMOS EM ALGUM LUGAR DO LITORAL. SE VOCÊ SE PERGUNTA POR QUE SEU BRAÇO ESQUERDO ESTÁ CINCO VEZES MAIS MORENO QUE O DIREITO, NÃO SEI O QUE LHE DIZER. ACHO QUE DEVEMOS TER DIRIGIDO UM BOCADO. E, NÃO, EU NÃO SEI O QUE ACONTECEU COM O SEU RELÓGIO.
E TODAS ESSAS CHAVES: NÃO TENHO IDÉIA. NÃO HÁ UMA SEQUER QUE EU RECONHEÇA. CHAVES DE CARROS E CHAVES DE CASAS E CHAVEZINHAS DE CADEADOS. O QUE NÓS ESTIVEMOS FAZENDO?
EU ME PERGUNTO SE ELE VAI SE SENTIR IDIOTA QUANDO O ENCONTRARMOS. PERSEGUIDO PELO HOMEM DEZ-MINUTOS. ASSASSINADO POR UM VEGETAL.
EU ME IREI EM UM MINUTO. VOU BAIXAR A CANETA, FECHAR MEUS OLHOS, E VOCÊ PODERÁ LER ISTO, SE QUISER.
SÓ QUERIA QUE SOUBESSE QUE ESTOU ORGULHOSO DE VOCÊ. NÃO SOBROU NINGUÉM IMPORTANTE PARA DIZÊ-LO. NINGUÉM QUE SOBROU VAI QUERER DIZÊ-LO.
OS OLHOS DE EARL ESTÃO ESCANCARADOS OBSERVANDO PELA JANELA DO CARRO. OLHOS SORRIDENTES. SORRINDO ATRAVÉS DA JANELA PARA A MULTIDÃO QUE SE AGLOMERA DO OUTRO LADO DA RUA. A MULTIDÃO SE AGLOMERANDO EM VOLTA DO CORPO NA PASSAGEM. O CORPO ESVAZIANDO LENTAMENTE PELA CALÇADA E BUEIRO ADENTRO.
UM CARA ATARRACADO, ROSTO PARA BAIXO, OLHOS ABERTOS. FICANDO CARECA, COM CAVANHAQUE. NA MORTE, ASSIM COMO EM RETRATOS FALADOS, OS ROSTOS SE PARECEM. ESSE É COM CERTEZA ALGUÉM EM PARTICULAR. MAS PODERIA, MESMO, SER QUALQUER UM.
EARL AINDA SORRI PARA O CORPO ENQUANTO O CARRO SE AFASTA DO MEIO-FIO. O CARRO? QUEM PODE DIZER? TALVEZ SEJA UMA VIATURA DA POLÍCIA. TALVEZ SEJA SÓ UM TÁXI.
ENQUANTO O CARRO É ENGOLIDO PELO TRÁFEGO, OS OLHOS DE EARL CONTINUAM A BRILHAR NA NOITE, OBSERVANDO O CORPO ATÉ QUE ELE DESAPAREÇA EM UM CÍRCULO DE TRANSEUNTES PREOCUPADOS. ELE RI PARA SI MESMO ENQUANTO O CARRO CONTINUA AUMENTANDO A DISTÂNCIA ENTRE ELE E A MULTIDÃO CRESCENTE.
O SORRISO DE EARL DIMINUI UM POUCO. ALGO LHE OCORREU. COMEÇA A APALPAR OS BOLSOS; PRIMEIRO, SERENAMENTE, UM HOMEM PROCURANDO POR SUAS CHAVES, DEPOIS UM POUCO MAIS DESESPERADO. TALVEZ O SEU PROGRESSO ESTEJA IMPEDIDO POR UM PAR DE ALGEMAS. ELE COMEÇA A ESVAZIAR O CONTEÚDO DE SEUS BOLSOS NO ASSENTO A SEU LADO. ALGUM DINHEIRO. UM MONTE DE CHAVES. PEDAÇOS DE PAPEL.
UM PEDAÇO REDONDO DE METAL ROLA DE SEU BOLSO E DESLIZA PELO ASSENTO DE VINIL. EARL ESTÁ FRENÉTICO, AGORA. ELE BATE NA DIVISÓRIA DE PLÁSTICO ENTRE ELE E O MOTORISTA, IMPLORANDO AO HOMEM POR UMA CANETA. TALVEZ O TAXISTA NÃO SAIBA MUITO BEM INGLÊS. TALVEZ O POLICIAL NÃO TENHA O COSTUME DE FALAR COM SUSPEITOS. DE QUALQUER MODO, A DIVISÓRIA ENTRE O HOMEM DA FRENTE E O HOMEM DE TRÁS CONTINUA FECHADA. UMA CANETA NÃO VIRÁ.
O CARRO PASSA POR UM BURACO, E EARL PISCA E VÊ SEU REFLEXO NO ESPELHO RETROVISOR. ELE ESTÁ CALMO, AGORA. O MOTORISTA FAZ OUTRA CURVA, E O PEDAÇO DE METAL ESCORREGA DE VOLTA PARA SE APOIAR CONTRA A PERNA DE EARL COM UMA PEQUENA BADALADA. ELE O PEGA E O OLHA, CURIOSO. É UM SININHO. UM SININHO DE METAL. INSCRITOS NELE ESTÃO O SEU NOME E ALGUMAS DATAS. ELE RECONHECE A PRIMEIRA, O ANO EM QUE NASCEU. MAS A SEGUNDA NÃO SIGNIFICA NADA. NADA MESMO.
AO GIRAR O SINO EM SUAS MÃOS, ELE PERCEBE O ESPAÇO VAZIO ONDE COSTUMAVA FICAR SEU RELÓGIO. HÁ ALI UMA PEQUENA FLECHA, APONTANDO PARA SEU BRAÇO. EARL OLHA PARA A FLECHA E ENTÃO COMEÇA A DESENROLAR SUA MANGA.
"VOCÊ CHEGARIA ATRASADO A SEU PRÓPRIO FUNERAL", ELA DIZIA. LEMBRA-SE? QUANTO MAIS EU PENSO A RESPEITO, MAIS ME PARECE BANAL. QUE TIPO DE IDIOTA, AFINAL, ESTÁ COM PRESSA DE CHEGAR AO FINAL DA PRÓPRIA HISTÓRIA?
E COMO EU SABERIA SE ESTOU ATRASADO, AFINAL? EU NÃO TENHO MAIS UM RELÓGIO. NÃO SEI O QUE FIZEMOS COM ELE.
E PARA QUE DIABOS SE PRECISA DE UM RELÓGIO, AFINAL? ERA UMA ANTIGUIDADE. UM PESO MORTO AGARRADO AO SEU PULSO. SÍMBOLO DO VELHO VOCÊ. AQUELE VOCÊ QUE ACREDITAVA NO TEMPO.
NÃO. APAGUE ISSO. NÃO É TANTO QUE VOCÊ TENHA PERDIDO SUA FÉ NO TEMPO, É MAIS O TEMPO QUE PERDEU A FÉ EM VOCÊ. E QUEM PRECISA DELE, AFINAL? QUEM QUER SER UM DESSES TOLOS QUE VIVEM NA SEGURANÇA DO FUTURO, NA SEGURANÇA DO INSTANTE APÓS O INSTANTE EM QUE ELES SENTIRAM ALGO FORTE? VIVENDO NO PRÓXIMO INSTANTE, NO QUAL ELES NÃO SENTEM NADA. RASTEJANDO PELOS PONTEIROS DO RELÓGIO, LONGE DAS PESSOAS QUE LHES FIZERAM COISAS INDIZÍVEIS. ACREDITANDO NA MENTIRA DE QUE O TEMPO CURARÁ TODAS AS FERIDAS -QUE É APENAS UM JEITO SIMPÁTICO DE DIZER QUE O TEMPO NOS MATA.
MAS VOCÊ É DIFERENTE. VOCÊ É MAIS PERFEITO. O TEMPO SÃO TRÊS COISAS PARA A MAIORIA DAS PESSOAS, MAS PARA VOCÊ, PARA NÓS, É APENAS UMA. UMA SINGULARIDADE. UM INSTANTE. ESTE INSTANTE. COMO SE VOCÊ ESTIVESSE NO CENTRO DO RELÓGIO, NO EIXO SOBRE O QUAL GIRAM OS PONTEIROS. O TEMPO SEGUE À SUA VOLTA, MAS NUNCA SEGUE EM VOCÊ. ELE PERDEU SUA HABILIDADE DE AFETAR VOCÊ. O QUE É QUE DIZEM? QUE TEMPO É FURTO? MAS NÃO PARA VOCÊ. FECHE OS OLHOS E VOCÊ PODE COMEÇAR TUDO DE NOVO. EVOCAR A EMOÇÃO NECESSÁRIA, FRESCA COMO AS ROSAS.
TEMPO É UM ABSURDO. UMA ABSTRAÇÃO. A ÚNICA COISA QUE IMPORTA É ESTE MOMENTO. ESTE MOMENTO 1 MILHÃO DE VEZES. VOCÊ PRECISA CONFIAR EM MIM. SE ESTE MOMENTO SE REPETIR SUFICIENTEMENTE, SE VOCÊ CONTINUAR TENTANDO -E VOCÊ PRECISA CONTINUAR TENTANDO-, POR FIM VOCÊ CHEGARÁ AO PRÓXIMO ITEM DE SUA LISTA.

TRADUÇÃO DE VICTOR AIELLO TSU, TEXTO PUBLICADO NA "FOLHA DE SÃO PAULO".

PONTOS DE ENTRADA

PONTOS DE ENTRADA

·O ponto de entrada deve ser acessível, diferenciado e ter o potencial de atrair a atenção.

·Introdução direta do tema: quando o tema por si só, é atraente, pode ser apresentado no ponto de entrada do discurso. Esta é uma solução clássica.

·Recursos de Retórica. O uso desses recursos nos pontos de entrada do discurso podem melhorar a atratividade. Os mais usados são: trocadilhos, paráfrases, iconias, citações, etc.

·O exemplo ilustrativo: Um caso típico, dramático, pitoresco, notável que ilustre o tema atrairá a atenção para o tema se colocado no ponto de entrada do discurso.

·Aspectos atraentes do conteúdo. Pode-se destacar no ponto de entrada propriedades notáveis do tema como:

- Raridade
- Novidade
- Atualidade
- Proximidade com o receptor
- Possibilidade de empatia com o receptor.
- Possibilidade de envolvimento do receptor.
- Matéria de interesse humano.
- Curiosidades.

Adaptado de "Elementos de Retórica", de Radamés Manosso

EXPOSIÇÃO

EXPOSIÇÃO

Os fatos que não ficam evidentes ao espectador através do desenrolar dos acontecimentos na tela, mas dos quais precisa estar ciente, são tratados por um artifício chamado exposição. Podem ser fatos que aconteceram no passado, antes do desenvolvimento da história; podem ser sentimentos, desejos, deficiências do Personagem; ou ainda características específicas do local onde se passa a história.
Os modos mais fáceis e usados de fazer uma exposição são através de um conflito ou humor.
O grande Billy Wilder usava narrações em Off (voice over), geralmente feita pela personagem principal, como em Crepúsculo dos Deuses e Pacto de Sangue. A narração em Off corresponderia ao coro das peças gregas ou ao narrador de um romance literário.
O problema da exposição é que ela só é necessária ao espectador. Não é uma coisa que os personagens precisem saber no decurso da trama, salvo raras exceções. Por exemplo, um personagem tem medo de altura. Todos os colegas desse personagem sabem que ele tem esse medo. No dia à dia, no cotidiano da história, esse medo da personagem não será citado, mas o espectador precisa ter conhecimento disto. Permitir que esse personagem fale a qualquer momento "eu tenho medo de altura", soará por demais artificial. Em outras palavras, o conteúdo das exposições, na maioria das vezes, revela aquilo que os personagens já sabem, só que o espectador também precisa ser informado para vivenciar plenamente a história e as ações. O uso da exposição deve ser usado com comedimento, pois é um artifício mais narrativo do que dramático.
Uma exposição bem feita não deve parecer o que de fato é, ou seja, o espectador não deve perceber que aquilo foi uma exposição. Ernest Lehman, roteirista que trabalhou em diversos filmes de Hitchcock, dizia - Não deve parecer o que é na realidade.A exposição também pode ser feita pela ignorância do personagem a respeito de alguma coisa, como em Guerra nas Estrelas de George Lucas. O protagonista Luke Skywalker ouve o velho Ben Kenobi citar a respeito da Força (uma energia mística que envolve e penetra em tudo e todos). Como Luke desconhece o que é a Força, pergunta a Ben, que lhe explica sabiamente. É um modo menos sutil de apresentar uma exposição, que é válida somente quando há uma ignorância de um personagem à respeito de alguma coisa.

1.Elimine toda exposição que não for essencial ou que mais tarde, no decorrer da história ficará clara.
2.Apresente a exposição considerada necessária em cena que contenha conflito e, se possível, humor.
3.Adie o uso do material expositivo sempre que for possível até um momento posterior da história e aí transmita-o no momento de maior impacto dramático.
4. Use conta-gotas e não uma concha sempre que precisar apresentar a exposição necessária.

Texto extraído do livro "Teoria e Prática do Roteiro"
de Edward Mabley e David Howard

EXPOSIÇÃO COM ENIGMA ANTERIOR

A exposição, no caso do filme "SOB O DOMÍNIO DO MEDO", de Sam Peckinpah, veio acompanhada de uma temática importante do filme,isto é, o estupro.Foi um enigma lançado pelo roteirista, que deixou no ar a possível participação, no passado, da personagem interpretada por Dustin Hoffman.

Jorge Lobo

A FÁBULA DE MASSA

FÁBULA DE MASSA

A narrativa de massa é um pressuposto metodológico. Não há de ser encontrada com todos os seus elementos de caracterização. Resume as características formais típicas da narrativa com largo espectro de aceitação, que vem sendo usada exaustivamente na literatura de massa e em outras modalidades narrativas. As características são:

·Presença das seguintes partes: prólogo, desencadeamento, desenvolvimento, complicação, clímax e epílogo
·Unidade de ação
·Unidade de caráter dos personagens
·Causalidade
·Necessidade
·Verossimilhança interna
·Continuidade
·Desencadeamento com objetivo a atingir
·Ter um falso final
·Ter um anticlímax
·Na seqüência complicação - clímax deve ter uma inversão de tendência
·Imprevisibilidade
·Envolvimento
·Presentificação
·Final condizente com o envolvimento
·Sociabilidade
·Maniqueísmo
·Abundância de ação e emoção
·Background otimizado para o público-alvo.

As partes da fábula de massa

Prólogo: É a parte inicial da narrativa em que é colocada a situação inicial.

Desencadeamento: Sucede o prólogo e é a parte em que ocorre a ação cardeal que determina as demais ações cardeais da fábula. É um momento de aumento de tensão que fixa a atenção do receptor em definitivo à narrativa.

Desenvolvimento: Sucede o desencadeamento. É a parte central da narrativa na qual ocorre a maioria das ações cardeais.

Complicação: É parte do desenvolvimento. Começa num dado ponto do desenvolvimento e com ele termina, imediatamente antes do clímax. É a parte em que se verifica intensificação contínua. As características que podem se intensificar na complicação são:

·O envolvimento do receptor.

·A excitação das emoções do espectador.

·A velocidade da ação.

·A complexidade da ação.

·Os obstáculos para atingir os objetivos.

·A proximidade do objetivo a ser atingido.

·As dificuldades do personagem com quem o receptor simpatiza.

·O acirramento dos conflitos.

Clímax: É a parte da ação em que se dão as ações que resolvem o processo que se complicava. O clímax desata o nó que se apertava continuamente na complicação e que fora atado no desencadeamento.

Epílogo: Sucede o clímax. Insere a situação posterior a este.

Ordem de apresentação

A ordem de apresentação revela as ações e situações que formam a fábula. Uma fábula admite incontáveis ordens de apresentação.

Adaptado de "Elementos de Retórica", de Radamés Manosso

sábado, 4 de setembro de 2010

PEQUENO PANORAMA DO FILME NOIR A PARTIR DOS ANOS 70 - 9/ 2002

                                        "O PERIGOSO ADEUS", de Robert Altman.


O FILME NOIR A PARTIR DOS ANOS 70 - 9/2002

por Jorge Lobo

"...Filme noir foi um termo usado para descrever os filmes hollywoodianos da década de 40 e começo da de 50, nos quais eram retratados o submundo escuro e sombrio do crime e da corrupção. Filmes cujos heróis, bem como os vilões, eram cínicos, desiludidos e, frequentemente, solitários e inseguros, fortemente ligados ao passado e indiferentes quanto ao futuro. Em termos de estilo e técnica, o filme noir caracteristicamente abusa de cenas noturnas( internas e externas ), com cenários que sugerem realismo e com uma iluminação que enfatiza as sombras e acentua o clima de fatalidade."

Lista de filmes recentes que podem ser considerados noir:

O perigoso adeus, de Robert Altman

Chinatown, de Roman Polanski

A chave do enigma, de Jack Nicholson(continuação de Chinatown)

Corpos ardentes, de Lawrence Kasdan

Na calada da noite, de Robert benton

Fugindo do passado, de Robert Benton

O destino bate à sua porta*, de Bob Rafelson

Hammett - mistério em Chinatown, de Wim Wenders

A dama do cine Shangai, de Guilherme de Almeida Prado (único exemplar nacional do gênero)

O preço da traição, de Lee Tamahori

Los Angeles, cidade proibida, de Curtis Hanson

Blade runner - o caçador de andróides(noir + ficção científica)

Cliente morto não paga, de Carl Reiner

*Refilmagem

O NOIR NA TV

Boca do lixo(série de tv brasileira)

Fallen angels(série de tv norte-americana. Em vídeo, há duas compilações contendo alguns episódios dessa série: Fallen angels e Fallen angels - a inocência perdida

O PORQUÊ DO ENQUADRAMENTO DESSES FILMES NA CATEGORIA NOIR E COMENTÁRIOS SOBRE OS FILMES

-O filme noir é fundamentalmente pessimista, o que, sem dúvida é um traço desses filmes(embora tenhamos concessões comerciais em alguns deles)

-A personagem Philip Marlowe, de Raymond Chandler, interpretado por Humphrey Bogart em À beira do abismo,de Howard Hawks e por Dick Powell em Até à vista, querida, volta à cena nos anos 70, interpretado por Elliott Gould em O perigoso adeus, de Robert Altman, e nos anos 80, na colagem cinematográfica de Cliente morto não paga.

-O detetive, nesses filmes da nova fase do noir, novamente aparece como uma figura ambígua: é visto com desconfiança tanto pela polícia(que o considera um gangster camuflado) quanto pelos bandidos(que o vêem como fazendo parte da polícia).

-Ambiguidade figurativa: a violência, o vício, a corupção sempre são mostrados com um certo fascínio, mistério, aventura.

-Chinatown, de Roman Polanski - Detetive particular(Jack Nicholson), contratado por uma misteriosa mulher acaba se metendo em intrincadas aventuras, envolvendo especulação imobiliária, corrupção e mortes. Talvez o melhor filme da fase mais recente do noir, tem trama ambientada na Los Angeles dos anos 30, na tradição dos romances policiais de Dashiel Hammett e Raymond Chandler e traz um roteiro muito bem elaborado(por Rober Towne, que aliás ganhou um oscar pelo trabalho). Polanski faz uma ponta, como o bandido que esfaqueia Nicholson no nariz(meteu o nariz onde não era chamado) e John Huston(um mito do gênero) aparece em um papel pequeno, mas importante.

-Corpos ardentes, de Lawrence Kasdan, teve sua trama inspirada em Pacto de sangue, de Billy Wilder, um clássico noir. Já O destino bate à sua porta, além de ser refilmagem do filme de mesmo título de 1947, é baseado em uma novela de James M. Cain, o mesmo de Pacto de sangue.

-Los Angeles - cidade proibida, de Curtis Hanson - A trama policial do filme é baseada no livro homônimo de James Ellroy. Livro e filme pretendem ser uma radiografia moral e social da Los Angeles dos anos 50, época em que a cidade ganhou status de metrópole do futuro: na superfície, o glamour da indústria de filmes de Hollywood, os progressos urbanos, por baixo, políticos e policiais corruptos, drogas e sexo fácil. O roteiro de Hanson e Brian Helgeland, baseado no livro de Ellroy, é bem elaborado, mas peca por se render ao comercialismo expresso na invulnerabilidade dos protagonistas e no final feliz, características dispensáveis para o gênero.

-Fugindo do passado, de Robert Benton - Paul Newman é um detetive particular aposentado que vive na casa anexa à mansão das ex-estrelas de cinema, Gene Hackman e Susan Sarandon, seus grandes amigos. Susan foi casada com outro ator enquanto mantinha um caso extraconjugal com Hackman. Seu marido acabou sendo assassinado, embora o corpo nunca tenha aparecido durante os últimos 20 anos, que ela viveu ao lado de Hackman. Devido a fatos inesperados Newman acaba ficando contra o casal.O filme é marcado pela nostalgia. Primeiro pela escolha do elenco: Susan Sarandon, Gene Hackman, Paul Newman, James Garner. O estilo do filme segue muito bem a trilha noir, inclusive com voz off da personagem principal e trilha sonora que empresta mistério à ação.O roteiro é bom.

-Cliente morto não paga - Steve Martin atua como Rigby, um detetive particular muito amigo de Philip Marlowe(um dos detetives particulares mais famosos da história do cinema). Ele acredita piamente nos ensinamentos do amigo, como "balas não matam; o amor, sim". Logo no início do filme, Rigby é contratado por Juliet forrest(Rachel Ward), a filha de um famoso cientista falecido em um acidente de carro. Ela acredita que o pai foi assassinado, e quer que o detetive descubra como e porquê. No decorrer das investigações, Rigby encontra várias personagens retirados diretamente dos velhos filmes noir, interpretados por: Bette Davis, Kirk Douglas, Burt Lancaster, Ingrid Bergman, Humphrey Bogart(como o próprio Marlowe), Vincent Price e outros. A história foi feita sob medida para que as antigas cenas se encaixassem na investigação de Rigby. A necessidade de adequar as antigas sequências às novas fez com que o roteiro ficasse desconexo, era preciso mais criatividade para fazer com essa articulação um filme mais interessante. Ainda assim, vale a pena conferir.

-O preço da traição, do neozelândes Lee tamahori, é um filme localizado em 1954, ano em que o crime organizado nos EUA parecia estar com os dias contados. Era também a época de testes nucleares- a primeira bomba H explodiu em 1952- e vale a pena prestar atenção no pavilhão de cancerosos, que aparece à certa altura do filme.Max Hoover(Nick Nolte) acha que vale tudo para combater o crime, até atropelar a lei em certos casos. Hoover é feliz no casamento com Katherine( Mellanie Griffith), mas teve uma breve ligação com Alison Pond(Jennifer Connely) que aparece morta e joga o ex-amante numa crise de grandes proporções envolvendo desde seu próprio casamento até a segurança nacional. O filme, apesar de seu bom elenco, peca no mesmo quesito de Los Angeles - cidade proibida: o roteiro protege demais o protagonista.

-Boca do lixo, de Roberto Talma é uma série de tv brasileira de 1990, que conta a história de uma atriz de pornochanchada que abandona a carreira pra se casar com um empresário e, insatisfeita com sua indiferença, cai nos braços de um chefe de obras, responsável pela construção de sua casa.

-Fallen angels é uma série de tv noir norte-americana iniciada em 1993, que traz adaptações de contos policiais em curtas de trinta minutos cada, com introdução em preto e branco.

ESTENDENDO O ASSUNTO SOBRE FILME NOIR:

Título: O outro lado da noite - filme noir
Autor: Antônio C. de Mattos

UMA ENTREVISTA COM JORGE LUÍS BORGES

Alvaro Miranda

Do "Foro Literário", Uruguai - 1978

Para um autor que nasceu com o século e leva mais de cinqüenta anos dedicados à literatura, um escritor controvertido, já louvado, já repudiado, sempre discutido, aplaudido por uns, rechaçado por outros, um escritor mimado, mitificado, consagrado como um dos maiores escritores de fala hispânica - para muitos, o maior -, que foi censurado por suas declarações, criticado por seus detratores e exaltado por seus apologistas, admirado e venerado como mestre indiscutível em universidades e salas de conferências, e tudo isto, muitas vezes, sem um cabal conhecimento de sua obra, sem uma consciência exata de seu estrito valor literário, conceder outra entrevista podia ser uma forma de alimentar essa fogueira. No entanto, Jorge Luís Borges parece estar além de todas as críticas e de todos os aplausos. Sabe que sua obra fala por ele.

Entrevistar Borges? O que não se disse ainda? O que o próprio Borges já não disse sobre si mesmo? Difícil tarefa que representa, acima de tudo, um desafio. É impossível enumerar a lista de entrevistas que concedeu, concede e concederá com generosidade não isenta de complacência. Mesmo quando tudo parece dito, a particularidade de Borges consiste em extrair de uma conversa - especialmente se está centrada na literatura - um apontamento, um detalhe erudito, uma glosa, um esboço ou um curioso gracejo. Borges aparece então quase tão inabarcável como os imaginários universos que constrói com sua lucidez de artífice. Por isso cada entrevista não esgota sua personalidade, sua escritura, pelo contrário, as enriquece e projeta para novos horizontes de aplicação significativa.

Pergunta - Por ocasião de uma entrevista realizada na França, você manifestou que, em sua opinião, as teorias literárias não tinham importância...

Resposta - Eu creio que não. Creio que o importante é o exercício da literatura.

P - Mas a teoria advém como ente organizador da confusão da obra...

R - Creio que a teoria pode ser um estímulo em muitos casos. Por exemplo, descreio da democracia, mas se Walt Whitman tivesse descrito da democracia não teria podido nos dar sua obra extraordinária. Descreio enfaticamente do comunismo, mas se Neruda houvesse descrido do comunismo teria seguido sendo um medíocre poeta romântico. Se Carlyle não houvesse tido a visão de que a História é a história dos heróis, não teria deixado sua obra extraordinária. Creio que as teorias são estímulos para cada escritor. Pessoalmente, admiro o Império Britânico e lamento que tenha declinado; a fé no Império Britânico foi uma das causas de Kipling, que lhe permitiu realizar uma obra esplêndida e isso não se pode negar. É absurdo julgar um autor por suas opiniões; as opiniões de um autor são importantes para ele porque podem ser estímulos, podem ser impulsos para sua obra, mas não têm por que importar aos demais. Seria absurdo, por exemplo, que eu negasse o valor poético de Neruda dizendo que descreio do comunismo. Perfeitamente, descreio do comunismo, mas ele não descria e pôde executar sua obra.

P - Você considera que seu renome internacional deve-se, em maior parte, à sua narrativa e não à sua poética e ensaística. Não existe nisso um menosprezo do trabalho poético?

R - A mim pessoalmente me agradam meus versos. Mas, em geral, meus amigos acreditam que sou um prosista intruso na poesia. Ao contrário, creio ter escrito bons contos, mas esses contos estão mais longe de mim do que minhas poesias, mesmo nas milongas, por exemplo.

P - Por que se declara incapaz de escrever um romance?

R - Não sou escritor de romances porque não sou leitor de romances. Li muito pouco romances. Há para mim um romancista... seria o romancista: Joseph Conrad, é o polaco que enriqueceu a literatura inglesa, é o romancista e o contista. Sei que ao dizer isto estou um pouco distante do que geralmente se pensa. Depois pensaria também em Stevenson. Sobre Stevenson escreveu muito elogiosamente André Gide, com frases que teriam agradado demais a Stevenson: ``Se a vida o embriaga, como um champanhe bem leviano, bem ligeiro...” Que lindo, não? E como teria agradado a Stevenson a imagem do champanhe, ele que gostava tanto de champanhe.

P - Conheço a atração que exercem sobre você as literaturas anglo-saxãs. Especificamente a respeito da literatura alemã, que juízo sobre o Romantismo e quais as figuras que, dentro deste movimento, lhe impressionam mais profundamente?

R - O Romantismo surge na Escócia, por volta de 1750, com o Ossián, de Macpherson, que foi trazido por Goethe e cuja única passagem facilmente legível encontra-se em “Die Leiden des jungen Werthers”, onde diz: “Ossián superou Homero... etc.” Eu pensava em escrever um trabalho sobre Macpherson. Sempre foi acusado de ter sido um falsário e não creio que fosse um falsário. Creio que ele tomou fragmentos de antigos textos celtas e fez um poema, mas foi grande poeta, um poeta que se sacrificou por sua pátria, preferia que as pessoas acreditassem que a Escócia havia escrito um grande poema e não que ele o havia escrito, é muito raro um homem que faz isso, não? Você sabia que nos despachos de Napoleão encontraram frases da versão italiana do Ossián, de Macpherson? De qualquer maneira, é estraordinário que o Romantismo surja no século XVIII.

P - Por que?

R - Porque é visto como o século da Razão. Creio que há outro livro que deve ter sido muito importante no movimento romântico e que não se menciona nunca: é a versão que na primeira década do século XVIII faz de As mil e uma noites Antonie Galland. Imagine você, esse livro lido por gente que estava no ambiente de regulamentações, de proibições, de Boileau e que irrompa um livro como As mil e uma noites nesse mundo ordenado da França. Deve ter sido extraordinário.

P - Para Borges, Ossián superou Homero?

R - Homero é inquestionavelmente um grande poeta, isso não se pode negar. Mas, devo cair aqui em uma heresia: para mim, a Odisséia é muito superior à Iliáda. A Ilíada tem algo de ignóbil, o tema de cantar a ira de um homem. Podemos salvar Homero supondo que se preferimos Heitor é porque ele também preferia Heitor. Creio que visto assim... por que todo mundo sente simpatia por Tróia e por Heitor e ninguém sente simpatia pelos gregos? É porque são melhor mostrados os troianos. Podemos supor que Homero, mesmo sendo grego, estava intimamente do lado dos troianos. Se todo mundo leu a Iliáda do ponto de vista de Tróia é porque o autor também a escreveu do ponto de vista de Tróia. Não creio que se equivocasse. Todos queriam descender dos troianos e ninguém quis descender de Aquiles. Posso lhe dar um dado bastante curioso: estava lendo a História dos reis da Noruega, de Snorri Sturluson, e há uma referência a Thor, o deus do trovão, e este homem escreve no século XIII, na Islândia, e diz que Thor era, sem dúvida alguma, proveniente de Héc-Thor. Todos queriam ser troianos, mesmo esse homem, ali no distante norte, queria que seus deuses fossem troianos. E depois, sempre que se fala de Odin se diz que veio de Tróia. Todos sentiam atração por Tróia. Nâo lhes ocorria dizer que eram parentes de Aquiles ou de Agamenon.

P - Em um de seus livros, você cita as palavras de Coleridge: ``todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos''. Se isto é assim, a qual grupo se consideraria pertencente?

R - Essa era a opinião de Coleridge: todo homem nasce aristotélico ou platônico e diz que seria muito difícil encontrar uma terceira categoria. Eu diria que sou aristotélico, sou incapaz de idéias gerais, sou capaz de conceitos concretos, incapaz de uma teoria da estética...

P - No entanto, grande parte de sua obra é sumamente platônica, idealista.

R - Ah, é que sou idealista em Filosofia, também. Sim, desde já, creio que ninguém é absolutamente aristocrático ou platônico, sequer Platão ou Aristóteles, que devem ter-se entendido por outro lado.

P - Borges, a respeito da literatura contemporânea...

R - Não conheço a literatura contemporânea. Perdi a vista em 1955. Dediquei-me a estudar o anglosaxão, depois a estudar o escandinavo, mas não conheço a literatura contemporânea.

P - Revivamos uma antiga polêmica? O que é literatura: um ente autotélico ou um ente ancilar?

R - Ancilar não, desde já. A literatura é um fim em si, é um meio. Se vivo para a literatura, se minha vida é uma vida essencialmente literária, se vejo tudo em função da literatura... não me importa ter sido desventurado porque essa desventura também tem sua dor literária... em meu caso, escrever é um destino.

P - Há autores sobre os quais você costuma abundar em reflexões. Gostaria agora de escutar sua opinião sobre alguns autores clássicos espanhóis. Por exemplo, você manifestou em uma entrevista que a literatura espanhola começa com o Romanceiro.

R - Creio que sim. O Poema del Cid me parece muito carregado. É um começo muito desventurado. Agora, é uma lástima que a épica tenha desaparecido. A épica era narrativa e era poética. Vamos aceitar o conceito tradicional de Homero como fonte da literatura grega; pois Homero não somente é pai de toda a poesia que se fez depois, como também do romance que se fez depois. O que é a Odisséia senão um romance de aventuras? E agora o que resta? Alguns filmes do faroeste que são épicos, um livro como Sete pilares da sabedoria, de Lawrence... não sei até onde é um livro épico, creio que é demasiado reflexivo para ser épico; Lawrence é demasiado inteligente para ser um grande poeta épico, não? Creio que Kipling era épico.

P - Em Kipling havia possivelmente um espírito épico...

R - Tinha um espírito épico, sim... Há algo que se encontra na literatura portuguesa e que falta totalmente na espanhola e que é o sentido do mar, não?, é toda literatura mediterrânea, em Dom Quixote não se sente o mar, Fray Luis fala do mar... é uma lástica que tenha faltado o mar na literatura espanhola, mas é natural, um país mediterrâneo... que interessante, estava lendo uma história sobre o fracasso da Armada Invencível, parecia que poderia triunfar e não triunfou por um detalhe que foi muito importante em lugar de eleger a marinha galega e a portuguesa, elegeu a marinha catalã, que estava acostumada com o Mediterrâneo, e quando tiveram que se ver com os mares do norte naturalmente fracassaram, porque tinham que enfrentar os ingleses, acostumados a esses mares. Com esse detalhe poder-se-ia ter modificado toda a História. Que interessante pensar que se houvessem elegido outra marinha podiam haver triunfado, não?

P - Benedetto Croce estabelecia uma necessária distinção entre poeta, o que cria obras originais, e literato, o que faz obras úteis mas repetitivas...

R - A palavra gramático diz exatamente o mesmo. Só que gramático está em grego e literato em latim, mas é a mesma idéia de letra. Quando se fala de Saxo Grammaticus não se quer dizer que esse historiador dinamarquês foi um gramático, quer dizer que era um literato, um homem que havia lido muito.

P - Em nosso século, Ezra Pound e recentemente Ernesto Sábato dotaram a expressão literato de um matiz pejorativo ao referi-la a um escritor carente de originalidade.

R - Que interessante, quem sabe, um dos que começaram com isso foi Verlaine, não? Lembra? ``... tout le reste est litterature''. Ali a palavra literatura está usada depreciativamente e usada por um grande literato e um grande poeta como Verlaine, não? Agora se usa literato no sentido de retórico, no sentido depreciativo.

P - E a originalidade, é possível?

R - Não creio que seja possível. Para começar, todos escrevemos no contexto de um idioma. De um idioma podemos pensar o que queremos mas já é uma tradição. Se estou no idioma espanhol estou dentro da literatura espanhola e mais exatamente na literatura castelhana. Sem dúvida, pesam sobre mim tradições cujos nomes não ouvi nunca. Todo o passado está pensando sobre mim. Quem sabe Walt Whitman foi original, mas se pensamos que ele havia lido os hindus, que ele havia lido os salmos da Bíblia, que havia lido Emerson, não sei onde está o original, não? Claro que isso não diz nada, porque todos temos ao nosso alcance os grandes livros, todos podemos ser grandes escritores e no entanto não ocorre assim, não? O Modernismo foi para mim o movimento literário mais importante da literatura espanhola e foi muito injusto quando se disse que tudo o que eles escreveram já estava mais ou menos prefigurado e talvez ultrapassado em Hugo, em Verlaine. Mas esses livros estavam ao alcance de todos e no entanto nem todos foram Rubén Dario.

P - O ritmo de desenvolvimento das Artes não costuma ser iniforme e equilibrado. Há perídos fecundos em uma ou duas expressões artísticas e ao mesmo tempo lentos e mesmo estáticos em outras formas artísticas...

R - A Inglaterra deu filosofia e deu poesia, mas não deu outras artes especialmente. Creio que a Inglaterra contribuiu muito escassamente para a música e a arquitetura. Tenho uma quarta parte de sangue inglês. Quero pessoalmente a Inglaterra e orgulha-me de ter sangue inglês; no entanto, creio que é uma lástima que se tenha passado do inglês para o francês, não porque creia que o idioma francês seja superior ao idioma inglês, mas sim por este fato que é muito significativo e que ninguém notou até agora: quando todos estudamos francês o fazemos em função da cultura francesa, estudava-se francês para ler Montaigne, Voltaire, Hugo, Verlaine. Ao contrário, agora não se estuda inglês senão com fins comerciais, é o subalterno inglês dos Estados Unidos, mas se estuda com fins comerciais, não com fins literários; o francês era estudado como em uma época se estudava o latim, as pessoas estudavam latim para ler Horácio, Virgílio, Sêneca, Tácito.

ESTENDENDO O ASSUNTO SOBRE BORGES:

Título: História universal da infâmia( atenção para a introdução, que traz comentários interessantes sobre a obra de Borges )

Título: O livro de areia

Título: Ficções