terça-feira, 23 de agosto de 2011

A HISTÓRIA DE JOÃO DE FERRO


Era uma vez um rei que tinha, próximo de seu castelo, uma enorme floresta onde viviam animais selvagens de todos os tipos. Um dia ele mandou um caçador à floresta para caçar um veado, mas o homem não voltou. “Alguma coisa errada aconteceu ali”, disse o rei, e no dia seguinte mandou mais dois caçadores `a procura do primeiro, mas também eles não voltaram. No terceiro dia, chamou todos os seus caçadores e disse: “Busquem em toda a floresta, e só voltem quando tiverem encontrado os três homens.”
Nenhum desses caçadores jamais voltou e, além disso, também não voltou a matilha de cães que levaram com eles.
Ninguém ousou mais entrar na floresta, e deixou-a tranquila em seu profundo silêncio e solidão.Somente uma águia ou um gavião às vezes a sobrevoavam.
Essa situação perdurou durante anos, até que certo dia um estranho caçador apareceu,querendo trabalho, e ofereceu-se para penetrar na floresta perigosa.
O rei, porém, não permitiu, dizendo: “Não é seguro entrar ali.Tenho a sensação de que você acabará como os outros, e nunca mais o veremos.” O caçador respondeu: “Senhor, conheço perfeitamente o risco, e medo não tenho.”
O caçador chamou seu cachorro e entrou na floresta. Logo depois, o animal sentiu o cheiro de caça e saiu em sua perseguição. Mal deu, porém, três passadas, viu-se na beirada de um poço profundo e não pôde continuar. Um braço saiu da água, agarrou o cachorro e puxou-o para baixo.
Quando o caçador viu isso, voltou ao castelo, chamou três homens com baldes, e eles esgotaram a água do poço.Ao chegar ao fundo, viram ali um Homem Natural deitado, que tinha o corpo marrom como o ferro enferrujado. Seu cabelo ia desde a cabeça e o rosto por todo o corpo, até os joelhos. Amarraram-no com cordas e o levaram até o castelo.
Ali, houve grande espanto com esse Homem Natural, e o rei mandou trancá-lo numa jaula de ferro e colocá-lo no pátio, proibindo, sob pena de morte, que a porta da jaula fosse aberta. E confiou a guarda da chave `a rainha. Feito isso, as pessoas voltaram a entrar sem perigo na floresta.
O rei tinha um filho de oito anos, o garoto estava um dia brincando no pátio, quando sua bola dourada caiu dentro da jaula.O menino correu para a jaula e disse: “Devolve-me a minha bola dourada.” O homem respondeu: “Só se abrires a porta para mim.”Disse o menino: “Ah, não, isso eu não posso fazer. O rei proíbe”, e saiu correndo.No dia seguinte o menino voltou e pediu novamente a bola.O Homem Natural repetiu, “Se abrires a porta”, mas o menino não quis. No terceiro dia, tendo o rei saído para caçar, o menino voltou e disse: “Mesmo que eu quisesse não poderia abrir a porta, porque não tenho a chave.” O Homem Natural respondeu: “A chave está debaixo do travesseiro da tua mãe. Podes apanhá-la.”
O menino, que queria muito a sua bola de volta, esqueceu a cautela, entrou no castelo e apanhou a chave. Não foi fácil abrir a porta da jaula, e ele machucou o dedo. Quando a porta se abriu, o Homem Natural entregou a bola dourada ao menino e correu.
Súbito, o menino sentiu um grande medo. Chorou e saiu gritando atrás do fugitivo: “Homem Natural, se fores embora, eles vão me bater!” O Homem Natural voltou-se, colocou o menino nos ombros e dirigiu-se rapidamente para a floresta.
Quando o rei voltou, viu a jaula aberta e perguntou `a rainha como o Homem Natural pudera fugir. Ela de nada sabia, foi procurar a chave e viu que tinha desaparecido.Chamou o menino e ninguém respondeu. O rei mandou um grupo de homens procurar nos campos, mas ninguém o encontrou. Não foi difícil imaginar o que tinha acontecido, e um grande sofrimento e luto caiu sobre a casa real.

Quando o Homem Natural chegou novamente `a floresta escura, tirou o menino dos ombros, colocou-o no chão e disse: “ Nunca mais verás tua mãe nem teu pai, mas eu ficarei contigo, pois me libertaste e tenho pena de ti. Se fizeres tudo o que eu mandar, as coisas correrão bem. Tenho muito ouro e tesouros, mais do que qualquer outra pessoa no mundo”.
O Homem Natural preparou uma cama de folhas para o menino dormir, e pela manhã levou-o a uma fonte. “Estás vendo esta fonte dourada? É clara como cristal, e cheia de luz.Quero que fiques sentado junto dela e vigies para que nada caia dentro dela, pois se isso acontecer, a fonte será prejudicada. Voltarei todas as tardes para ver se me obedeceste.”
O menino ficou sentado à beira da fonte.Vez por outra, via um peixe ou uma cobra dourados, e vigiava para que nada caísse lá dentro. Mas seu dedo começou a doer muito e, sem pensar, ele o mergulhou na água. Retirou-o imediatamente, mas viu que o dedo ficara dourado, e por mais que o lavasse, o dourado não saía.
João de Ferro voltou naquela tarde e perguntou: “ Aconteceu hoje alguma coisa com a fonte?”
O menino escondeu o dedo `as costas para que João de Ferro não visse, e disse: “Não aconteceu nada.”
“Ah, mergulhaste o dedo na fonte!” observou o Homem Natural. “Deixaremos passar desta vez, mas não o faças de novo.”
Na manhã seguinte, bem cedo, o menino sentou-se junto “a fonte, vigiando-a. Seu dedo ainda doía ,e, depois de algum tempo, ele passou a mão pelos cabelos. Um fio, porém soltou-se e caiu na fonte. Abaixou-se imediatamente e apanhou-o, mas o fio de cabelo já ficara dourado.
Quando João de Ferro voltou, viu o que tinha acontecido. “Deixaste um cabelo cair na fonte. Vou lhe perdoar ainda, mas se acontecer uma terceira vez, a fonte estará arruinada e não poderás mais ficar comigo.”
No terceiro dia, sentado junto `a fonte, o menino decidiu que, por mais que seu dedo doesse, não o movimentaria. O tempo passava lentamente, e o menino começou a fitar o reflexo do seu rosto na água. Teve vontade de olhar nos próprios olhos,e, ao fazê-lo, inclinou-se cada vez mais. Seus longos cabelos caíram-lhe então sobre a testa e em seguida na água. Recuou, mas agora os seus cabelos, todos, estavam dourados e brilhavam como se fossem o próprio sol. O menino teve medo! Pegou um lenço e cobriu a cabeça para que o homem natural não visse o que tinha acontecido. Mas quando joão de Ferro chegou, percebeu imediatamente. “Tira o lenço da cabeça”, disse ele. A cabeleira dourada caiu sobre os ombros do menino, e ele se manteve calado.
“Não podes mais ficar aqui, porque não passaste na prova. Agora sai pelo mundo, onde aprenderás o que é a pobreza. Não vejo, porém, o mal no teu coração, e te desejo o bem, motivo pelo qual te concedo um dom: sempre que estiveres em dificuldades, vem à orla da floresta e grita: “João de Ferro, João de Ferro!” Eu virei ao teu encontro para te ajudar. Meu poder é grande, maior do que pensas, e tenho ouro e prata em abundância.”

O filho do rei deixou então a floresta e caminhou por trilhas abertas e por matas cerradas até finalmente chegar a uma grande cidade. Procurou trabalho, mas não encontrou- nada tinha aprendido que lhe pudesse ser útil. Por fim, foi ao palácio e perguntou se o aceitavam para algum serviço. A gente da corte não sabia o que fazer com ele, mas gostou do menino e permitiu que ficasse. O cozinheiro tomou-o a seu serviço, mandando-o carregar lenha e água, e varrer as cinzas.

Certa vez, não havendo mais ninguém para fazê-lo, o cozinheiro mandou o menino levar a comida `a mesa
real, mas como ele não queria que seu cabelo dourado fosse visto, não tirou o gorro. Isso jamais tinha acontecido na presença do rei, e este disse: “Quando você vier `a mesa real, tem de tirar o gorro.” O rapaz respondeu: “Ah!, senhor, não posso; tenho um ferimento na cabeça.” O rei chamou o cozinheiro, censurou-o e perguntou-lhe por que tomara aquele rapaz a seu serviço, e ordenou que o mandasse embora do castelo.

O cozinheiro, porém, teve pena dele, e trocou-o por um ajudante de jardineiro.
Agora o rapaz do cabelo dourado tinha de cuidar das plantas no jardim, regá-las, tratá-las com enxada e pá e deixar que o vento e o mau tempo fizessem o que lhes aprouvesse.
Certa vez, no verão, quando trabalhava no jardim sozinho, o calor aumentou tanto que ele tirou o gorro para que a brisa lhe refrescasse a cabeça. Quando o sol tocou seus cabelos, estes brilharam de tal modo que os raios se refletiram até o quarto da filha do rei, que foi olhar o que era. Viu o rapaz lá fora e o chamou: “Rapaz, traga-me um ramalhete de flores!”
Ele recolocou depressa o gorro, colheu flores silvestres para ela e amarrou-as num ramo. Quando ia subir as escadas com as flores, o jardineiro o viu e disse: “O que é isso, você está levando essas flores ordinárias para as filhas do rei? Anda, compõe outro buquê, com as melhores e mais belas flores que tivermos.”
“Não”, respondeu o rapaz, “as flores silvestres têm perfume mais forte e agradarão mais à filha do rei.”
Quando o rapaz entrou no quarto, a filha do rei disse: “Tire o gorro, não deves usá-lo na minha presença.”
Ele respondeu: “Não ouso fazer isso. Tenho sarna na cabeça.”A moça, porém, agarrou o gorro e o arrancou; os cabelos dourados caíram sobre os ombros do rapaz, num belo espetáculo: Ele correu para a porta, mas a moça segurou-o pelo braço e entregou-lhe um punhado de moedas de ouro. Apanhou-as e saiu, mas não lhes deu valor. Na verdade, entregou-as ao jardineiro, dizendo: “Leve-as para seus filhos – eles as usarão para brincar.”
No dia seguinte a filha do rei chamou novamente o rapaz ao seu quarto e ordenou-lhe que trouxesse mais flores silvestres. Ao chegar com elas, a princesa tentou arrancar-lhe o gorro, mas o rapaz o segurou com as duas mãos. Mais uma vez, a princesa deu-lhe um punhado de moedas de ouro, mas ele se recusou a guardá-las, dando-as ao jardineiro como brinquedos para seus filhos.
No terceiro dia, as coisas aconteceram do mesmo modo: a moça não conseguiu arrancar-lhe o gorro e ele não guardou as moedas de ouro.

Pouco depois, o país foi varrido pela guerra. O rei reuniu suas forças, embora duvidando que pudesse vencer o inimigo, que era poderoso e dispunha de enorme exército. O ajudante de jardineiro disse: “Eu agora estou crescido e irei para a guerra se me derem um cavalo.” Os homens mais velhos riram e disseram: “Quando tivermos partido, procure na cocheira. Vamos deixar um cavalo para você.”
Quando todos se foram, o rapaz foi à cocheira e tirou o cavalo: era manco de uma perna e capengava. Montou-o, e dirigiu-se à floresta escura.
Quando chegou à orla, gritou três vezes “João de Ferro”, tão alto que o grito ecoou pelas árvores.
Num momento o homem natural lhe apareceu e perguntou: “O que desejas?”
“Quero um cavalo de batalha bem forte, porque pretendo ir à guerra.”
“Tu o terás e mais ainda do que pediste.”
O Homem Natural voltou-se, retornou à floresta, e pouco depois um cavalariço saía de entre as árvores puxando um cavalo de batalha que soprava pelas ventas e era difícil de conter. Correndo atrás do cavalo vinha um grande grupo de guerreiros totalmente vestidos em armaduras, as espadas brilhando ao sol. O rapaz entregou ao cavalariço o seu cavalo manco, montou o novo animal e saiu cavalgando à frente dos soldados. Quando se aproximava do campo de batalha, uma grande parte dos homens do rei já tinha sido morta, e pouco faltava para que ele sofresse uma derrota total.
O rapaz e seus guerreiros galoparam sobre o inimigo como um furacão e derrubaram todos os seus adversários. O inimigo fugiu, mas o rapaz o perseguiu até o último homem. Depois, em vez de voltar para a presença do rei, levou seu grupo por caminhos pouco conhecidos de volta à floresta, e chamou João de Ferro.
“O que queres?”, perguntou o Homem Natural.
“Podes levar de volta o teu cavalo e teus homens, e devolve-me o meu cavalo manco.”
Tudo foi feito como ele pediu, e lá se foi o rapaz de volta ao castelo num animal que mancava.
Quando o rei voltou, sua filha congratulou-se com ele pela vitória.
“Não fui eu quem a conquistou, mas um cavaleiro estranho com seus guerreiros, que chegaram para me ajudar.”
A filha perguntou quem era esse estranho cavaleiro, mas o rei não sabia e acrescentou: “Ele galopou em perseguição do inimigo, e não o vi mais.” A moça procurou o jardineiro e perguntou pelo rapaz, mas ele riu e disse: “Acabou de chegar em seu cavalo de três pernas. Os ajudantes de jardinagem zombaram dele, indagando: “Adivinhe quem chegou? O manquitola.” Depois, disseram-lhe: “Você esteve escondiodo, hein?Que tal?” O rapaz respondeu: “Lutei, e muito bem; se não fosse por mim, quem sabe o que teria acontecido?” Eles quase morreram de rir.

O rei disse à filha: “Organizei um grande festival que durará três dias, e você vai jogar a maçã dourada. Talvez o cavaleiro misterioso apareça.”
Depois de anunciado o festival, o rapaz foi até a orla da floresta e chamou João de Ferro.
“Do que precisas?”, perguntou este.
“Quero pegar a maçã dourada que a filha do rei vai jogar.”
“Isso não é problema: já a tens praticamente em tuas mãos”, respondeu João de Ferro. “Vou dar-te mais: uma armadura vermelha para a ocasião, e um vigoroso cavalo castanho.”
O jovem galopou para a arena no momento adequado, juntou-se aos outros cavaleiros e ninguém o reconheceu. A filha do rei jogou a maçã dourada para o grupo de homens, e o jovem a apanhou. Mas, depois de apanhá-la, afastou-se a galope.
No segundo dia, João de Ferro deu-lhe uma armadura branca e um cavalo também branco. Ainda nessa ocasião a maçã caiu nas suas mãos; e mais uma vez , o jovem não ficou nem um instante mais, e fugiu a galope.
O rei ficou irritado e disse: “Esse comportamento não é permitido; ele deve dirigir-se a mim e informar o seu nome. Se ele pegar a maçã uma terceira vez e fugir, corram atrás desse cavaleiro”, disse aos seus homens. “E mais: se não quiser voltar, dêem-lhe um golpe; usem a espada.”
No terceiro dia do festival, João de Ferro levou ao moço uma armadura e um cavalo pretos. Naquela tarde ele também apanhou a maçã. Dessa vez, porém, quando se afastou com ela, os homens do rei o perseguiram e um deles se aproximou o bastante para ferí-lo na perna com a ponta da espada. O jovem escapou, mas o cavalo deu um salto tão grande para fugir que seu elmo caiu, e todos viram os cabelos dourados. Os homens do rei voltaram e contaram o que tinha acontecido.

No dia seguinte, a filha do rei perguntou ao jardineiro pelo seu ajudante. “Ele está de volta ao trabalho no jardim. Esse tipo estranho foi ao festival ontem, e só voltou à noite. E mostrou aos meus filhos as maçãs douradas que ganhou.”
O rei mandou chamar o rapaz, que compareceu com o gorro na cabeça. A filha do rei,porém, aproximou-se dele e lhe arrancou o gorro. O s cabelos dourados caíram sobre os ombros do moço; sua beleza era tanta que todos se espantaram.
O rei disse: “És tu o cavaleiro que apareceu todos os dias do festival com um cavalo de cor diferente, e apanhou a maçã dourada todos os dias?”
“Sou eu” respondeu ele, “e aqui estão as maçãs.” Tirando-as do bolso, entregou-as ao rei. “Se precisar de outra prova, queira olhar o ferimento que seus homens me fizeram ao me perseguir. E mais, sou também o cavaleiro que ajudou a derrotar o inimigo.”
“Se podes realizar feitos dessa magnitude, evidentemente não és um ajudante de jardineiro. Quem é o teu pai?”
“Meu pai é um rei notável, e tenho muito ouro, todo o ouro que possa precisar.”
“É claro”, disse o rei, “que tenho uma dívida contigo. Dar-te-ei o que estiver ao meu alcance e desejares.”
“Bem”, disse o rapaz, “quero sua filha por mulher.”
A filha do rei riu e disse: “Gosto da maneira como ele diz as coisas, sem rodeios. Eu já sabia, pelo seu cabelo dourado, que não era ajudante de jardinagem.” E aproximou-se dele e o beijou.
O pai e a mãe do rapaz foram convidados para o casamento e compareceram; estavam muito alegres porque já tinham perdido a esperança de rever o filho querido.
Quando todos os convidados estavam sentados `a mesa do banquete de casamento, a música começou a tocar, e as grandes portas se abriram, deixando entrar um rei esplêndido, acompanhado por grande comitiva.
Dirigiu-se ao rapaz e o abraçou. O convidado disse “Eu sou João de Ferro, que um feitiço transformou num Homem Natural. Quebraste o encantamento. A partir de agora, todos os tesouros que tenho são teus.”

Segundo a tradução inglesa de Robert Bly da história de Jacob e Willelm Grimms, em Grimms Marchen(1946).

“Embora tivesse sido recolhido pelos irmãos Grimm por volta de 1820, esse conto pode ter 10 ou 20 mil anos.” – Robert Bly

Fonte: João de Ferro, um livro sobre homens - Editora Campus
Autor: Robert Bly   

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